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Prédica: Provérbios 9.7-13
Leituras: Filemon 9b-17 (18-21) e Lucas 14.25-33
Autor: Norberto da Cunha Garin
Data Litúrgica: 16º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 20/9/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
Tema:

1. Pano de fundo da Sabedoria

O livro de Provérbios pertence à chamada Sabedoria de Israel. Para se andar neste caminho pantanoso faz-se necessário retornar algumas considerações sobre o conjunto literário no qual o livro está inserido.

Pode-se dizer que Provérbios é consequência de um longo processo, que se estende desde os tempos de Salomão até o final do século V a.C., ou seja, cerca de cinco séculos de literatura sapiencial.

Uma dessas considerações se refere à enorme influência que a Sabedoria exerceu sobre Israel. É possível encontrá-la infiltrada em seus cânticos e noutras frestas do cânon. Essa participação intensa na literatura israelita determina, em parte, a dificuldade que se tem para datar os seus autores.

Por outro lado, o Oriente Próximo era farto em literatura sapiencial. Certamente, boa parte do material que constituiu a Sabedoria de Israel era devedora daquela sabedoria oriental. Influências de antigos provérbios assírios e babilônios, de instruções de Amen-em-opet e de palavras de Ahiqar aluaram sobre Provérbios. A esse respeito, é importante a colocação de Azevedo (1996, p. 24), que sintetiza plenamente este ambiente de trânsito da sabedoria no Oriente Antigo: A literatura sapiencial não nasceu em Israel. Ela pode ser considerada uma articulação da arte universal da poesia com a fé no Deus único.

2. O livro de Provérbios

O propósito da Sabedoria de Israel era desenvolver estratégias de vida, que integrariam a existência do indivíduo com a ordem percebida do mundo (Gottwald, 1988, p. 525). Em Israel, a sabedoria se originava da observação das coisas práticas da vida e as devolvia como ditames, capazes de proporcionar uma vida feliz para quem a obedecesse. É nesta direção que Ottenbrei (1996, Provérbios, CD-ROM) se refere, em sua introdução ao livro do mesmo nome: O livro dos Provérbios é, talvez, o mais representativo do gênero sapiencial, se atendermos a dois aspectos característicos desse gênero a forma e o tema dos provérbios, que resumem, em frases soltas, o conhecimento popular e a experiência da vida – e ainda ao duplo sentido da Sabedoria, humana e divina.

O termo hebraico utilizado para Provérbios é masal, que em si tem muito mais do que uma página de sabedoria – masal designa uma sentença que tem o poder de produzir uma realidade nova, ou de fazer reconhecer uma experiência vital do povo ou dos sábios e de impô-la como realidade válida. (Ottenbrei, 1996, Provérbios, CD-ROM.)

Nesse particular, podemos vislumbrar uma das principais diferenças em relação à filosofia dos gregos, cujo propósito era buscar os princípios que explicassem os fenômenos. É esta literatura que, dotada de um caráter popular, influenciou a fé do judaísmo e se tornou base da espiritualidade cristã.

Por outro lado, pode-se perceber uma firme ancoragem da Sabedoria de Israel na corte real. Isso se manifesta tanto na maneira de formular seus textos, quanto nas preocupações éticas e teológicas. É possível identificar a necessidade de obediência à autoridade, bem como as maneiras corretas da corte.

Gottwald (1988, p. 529) é da opinião de que a influência da Sabedoria não aconteceu apenas na esfera literária e intelectual, mas também nas questões ético-sociais.

3. Informações sobre o texto

Ainda dentro do contexto maior da Sabedoria de Israel, é necessário considerar o conjunto do cap. 9 de Pv. Em si, é um desafio ao ser humano para que ele se posicione entre a loucura e a sabedoria.

Os w. 1-6 são uma descrição do templo, onde o banquete da sabedoria é servido. O convite que a sabedoria faz é dirigido a todos os seres humanos, mas em especial àqueles que ainda não têm a sabedoria e dela necessitam para continuar suas vidas.

Os w. 13-18 são um arremedo da sabedoria ao inverso. Nesses, a loucura é quem convida os simples para o seu banquete. Da mesma forma que a sabedoria, a loucura proclama o seu convite do lugar mais alto da cidade.

Provérbios 9 faz parte de uma ampla introdução ao livro e se constitui num tipo de admoestação, contendo exortações aos jovens contra a corrupção e recomendando-lhes os valores que brotam da sabedoria.

Por diversas vezes se fala na sabedoria e na loucura de forma personificada. Estruturalmente, Pv 9 foi construído na forma de versos A/B, dada por um mestre autorizado ao seu aluno.

4. Algumas particularidades

V. 7 — Quem corrige o insolente recebe escárnio.

Este insolente, ou escarnecedor como traduz J. F. de Almeida, é alguém que não assume compromissos. Um pouco mais adiante o mesmo Pv irá se referir ao insolente da seguinte forma:

O insolente não gosta que o repreendam e não se aproxima dos sábios (15.12).

Uma das características do insolente é a presunção. Ele se considera o dono da verdade. Não está aberto ao diálogo e por isso não aprecia a crítica.

A posição contrária também é uma verdade – quem não aceita qualquer espécie de crítica é um presunçoso e insolente.

Noutra parte, Pv recomendará uma atitude dura para com os insolentes, recomendará o golpe:

Castiga o insolente, e o ingênuo se tornará cauto: repreende o sensato e aprenderá ciência (19.25).

No v. 9 aparecem as mesmas recomendações do v. 7, apresentadas na forma positiva, isto é, incentivando um investimento maior no sábio porque este se tornará mais sábio ainda e dominará o conhecimento.

O v. 10 retoma um conhecido tema da Sabedoria de Israel – o temor de Yahweh. São várias as referências que podem ser encontradas sobre este temor:

O temor de Yahweh é o princípio da sabedoria, os tolos desprezam sabedoria e disciplina (Pv 1.7).

A expressão temor de Yahweh é uma referência a um tipo de religiosidade, que salienta a piedade para com Deus. Constitui-se numa espécie de ponto alto da Sabedoria. É um marco da devoção do israelita, que encontra no domínio dessa sabedoria o coroamento da sua relação pessoal com o Deus da Aliança.

O cap. 28 de Jó é uma espécie de elogio à sabedoria. Seu último versículo contém uma referência a esse temor, aprofundando, ainda mais, o seu significado. Enquanto que em 1.7 e 7.10 o temor de Yahweh é o início da Sabedoria, em Jó se constitui na própria definição:

E disse ao homem:

Temer a Yahweh: eis a sabedoria!
Afastar-se do mal: eis a inteligência! (Jó 28.28).

O livro de Eclesiástico traz um longo texto sobre este temor (Ec 1.11-21). Pode-se dizer que esse livro considera o temor de Yahweh como elemento fundamental para a construção da paz, da saúde, do bem viver e do bem morrer do ser humano. É o elemento fundamental de prosperidade. Define-se o temor de Yahweh como respeito e obediência a Yahweh.

De forma especial, é mister destacar o v. 14, onde o autor atribui ao seio materno o ensinamento da sabedoria:

O princípio da sabedoria é temer o Senhor;
entre os fiéis, ela é criada com eles no seio materno.

No v. 16, o Ec eleva o temor de Deus à categoria de plenitude da sabedoria:

A plenitude da sabedoria é temer o Senhor; ela inebria os homens com seus frutos.

Nesta mesma direção, de considerar o temor de Yahweh como princípio da sabedoria, o Sl 111.10 argumenta como critério seguro em todas as ações:

O temor de Yahweh é o princípio da sabedoria,
critério seguro em todas as ações.
Seu louvor permanece para sempre (Sl 111.10).

O Sl 25 atribui ao temor de Yahweh a qualidade de intimidade com Deus. É esse mesmo temor que se constitui no elemento que possibilita o conhecimento da aliança estabelecida entre Yahweh e o ser humano:

Yahweh se faz íntimo dos que o temem
e lhes dá a conhecer sua aliança (Sl 25.14).

Há uma série de outras citações sobre o temor de Yahweh nos vários corpos literários, que integram a Sabedoria de Israel. De forma geral, todos apontam para o fato de que nos termos da aliança firmada entre ser humano e Yahweh está todo o conjunto de sabedoria de que o ser humano necessita.

O v. 13 aponta para o outro lado da realidade humana – contrastando com a sabedoria, há a loucura. Como já dissemos acima, ela também faz o seu convite. Também consegue os seus adeptos, especialmente entre aqueles que ainda não têm a experiência da vida.

Em Pv 7.7-27 encontra-se a narrativa de um jovem que é envolvido por uma prostituta, que arrasta o adolescente para uma experiência com consequências danosas para sua vida. A pretexto de convidar o jovem para uma celebração sagrada na lua nova – o culto da fertilidade, enreda o jovem na contaminação com cultos pagãos. Com palavras sedutoras, ela arrasta o jovem para a sua casa na ausência do marido, com promessas amorosas e lisonjeiras.

Esse é um exemplo que Pv apresenta de uma grande loucura. O jovem acaba atingido e seu final é o xeol. Esse é apenas um de tantos outros exemplos de textos nos quais a sedução da loucura abate pessoas incautas e as leva para a ruína.

5. Ensaiando uma mensagem

Não é uma tarefa simples preparar uma mensagem sobre textos da Sabedoria de Israel. Entretanto, é um desafio. Tomando o texto maior, onde Pv 9.7-13 está inserido, pode-se dizer que jovens e adultos continuam vivendo o drama da sedução da loucura. A loucura de buscar a eternidade no poder, apostando alma e corpo numa campanha de reeleição. A loucura de ceder corações e tripas na luta por um espaço no comércio internacional, virando as costas para as necessidades mais prementes da população, tais como saúde, saneamento, emprego, alimentação básica, educação, etc. A loucura de misturar alhos com bugalhos ao tentar modernizar a nação, mas negando aos seus concidadãos direitos adquiridos na área previdenciária, fruto de longas lutas sindicais de diferentes categorias. A loucura de jogar fora a criança com a água do banho, ao vender patrimônios de toda a nação, com a desculpa de enxugamento do Estado.

Cada vez torna-se mais difícil buscar a sabedoria que constrói experiências coletivas, discutidas e assumidas por quem nelas está envolvido. Cada vez mais torna-se difícil encontrar o caminho da sabedoria, do culto ao Deus verdadeiro, que ama a justiça e oferece a paz integral com estômagos saciados e feridas saradas. Cada vez mais torna-se difícil seguir a sabedoria que manda fugir da sedução dos produtos internacionais, cheios de facilidades e repletos de desempregos.

A boca da prostituta Loucura se esgarça para atrair os incautos e engolir os amantes da modernidade. Com o seu chamado ela seduz aqueles que amam as facilidades da vida e negam os direitos aos que não tiveram a oportunidade de educação e por isso ficam à margem do processo social.

6. Uma tentativa de liturgia

Consiga uma máquina bem moderna (computador, impressora, aparelho de som, carro, trator, ceifadeira, etc.) e coloque-a bem no meio do ambiente de culto. Fale sobre as facilidades que essa máquina apresenta para os seus usuários. Enalteça todas as qualidades que são utilizadas e as que poderão ser usadas. Mostre como ela diminui o trabalho braçal do ser humano.

Depois, fale sobre quantas pessoas perderam o seu salário em troca dessa maravilha da sabedoria.

Finalmente, fale sobre a sabedoria de Deus que anda por outros caminhos, pois inclui o direito de todos, a justiça e a paz para a gente simples da roça e da cidade.

7. Bibliografia

AZEVEDO. O homem e a existência na literatura sapiencial. Estudos Bíblicos, n 48: Sabedoria, Petrópolis : Vozes; São Leopoldo : Sinodal, 1996.
GOTTWALD, Norman K. Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica. São Paulo : Paulinas, 1988. OTTENBREI, Frei Estevão, Ofm. Bíblia Sagrada em CD-ROM. Petrópolis : Vozes, 1996.

Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia