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Prédica: Lucas 10.25-37
Leituras: Deuteronômio 30.9-14 e Colossenses 1.1-6
Autor: Helmar R. Rölke
Data Litúrgica: 8º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 26/07/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
Tema:

1. Des-humanizar – o ser humano é favorável!

Está diante de mim o seqüestro de um ônibus de linha por dois assaltantes de banco, que minutos antes haviam libertado menores infratores da Unidade de Integração Social em Tucum, Cariacica, ES. Os passageiros são feitos reféns, e como o seqüestro dura mais de 11 horas, a imprensa acompanha todos os detalhes. Choca a cena, mostrada pela TV em edição nacional, em que um dos seqüestradores enfia o cano de sua arma na boca de um dos reféns!

A cena desnuda de forma brutal a que grau de bestialidade o ser humano pode chegar. Ele próprio é capaz de negar ao seu semelhante a humanidade, que é a sua maior herança divina.

Essa capacidade humana de negar humanidade ao seu semelhante (nem vamos falar o que acontece em relação aos animais!) possibilita tudo o que vemos: mortes, torturas, seqüestros , massacres… Mas a des-humanização não se expressa só no nível físico. Ela também se expressa no nível da linguagem e de outras formas de comunicação. Fala-se do serviço de preto’, isso é coisa de baiano; só podia ser mulher, não tem nada, porque é preguiçoso; menino de rua é tudo vagabundo; sem-terra só sabe inva­dir fazendas… A população de descendência alemã no interior do Estado do Espírito Santo se refere a pessoas de outras etnias como ele (ela) é um (uma) dos(as) outros(as).

A violentação da humanidade pelo ser humano gera guetos geográficos, culturais e raciais, que se tornam mais diabólicos ainda quando delimitam espaços, não permitindo o elementar direito de ir e vir. A empregada doméstica de cor negra, como um exemplo apenas, só pode usar o elevador de serviço. (As curas de Jesus queriam justamente promover a saída dos guetos, aos quais as pessoas eram submetidas.)

A des-humanização se concretiza ali onde o ser humano é violentado passo a passo através da marginalização, do empobrecimento, da tortura, da morte.

2. Des-humanizar -Jesus é contrário!

Certo samaritano, que seguia o caminho, passou-lhe perto e, vendo-o, compadeceu-se dele… Os samaritanos eram produto da des-humanização judaica. Eles eram vistos como não-confiáveis, pois etnicamente não eram puros. Tinham sangue dos outros. Além do mais, eles não freqüentavam o templo de Jerusalém.

E justamente um samaritano tem compaixão. Um dos outros tem compaixão. Isso deve ter mexido profundamente com os ouvintes de Jesus, educados dentro da des-humanização praticada em relação aos samaritanos. Citar um samaritano como com­passivo beirava à provocação!

A proposta de Jesus é denunciar, no exemplo do samaritano, todos os processos de des-humanização em qualquer nível, seja no nível cultural, geográfico, social, de linguagem ou de outros tipos de comunicação.

3. A história – a pedagogia de Jesus para denunciar a des-humanização

Jesus sempre foi muito criativo para se fazer entender (deveríamos reaprender dessa criatividade). Ele usou recursos pedagógicos interessantíssimos. Na história do bom samaritano há três elementos que, literalmente, envolvem o ouvinte:

a) Jesus sabe muito bem que para a boa compreensão de uma história é necessá­rio estabelecer com clareza o referencial, a partir do qual se quer envolver o ouvinte. Isso fará com que o ouvinte se identifique com determinado personagem e comece a viver a história através da perspectiva deste.

Na história do bom samaritano, Jesus consegue nos envolver com o assaltado e nós começamos a viver passo a passo a sua experiência. Sentimo-nos agredidos, espancados, jogados à margem do caminho, machucados, ensanguentados, sem forças, esperando desesperadamente que alguém se compadeça e ajude, por amor de Deus! Aí ouvimos passos e vislumbramos, através dos olhos inchados, a aproximação e passa­gem de uma e, depois, de mais outra pessoa. Reconhecemos nos dois que passam de largo pessoas do templo, dos nossos. Eles não param, e desesperamos!

Ainda em desespero, finalmente ouvimos a aproximação de uma terceira pessoa. Pelo jeito de ser vemos que se trata de um dos outros, de quem não esperamos ajuda. Mas ao contrário do que fomos educados a enxergar, justamente esse tem compaixão e pára. É um samaritano, daqueles outros, dos quais nunca esperávamos ajuda. Ele nos levanta do chão, nos limpa e nos leva para um lugar onde se respira novamente vida.

b) Jesus sabe muito bem que para cativar o ouvinte e transmitir-lhe algo é impor­tante criar dinamicidade na história.

Aqui Jesus consegue estabelecer movimento, pois há um constante ir e vir. Um homem desce para Jericó. Os assaltantes, após o assalto, se retiram . Um sacerdote descia de Jerusalém para Jericó, vê o assaltado e passa de largo. Também um levita, chegando àquele lugar… passou de largo. Um samaritano, que ia de viagem … chega ao pé dele, levou-o para uma estalagem e prometeu ao hospedeiro pagar tudo… quando voltar.

Há aí uma relação interessante entre os verbos. Uns apontam para o distanciamento (= passar de largo, retirar-se), e outros apontam para a aproximação (= chegar, levar, voltar).

A história do samaritano fala do deixar de ir (do distancia-se) e do ir (aproximar-se) ao encontro do próximo. Dentro desse jogo de verbos, de repente o sacerdote e o levita se aproximam muito da atitude dos salteadores, pois, como estes, eles tam­bém se retiram ao passarem de largo. Entendendo isso assim, a atitude do samaritano começa a adquirir profundidade: ele vai até lá onde os nossos não que­riam ir.

c) Jesus sabe muito bem que a denúncia de situações contrárias à vontade de Deus deve ser feita de forma clara e inequívoca. Não há meio termo. Aqui os agentes da história espelham uma clara situação étnico-social-religiosa da época. Há tensões entre o assaltado-salteador e sacerdote/levita-samaritano.

Para o assaltado (v. 3a), a princípio não estava claro que o sacerdote e o levita se encontravam mais próximos dos salteadores do que do samaritano. Era mais coerente identificar os salteadores com o samaritano, visto ser ele dos outros, de outra cultura e segmento social, e, por conseguinte, não se podia esperar dele uma atitude compassiva.

Assim, o assaltado tem que mudar de forma surpreendente todos os conceitos que tinha interiorizado até então. Justamente aquele que era dos outros, do qual não esperava nada, se comisera, presta ajuda, levanta-o do lado da estrada (= da marginalização). Sacerdote e levita, que a principio eram irmãos de cultura e culto, debandam, identificando-se assim com os salteadores.

A experiência que o assaltado faz e que o obriga a repensar os conceitos natural­mente não acaba com as diferenças étnicas, culturais ou sociais. O sacerdote e levita continuam exercendo suas funções no templo. O samaritano continua sendo samaritano. Mas a experiência do texto mostra que é possível restabelecer humanidade entre pes­soas que aparentemente não podiam nunca conviver, muito menos sentir comiseração.

A experiência do texto mostra que é possível quebrar a ideologia que estabelece espaços geográficos, culturais e sociais entre as pessoas, des-humanizando-as. A ideia tão comum do esse é dos nossos (em todos os níveis) e esse não é dos nossos simplesmente é relativizada. Na proposta de Jesus a ida ao próximo, c não só a comiseração, quebra todas as barreiras estabelecidas por costumes, tradições, conven­ções… (e como temos de tudo isso nas nossas comunidades!).


4. E quem é o meu próximo?

Há no texto um problema de compreensão e tradução. Quem é o próximo? Não trago todas as propostas exegéticas que tentam clarear o assunto. Convencem mais aquelas propostas que indicam para a não-universalização, pois essa tendência de universalizar a palavra próximo só se faz presente no judaísmo helenístico posterior.

Próximo aqui é mais o conterrâneo, o irmão de fé. Em outras palavras: a per­gunta do professor da lei não é quem devo amar?, mas sim quem faz parte, quem é dos meus? Pano de fundo é a aliança com Javé. Por isso o professor da lei não pergun­ta por qualquer próximo, mas pelo que se insere nesta aliança religiosa, social e cultural.

Nos w. 30-35 Jesus vira essa visão ao avesso. Justamente o samaritano, que a partir da visão judaica não se insere nessa aliança, age em conformidade ao estabelecido pela aliança com Javé. Sacerdote e levita, legítimos representantes da aliança, não agem segundo a aliança e com isso se excluem dela. Jesus estabelece uma nova aliança, na qual não vige mais a origem étnica, social, cultural, cultual (hoje, confessional). Isso não significa, porém, que todos e todas pertençam, automaticamente, a essa nova aliança. Pertencem a ela somente aqueles (as) que agem dentro das novas regras do jogo: ir ao encontro do (a) próximo (a) e permitir que ele (a) se aproxi­me, ignorando se é um (a) dos (as) outros (as).

5. O que pregar?

a) Pregar sobre a parábola do bom samaritano obriga a falar do ser humano: quem é e quais as suas esperanças?

Pelo seu instinto, nada o impede de des-humanizar o (a) seu (sua) semelhante. No texto ele machuca, assalta, deixa agonizando à beira da estrada e passa de largo. O pregador deveria levantar com a comunidade formas locais de violentação…

Humanidade não é algo nato ou inerente ao ser humano. É preciso aprendê-la. Assim como o ser humano aprende a pensar em categorias sociais, étnicas, culturais, cultuais, ele também aprende a classificar os que são dos nossos e os que são dos outros; os que são amigos e os que são inimigos; os que são vagabundos e os que são trabalhadores; os que são confiáveis e os que são traiçoeiros. O ser humano deve apren­der a mudar as regras do jogo. Ele deve aprender de maneira diferente: permitir que os outros se aproximem de nós e que, livres de preconceitos, nos aproximemos dos outros.

b) Pregar sobre a parábola do bom samaritano obriga a falar de Deus, de duas formas. Na primeira, desmascarar o deus que cria fossos entre as pessoas (o deus capi­tal em todas as suas formas). A consequência dessa adoração é a des-humanização, em nome da globalização, em nome do neoliberalismo e tantos outros ismos, gran­des e outros menores, em nossas próprias comunidades.

Na segunda forma, é preciso destilar de maneira pura para a comunidade o Deus do v. 27: o Deus que é base e fonte da humanidade. O único capaz de criar espaços, onde judeu c samaritano conseguem se encontrar (o pregador deveria descobrir com a comunidade esses espaços nos dias de hoje).

Destilar de forma pura o Deus que é capaz de impulsionar para aquele amor que derruba preconceitos culturais, sociais, religiosos e outros que não permitem tornar o (a) outro (a) nosso (a) próximo (a).

c) Pregar sobre a parábola do bom samaritano obriga a falar sobre preconceito e conceito. Num primeiro momento, Jesus denuncia os preconceitos, as opiniões forma­das sem reflexão e leva a refletir sobre uma outra conceituação do (a) próximo (a). Consequência concreta dessa nova conceituação é ir ao encontro do (a) próximo (a).

A partir da parábola do bom samaritano abrem-se perspectivas para uma reflexão mais ampla do papel da comunidade no momento atual e para atitudes bem práticas no dia-a-dia:

– O samaritano unta as feridas do judeu com óleo e vinho. Quer dizer: um estra­nho cuida das feridas de outro estranho com os meios que lhe eram acessíveis. Será que conseguimos entender toda a profundidade desse gesto, e como seria, se hoje fosse seguido pela comunidade?

– O samaritano colocou o judeu sobre o seu próprio animal e levou-o até uma hospedaria. Quer dizer: um estranho dá carona a outro estranho e lhe possibilita ter um teto. Será que conseguimos entender toda a profundidade desse gesto e o que cega darmos carona e teto para alguém com os meios, capacidades e dons que a comunidade tem?

– O samaritano tira dois denários (dos outros que ainda possui!) para ajudar o judeu. Quer dizer: um estranho tira dois dinheiros do seu para colocar novamente em pé um estranho. Será que conseguimos entender toda a profundidade desse gesto e o que significa tirar dois denários para dividi-los num mundo onde a concentração de renda é cada vez mais diabólica e, por isso mesmo, produz cada vez mais gente prostra­da?

– O samaritano volta para ver o judeu. Quer dizer: um estranho volta para rever o outro estranho. Será que conseguimos entender toda a profundidade desse gesto de voltar-se sempre de novo para o (a) nosso (a) próximo (a)?


6. Bibliografia

BIERITZ, Karl-Heinz. Göttinger Predigtmeditationen. Göttingen : Vandenhocck & Ruprecht, vol. 74, n. 8, ago. 1985.
DIETZFELBINGER, Wolfgang. In: Hören und fragen : Meditationen in neuer Folge : Band 1, Erste Evangelienreihe. Neukirchen-Vluyn : Neukirchener.

Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia