Prédica: Êxodo 32.7-14
Leituras: I Timóteo 1.12-17 e Lucas 15.1-10
Autor: Wilfrid Buchweitz
Data Litúrgica: 17º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 27/09/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
Tema:
Observação: Há um auxílio homilético baseado em Êx 32.7-14 no PL 15, de autoria de Romeu Ruben Martini. É mais um material que ajuda no trabalho com o texto.
1. O texto
O texto em questão mostra uma cena de uma longa história na caminhada do povo israelita, desde a saída do Egito até a sua instalação em nova terra. Por um lado, é uma milagrosa experiência de libertação de um longo e doloroso capítulo de opressão e morte para uma nova realidade de liberdade e de vida.
Mas a transição não é nada fácil. Ela é cheia de percalços, marcada por crises profundas entre o povo. Em vários momentos a libertação, fica ameaçada. Por um lado, são ameaças de fora, tipo o faraó e o Mar Vermelho, como mostra o cap. 4. Em 15.22ss. é a falta de água. Em l6.lss. é a falta de comida. Em 17.8ss. é Amaleque que não quer deixar Israel passar.
Por outro lado, a ameaça também vem de dentro do próprio povo. As dificuldades surgidas na caminhada conseguem destruir a gratidão e a esperança. Em seu lugar aparecem a insatisfação e a revolta (16.2ss.). Também no nosso trecho (32.7-14) a ameaça de interrupção da história prevista vem da parte do povo. Javé é quem garante, unilateralmente, a continuidade. Ao lado do deserto físico que o povo atravessa, existem muitos trechos de deserto espiritual, apesar de o Espírito de Deus guiar o povo.
No contexto menor de nosso trecho está todo o acontecido no Monte Sinai, a partir do cap. 19, com destaque no decálogo, no cap. 20. Uma das discussões exegéticas mais importantes sobre a composição final de nosso texto menciona l Rs 12.28ss., onde há uma história semelhante. A questão é se as duas passagens têm origem em momentos diferentes da história ou se uma serviu de fonte para aplicação em outro contexto. Não consigo perceber que isso tivesse um grande peso na verdade de nosso texto.
2. Escopos
A gente pode facilmente debulhar vários escopos do texto. Um deles está no v. 7: o povo se corrompeu. Outro, no v. 10: para que se acenda contra eles o meu furor, e eu os consuma. Um terceiro encontra-se no v. 11: Moisés suplicou ao Senhor. Outro, no v. 14: então se arrependeu o Senhor. São quatro verdades, e todas elas são de tal peso na Bíblia e na vida dos que a lêem que em algum momento elas têm que ser trabalhadas. Não há espaço aqui para trabalhá-las todas. Nem a comunidade agüentaria todas elas de uma só vez. Tem que haver uma opção, mas a favor de qual?
O povo se corrompeu. É difícil de entender isso. Como é que o povo não se lembra da fidelidade de Deus, mostrada em tantas oportunidades? Infelizmente, quando olhamos para trás, na história, temos traços de corrupção presentes em muitos momentos: Adão e Eva, Caim, os contemporâneos de Noé, até em Jacó. É verdade que aqui temos um auge. O povo não apenas peca contra Deus, mas fabricam, inclusive, um outro deus que passa a ser acintosamente adorado. Esse é um auge. O que aconteceu nessa ocasião jamais tinha acontecido.
Deus chega à conclusão de que precisa mudar o seu projeto. Ele não vê mais sentido em apostar nesse povo. É melhor destruir esse povo e criar uma nova nação a partir de Moisés e seus descendentes. Deus não desiste de escrever a sua história, de atribuir a um povo seu uma qualidade e uma tarefa que visem o seu reino neste mundo. Mas com o que aconteceu ao pé do Sinai Israel frustra a misericórdia e os planos de Deus. É preciso cravar uma nova estaca na história.
Moisés reage. Pede que Javé não se precipite, que pense melhor. O povo que está no sopé do monte é o mesmo que Javé tirou do Egito. Sozinho ele nunca teria saído do Egito. Só pelo poder e pela mão de Javé poderia ter acontecido a libertação daquela escravidão. Javé teve tanto empenho pelo povo, como é que agora esse mesmo povo deixa de acompanhá-lo? Não seria contradição isso? Moisés faz mais. Ele pergunta: O que é que os outros vão dizer?
Como é forte essa pergunta, já naquele tempo e até mesmo nos dias de hoje. Há o perigo de a gente prestar demasiada atenção a essa pergunta. Mas ela também pode ser uma pergunta boa e saudável. Às vezes, a criticidade de outras pessoas pode ajudar a gente a examinar melhor uma situação. Que é que os egípcios vão dizer, se souberem que aquele Javé que tirou Israel do Egito agora os destruiu? Que é que outros povos à volta vão dizer? Não vão enxergar coerência nenhuma. Não vão nunca se converter ao Deus de Israel. Não vão entender um Deus desses.
E Deus se arrepende. A oração de intercessão de Moisés faz Deus mudar de ideia. Deus ouve as orações de intercessão e as leva a sério, a ponto de mudar seus planos. O diálogo corajoso, a oração corajosa de Moisés convencem Deus a adotar uma nova atitude. E a linguagem da Bíblia é corajosa também. Ela tem liberdade de dizer que o que Deus tinha pretendido fazer teria sido um mal. Deus esteve a ponto de fazer um mal! Que liberdade bonita de se relacionar com Deus. A Bíblia retrata a vida, não uma doutrina sobre o mal e o bem.
Quatro escopos. Todos eles são de muito peso teológico e vivencial. Talvez seja possível descobrir ainda outras verdades e conteúdos. Propor o que para a comunidade? Trabalhar o quê? Comunicar o quê? A igreja que elaborou a nossa série de perícopes nos ainda. Ou nos tira a liberdade? Temos que decidir se nos deixamos direcionar ou não.
3. Os outros textos
Os outros dois textos propostos são Lc 15.1-10 e l Tm 1.12-17.
Em Lucas, Jesus é criticado porque permite que cheguem a ele publicanos e pecadores. Este recebe pecadores e come com eles (v. 2). Depois das parábolas da ovelha perdida e da dracma perdida é dito que haverá grande júbilo nos céus por um pecador que se arrepende.
O texto da carta a Timóteo destaca a misericórdia de Jesus para com o apóstolo Paulo, a graça de Cristo, o fato de ele ter vindo ao mundo para salvar os pecadores, a longanimidade de Jesus Cristo. E tudo isso para alguém, assim confessa Paulo, que noutro tempo era blasfemo, perseguidor e insolente.
4. Meditando
Em Êxodo temos um povo que se corrompeu. Em Lucas aparecem publicanos e pecadores, e fariseus e escribas que murmuram. Em Timóteo temos um Paulo blasfemo, perseguidor e insolente. Ninguém escapa. O ser humano quer se emancipar de Deus e com isso atrapalha o sentido de sua vida e de sua missão. Isso vale para o indivíduo e vale para todo o gênero humano. Quando abrimos jornais e assistimos TV, podemos ampliar infinitamente o número de quadros parecidos com aqueles de Êxodo, Lucas e Timóteo. Em toda a parte há afastamento de Deus e de sua criação; há a confecção de falsos deuses; há a distorção da verdade de Deus; há o ajeitamento de Deus a conveniências humanas.
A reação de Deus em Êx 32.10 – para que se acenda contra eles o meu furor, e eu os consuma – muitas vezes não parece apenas justa, mas a resposta mais razoável possível. Não há entre nós uma grande grita pela pena de morte? De repente a sociedade injusta quer praticar justiça com as próprias mãos! O Primeiro Mundo não vai deixar de explorar os países periféricos. Brasília jamais vai descentralizar a política fiscal. O poder vai corromper sempre. A IECLB nunca vai ser uma igreja do povo. O Cláudio não vai se endireitar jamais. A Joana não vai ter jeito nunca. A única reação possível é de furor.
Deus não abre mão de seu propósito. Ele perdeu a paciência com Israel, mas estava disposto a fazer de Moisés uma grande nação (v. 10). Deus não abre mão de construir o seu reino. Israel não cumpre o seu papel, mas Deus envia o seu Filho Jesus Cristo. Quando, a pedido de Moisés, Deus não destrói Israel, ele aposta de novo nesse mesmo Israel; aposta no arrependimento de Israel para que volte a portar-se como povo de Deus. Também o furor de Deus não altera os planos do reino.
A partir de Jesus Cristo Deus não faz duas coisas: a) não perde nunca a paciência com o seu povo; b) não se conforma com todo o tipo de bezerros de ouro que a nossa época constrói. Ele não concorda com o povo que o substitui por ídolos; não concorda com publicanos e pecadores, fariseus e escribas; não concorda com blasfêmia, perse¬guição e insolência, mas quer converter com sua misericórdia povos, igrejas e pessoas. Instrumento dessa misericórdia é, antes de tudo, seu Filho Jesus Cristo, mas é também Moisés e Paulo. E são instrumentos, hoje, os pequenos Cristos (Lutero), os pequenos Moisés e os pequenos Paulos.
O arrependimento de Deus dá uma nova chance a Israel. Publicanos e pecadores vão a Jesus e isso causa grande alegria. Paulo sente enorme gratidão pela misericórdia e graça de Deus.
5. Prédica
Certamente terão que ser mencionados na prédica os bezerros da nossa época, bezerros de ouro, de ferro, de aço, de cimento, de papel, de plástico. Quais são os bezerros de nossos dias? Como eles repercutem em nossa vida, sociedade e mundo? Talvez se possa identificar alguns ídolos mais distantes, mas convém não se deixar dominar pelo furor e despejar esse furor em cima da comunidade. Quais são os bezer¬ros que a comunidade funde? Como podemos permanecer fiéis a Javé em meio a esperas, sofrimentos e fraquezas? Qual é o papel dos Moisés e Paulos de hoje. Como eles podem interceder diante de Deus pelo povo, pelas igrejas e pelas pessoas? Como podem levar o povo a arrepender-se? O que significa a grande misericórdia de Deus para o nosso dia-a-dia, para o nosso ser comunidade, para o nosso ser povo brasileiro?
Deus quer continuar construindo o seu reino. Ele quer continuar conosco, para que nossa vida, nossa comunidade e nossa sociedade tenham sentido.
6. Bibliografia
FOX, Everett. The Five Books of Moses. New York : Schocken, 1995. (The Schocken Bible, 1).
MARTINI, Romeu, Meditação sobre Êxodo 32.7-14. In: KILPP, Nelson, WESTHELLE, Vítor (Coords.). Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal. 1989. vol. XV, p. 225-231.
NOTH, Martin. Das Zweite Buch Mose. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1968. (Das Alte Testament Deutsch, 5).
Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia