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Prédica: Amós 6.1-7
Leituras: I Timóteo 6.6-16 e Lucas 16.19-31
Autor: Renatus Porath
Data Litúrgica: 19º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 11/10/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
Tema:

1. Amós, uma presença incômoda no culto dominical

O exegeta H. W. Wolff já comentava: A Igreja ainda nem suspeita que material altamente explosivo foi inserido com o livro deste profeta nos fundamentos de seu cânon (Die Stunde, p. 7). Será sinal de censura eclesiástica que tão poucos textos desse livro constem nas séries de perícopes para a pregação?

Associa-se ao nome desse profeta o anúncio do fim do reino do Norte na segunda metade do séc. 8 a.C. (Am 8.2). Sua crítica à sociedade de então denuncia um convívio social, uma prática cúltica, uma administração pública, uma atividade comercial e uma atuação de tribunais de vilas e cidades marcados pela perversão, porque lesam o direito e a vida do segmento mais fraco do reino de Israel. Amos, criador de cabritos e de ovelhas, e coletor de essências oleosas de sicômoros, é arrancado de seus afazeres, que lhe garantiam a subsistência em Tecoa, junto à Shefelá, no sul de Judá, e foi feito profeta para atuar na capital do reino do Norte, Samaria, e na cidade-santuário, Betel. Suas palavras colecionadas, e atualizadas em diferentes épocas de crise da história de Israel, provocaram reações fortes já durante a atuação do profeta (Am 7.10). Com suas palavras, ele invade espaços para os quais não foi chamado pelas autoridades competentes, mas coagido por seu Deus (3.8; 7.14-15) para ir até lá e marcar presença profética.

O/a pregador/a, ordenado/a pela comunidade cristã para proclamar a Palavra de Deus, terá, ao ler Amós, que desempenhar a dura tarefa de dizer o não de Deus a práticas que estão em flagrante oposição às exigências do Senhor. A reação por parte de grupos na comunidade poderá ser semelhante àquela de Amazias, a autoridade sacerdotal de Betel: isso é subversão da ordem e invasão de um espaço que tem dono, vida e leis próprias! (Am 7.10-17). Talvez também pregadores/as da Igreja tenham que ouvir o questionamento proveniente do seu próprio meio: por que eles/elas não se atêm ao que diz respeito ao seu ministério? Amos é uma das primeiras testemunhas bíblicas que ajudaram a ampliar a esfera de abrangência da fé, puxando Deus e sua soberania para dentro de um cotidiano marcado pelo arbítrio de grupos minoritários.

2. O texto

2.1 Um grito de funeral põe fim à festa (v. 1a)

Com a interjeição ai/hoy, que expressa luto e perda (5.16) e nada tem a ver com alegria e descontração, inicia um dos textos mais surpreendentes que retraiam com requinte e detalhes inesperados a vida despreocupada da elite. O ai/hoy introdutório é um recurso, de mau gosto, mas que tem um impacto semelhante ao enterro simbólico em nossos protestos públicos, contra pessoas que se quer ver longe do poder. Será que o profeta está proclamando seu hoy de funeral sobre as pessoas certas? Esse grupo, de fato, deve ser marcado para morrer? Qual é este comportamento portador do germe da morte? Excluindo a despreocupação com o dia da desgraça (v. 3) e a indiferença com a ruína de José (v. 6b), pouca coisa parece justificar a sentença de morte através do enterro simbólico e a deportação da elite (v. 7). O que há de errado e condenável em viver despreocupado, ter autoconfiança e identidade definida, e saber-se sujeito da ação política? Morar bem, comer bem, curtir música, acompanhada de uma taça de vinho, sem esquecer o uso de cosméticos de boa qualidade, são desejos proibidos? Quando se instala a perversão neste estilo de vida?

2.2. Viver despreocupado sim, arrogância não! (Vv. 1-2)

Essa postura, condenada e infectada pelo germe da morte, tem seus dias contados e nada tem a ver com uma vida livre de ansiedade exigida por Jesus (Mt 7.25). É a postura da elite auto-suficiente e segura de si que perigosamente apaga a linha divisória entre Deus e o ser humano, dispensando qualquer interferência do Deus de Israel no cotidiano da vida palaciana. Sob essa pretensa autonomia, entesouram atos de violência e de destruição, como Amós já denunciara em outro pronunciamento (3.10). Dessa consequência da arrogância para o convívio com os segmentos mais fracos do povo de Israel pouco é destacado nesse poema.

Com ironia, e talvez se reportando a uma auto-intitulação da classe dirigente de Samaria, desmascara-se a base ideológica que sustenta essa postura: os nobres da primeira das nações (v. l b). Esse orgulho nacional de se considerarem dirigentes de um país de ponta chega a ofuscá-los, tornando os poderosos da capital cegos para a realidade que os circunda. A ideologia dessa arrogância perigosa revestia-se também de linguagem teológica, recorrendo ao status de povo eleito dentre o concerto das nações (3.2). A eleição não pode se tornar recurso para acobertar culpa e atos criminosos, argumenta Amós (3.1-2).

Os círculos proféticos sempre combaterem qualquer segurança baseada na condição de ser povo eleito, ainda mais quando se acreditava que o critério de sua eleição era sua superioridade territorial, militar – ou até moral? – (6.2; 9.7-10; Dt 7.6-8). Um provável comentário posterior convida para ver o que aconteceu com as cidades-estado que foram vítimas do expansionismo assírio: Calne, no norte da Síria, foi tomada em 738 a.C.; Hamate, junto ao Orontes, em 720 a.C.; Gate, na Filistéia, caiu nas mãos dos assírios em 711 a.C. (H. W. Wolff, Amos, p. 319). A Samaria foi vítima da mesma avidez imperialista assíria em 722 a.C. Essa referência histórica parece querer realçar o quanto os nobres, com sua soberba, eram cegos para suas condições reais de defesa e sobrevivência no cenário internacional. Sua postura os fazia viver alheios à realidade ameaçada em que se encontravam. Ou viviam eles alheios ao agir de Deus que permitiu os estragos nessas cidades-estado e que também permitirá que o mesmo aconteça com a Samaria? (6.8-10).

2.3. Um dia da desgraça? – Nem pensar! (V. 3)

Nada os sacudia, muito menos um encontro com o Deus que não tolera a insolência de governantes e seus assessores. Essa lógica de que ao ato perverso se seguirá a desgraça certa (Pv 16.4) nem sempre se verificou. Não é agora que tal regra se confirmará, pensam eles. Amós e suas ameaças de que está por chegar o dia em que YHWH estabelecerá sua soberania, a despeito da resistência da elite governante, não podem ser levados a sério. A desgraça, acreditam estar longe, mas a violência (hamãs) já está imperando (cf. verbo no passado!). Os atos de violência e de opressão nos castelos (3.10), que até contam com a conivência indigna das damas da capital (4.1), trazem em seu bojo a reação do Deus das vítimas pisadas. A intervenção de Deus não é arbitrária. Ela é provocada por aqueles/as que se apoderaram criminosamente de seus concidadãos como se fossem objetos a seu dispor (4.1; 5.10-11). Através do grito fúnebre já estão decretados mortos por antecipação, alvos do juízo divino.

2.4. Tudo pela dolce vita (w. 4-6a)

Bem ao sabor dos acusados, também o profeta omite qualquer referência a Deus. Parece querer demonstrar a contradição e a irresponsabilidade daquela postura arrogante sem apelar para a instância YHWH. Ele simplesmente coloca um espelho diante deles, e o que vem à tona é fruto dessa perigosa despreocupação, um exemplo da dolce vita reinante nos palácios de Samaria (H. Reimer, p. 139).

Qual repórter que faz cobertura das festanças da alta sociedade, nada escapa ao olhar (ou ouvido?) curioso e crítico de Amós. Ele não só constata que os convivas se espreguiçam e se reclinam como ditava a nova moda, como observa detalhes em marfim nos leitos e divãs importados. Por todos os lados aparece a ostentação de luxo e riqueza. Quanto à gastronomia, o profeta não se contenta com o comentário de que havia fartura nas mesas. Ele atesta a qualidade da carne ovina e bovina, e aponta para a sua origem controlada. Tece um aparente louvor à criatividade na execução de músicas em instrumentos de corda e destaca a variedade de instrumentos inventados para as festanças extravagantes nos palácios. Como em todos os tempos, quanta música não nasceu para entreter cortesãos/ãs e palacianos/as?

A referência elogiosa a Davi dificilmente deve ser da época de Amós. Em taças enormes, iguais às que se usava nas oferendas à divindade, crateras de vinho (Bíblia de Jerusalém) eram consumidas. Os notáveis da primeira das nações (v. l b) não só importam móveis para o seu conforto nos palácios, saboreiam carnes c bebem vinho em abundância, como também se perfumam com óleos de primeira qualidade (v. 6a).

2.5. Onde está a perversão? (V. 6b)

Uma inscrição do antigo Oriente fala de banquetes organizados pelo governante assírio Assarhaddon (séc. 7 a.C.) em seus palácios com a participação de toda a população (H. W. Wolff, Amos, p. 321). Amós documenta uma festa extravagante que excluía a população e até acontecia às expensas da população necessitada (Am 4.1-2: 3.10). No entanto, Amós não o menciona diretamente neste texto (mas cf. H. Reimer, p. 140-143). Também na crítica de Isaías (5.11-13), as festas não são condenadas e denunciadas como portadoras do germe da morte por implicarem espoliação e tributação de fornecedores pobres. O profeta Jeremias até admite que governantes banqueteiem, desde que não negligenciem sua tarefa de defender o direito e a vida dos segmentos mais carentes da sociedade (Jr 22.13-16).

Amós e Isaías vêem a perversão da dolce vita da camada dirigente na insensibilidade para o que acontece ao seu redor. A high society de Samaria só enxerga a si e seus corpos indolentes, absolutizando seu próprio bem-estar e prazer. A classe dirigente se porta feito deus. Consome as primícias dos animais e do óleo, iguais às oferendas levadas ao templo de Betel (A. Weiser, p. 179-80). Aí reside o germe da morte neste comportamento denunciado, pois ele é expressão da soberba que compete com Deus, porque acaba perdendo todos os parâmetros. Eles só enxergam ainda a si e seus desejos egoístas.

Isso é reforçado pela geração que lê a palavra de Amós a partir do fim, como sobrevivente da catástrofe que arruinou Samaria em 722 a.C. E não ficaram preocupados (= doentes) por causa da ruína de José (v. 6b). Através da metáfora corpo é expressa a insensibilidade, fruto da postura soberba. De tão preocupados que estavam com os seus próprios corpos insaciáveis, eles se esqueceram de que eram membros de um corpo maior; eram insensíveis para o que acontecia ao povo (= José), sem dar atenção para o fim que o profeta anunciou (8.2) e que se concretizou em 722 a.C. A perversão se instalou nos palácios de Samaria quando a busca por bem-estar se limitou àqueles corpos que se espreguiçavam no meio do luxo e das festanças desenfreadas, não se estendendo às necessidades corporais do resto do povo.

Essa empatia, ausente entre os dirigentes em Samaria, é vivida mais tarde por Jeremias, quando a ferida do povo de Judá o atinge diretamente (Jr 8.21).

2.6. Da dolce vita para o exílio amargo (v. 7)

A escola sapiencial ensina que a arrogância precede a ruína, e o espírito altivo, a queda (Pv 16.18; cf. Pv. 18.12). Essa lógica pode não se verificar sempre, mas o profeta tem uma certeza: a soberania de Deus se estabelecerá! Esse orgulho que nega a Deus, essa auto-suficiência que se absolutiza e se autodenomina nobres da primeira das nações, não continuará festejando triunfo. Os líderes da nação de ponta estarão na ponta, iniciando a marcha forçada para o exílio, e assim acabado estará o bacanal dos bacanas (= imitação da aliteração do v. 7b).

A celebração da arrogância, da auto-suficiência e do prazer egoísta está encerrada. Atrás dessa ação estranha se oculta o Deus de Israel que se volta contra o seu povo e, especialmente, contra a liderança do povo como última medida para ele continuar sendo Deus. Nessa realidade em que a camada dominante de Samaria vive c festeja seu aparente direito de deitar e rolar, ocorre a intervenção de Deus através do basta na boca de Amós, tornando a realidade e o cotidiano novamente espaços em que Deus, com sua vontade, é reconhecido.

3. Como pregar a partir de Amós sem domesticá-lo?

O próprio texto nos dá pistas hermenêuticas, ao reendereçar as palavras de Amós, originalmente dirigidas ao grupo dominante de Samaria. Mediante a inclusão de em Sião o público se amplia. A denúncia e o anúncio de desgraça assumem validade para além das fronteiras do Reino do Norte do séc 8. Agora também as condições de Jerusalém são colocadas a descoberto. De que época será esta apropriação judaíta de Amós? É provável que nessa época não só a Samaria já esteja em ruínas, como também Jerusalém não esteja mais de pé (cf. Am 9.11). A arrogância que foi fatal para a capital do norte também o foi para Jerusalém no sul (cf. Is 5.11 e 32.9-14). Não será a comunidade exílica que procura as causas de tamanha desgraça que pôs fim à vida organizada em Judá e a encontra nas palavras de Amós? O tema da arrogância insolente que provo¬cou a ruína de ambos os reinos assume contornos de um instrumento de análise aplica¬do a outras grandezas políticas. O Império Assírio (Is 10.5-12) e o Babilônico (Is 14.13-15), analisados sob o mesmo prisma, têm a sua queda igualmente explicada a partir do não categórico de Deus a toda altivez, de modo especial àquela que se manifesta entre detentores do poder.

A comunidade cristã, ao receber o livro de Amós como Palavra a ela reendereçada, faz um novo adendo à antiga Palavra, mesmo que não explicitado. Ela a recebe como comunidade que testemunha a nova intervenção de Deus na vida, cruz e ressurreição de Jesus Cristo.

Especialmente na cruz, o poder arrogante festeja o seu aparente triun¬fo, pondo fim a todo agir libertador de Jesus de Nazaré e do Deus que ele representava. A ruína não recaiu sobre as autoridades autocráticas e seus assessores; a celebração da presunção continua e ninguém marchou para o exílio. Quem foi arruinado e teve seu corpo maltratado fora dos muros de Jerusalém, e ali teve seu fim, foi o enviado de Deus. Mas cristãos/ãs confessam: Ele ressuscitou! A festa é nossa, o luto é deles. O germe da morte está encravado nesta postura dos que festejam a si, ocupando todos os espaços, concentrando o máximo dos recursos vitais disponíveis apenas para o deleite dos próprios corpos. Roubam, assim, o espaço, a honra e a glória devida a Deus. Por isso a Palavra de Deus na boca de Amós não pode ser reduzida a um discurso ético de uma minoria acética na comunidade cristã. E Palavra que sabe da incompatibilidade entre a postura de quem só enxerga a si e seus próprios corpos, ávidos pelo prazer egoísta, e a postura de quem abraçou o bom combate da fé (cf. l Tm 6.6-16). Os que vivem e lutam a partir dessa fé podem abrir mão de privilégios, interesses e bens, porque celebram a festa que não exclui.

4. Bibliografia

REIMER,Haroldo. Richtet auf das Recht!: Studien zur Botschaft des Amos. Stuttgart: Katholisches Bibelwerk, 1992. 256 p. (Stuttgarter Bibelstudien, 149).
SCHWANTES, Milton. Amós: meditações e estudos. Petrópolis : Vozes; São Leopoldo : Sinodal, 1987. 123 p.
WE1SER, Artur. Das Buch der zwölf kleinen Propheten 1. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1967. 292 p. (ATD, 24).
WOLFF, Hans Walter. Dodekapropheton 2: Joel und Amos. 2- ed. Neukirchen : Neukirchener, 1975. 422 p. (Biblischer Kommentar Altes Testament, 14/2).
WOLFF, Hans Walter. Die Stunde des Amos. München : Chr. Kaiser, 1969. 215 p. (em espanhol: La hora de Amos. Salamanca : Cristiandad, 1984).

Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia