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Prédica: Lucas 1.1-4
Leituras: Isaías 43.8-13 e II Timóteo 4.5-11
Autor: Antônio Carlos Ribeiro
Data Litúrgica: Dia do Evangelista Lucas
Data da Pregação: 18/10/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
Tema:

1. Introdução

Nós não vemos o mundo como ele é. Nós vemos o mundo como nós somos.

Quando nos defrontamos com quem é diferente de nós, duas forças se digladiam em nosso peito. A primeira, primitiva, nos faz crer que somos o centro do universo e nos dá a medida pela qual j ulgamos atitudes, gestos e palavras. A segunda, contemplativa, nos convida a apreciar o belo, devotar-lhe tempo de percepção e amá-lo, esteja onde estiver no tempo e no espaço.

Lamentavelmente, obcecados pela segurança tranquilizadora, quase sempre ficamos apenas com a primeira força. A segunda nos desafia, mas também nos assusta. Amedrontados, estreitamos nosso raio de visão, mentimos a nós mesmos e nos contentamos com os espaços limitados, embora sabendo que há espaço e vida no mundo que não dominamos com o olhar.

O prólogo de Lucas atesta a disposição de um cristão para relatar o que ouvira a respeito de Jesus. A escolha do público, o conteúdo e mesmo a forma do seu escrito refletem a maneira como ele se posiciona ideologicamente diante de sua realidade. Ele quer ser um testemunho a mais, mesmo que fora do molde tradicional para a ação desse Deus cuja graça é multiforme. Não joga fora a concepção judaica, mas procura apreendê-la pelo olhar culturalmente marginalizado das comunidades gentio-cristãs.

A escolha da perspectiva no trabalho pastoral dentro das igrejas tem esse componente ideológico. Podemos escolher um caminho que tem dezenas de anos a atestar-lhe a segurança. Ou podemos ousar abrir uma nova picada. Para quem tiver coragem, a proposta de Lucas é um bom começo.

2. Considerações exegéticas

O texto bíblico de Lc 1.1-4 apresenta um prólogo à sequência de narrativas que compõem o terceiro evangelho. O estilo clássico e o vocabulário apurado, semelhantes aos tios historiadores da época, são logo percebidos. É uma introdução à primeira parte da obra que se completa no livro dos Atos dos Apóstolos.

A autoria sempre foi atribuída ao gentio Lucas, desde a mais antiga tradição cristã (Cânon de Muratori, Prólogo Antimarcionita, Irineu, Tertuliano, Clemente de Alexandria c Orígenes). Ele evitou o arranjo mais histórico para usar as fontes de forma mais didática. Seu plano reproduz as grandes linhas do Evangelho de Marcos, com transposições ou omissões de passagens. Recorre também a fontes usadas por Mateus. Usou a língua grega da Septuaginta de forma primorosa nas narrativas e soube explorar seus matizes ideológicos, ora atenuando os efeitos perversos da presença romana na Palestina, ora acentuando a linguagem semítica quando se referia a fatos em que Jesus estava no centro da discussão. Segundo Eusébio e Jerônimo, a obra pode ter sido escrita em sua cidade natal, Antioquia da Síria, entre os anos 80 e 90 d.C.

A intenção dos quatro versículos do prólogo é explicar o objetivo e o método seguidos para fazer a pesquisa e o relato. Destacam que ele se informou cuidadosamente com pessoas que foram testemunhas oculares dignas de confiança e que tiveram conhecimento pessoal da verdade; que ele teve acesso a documentos e que se esforçou para escrever em ordem, mesmo preferindo a exposição didática à cronológica. O autor é mencionado nos escritos do apóstolo Paulo (Cl 4.14, 2 Tm 4.11 e Fm 24).

3. Breve análise do texto

A personalidade de Lucas e sua intenção, manifestas na pesquisa, forma e conteúdo do seu texto, emprestam sentido ao propósito de escrever para o povo de fala grega. Esse público é também retratado em sua dedicatória a Teófilo nas duas partes de sua obra historiográfica (Lc 1.3 e At 1.1-2). Há quem afirme que Teófilo era uma pessoa de posição social, um mecenas que teria assumido o patrocínio da produção e difusão da obra, segundo o costume vigente na época. Lucas pertencia à segunda gera¬ção de cristãos, que já precisou recorrer à pesquisa. Seu trabalho foi consultar documentos escritos e buscar informações com os que ainda estavam vivos, para conseguir recuperar tradições a respeito de Jesus e da Igreja nascente. Ele quis dirigir-se às comu-nidades gentio-cristãs, representadas por Teófilo.

O prólogo revela a decidida intenção de escrever a partir das tradições e dentro das regras vigentes nos seus dias, razão pela qual aparecem expressões como testemunhas oculares, acontecimentos, exatidão, fidedignidade c ordem, presentes nas obras clássicas da época.
O esforço de escrever uma obra com esse requinte de pesquisa só pode ser explicado a partir do esforço missionário do apóstolo Paulo. Parece que o trabalho anunciado por Lucas no prólogo e conseguido nos capítulos do evangelho e do livro dos Atos dos Apóstolos reflete o mesmo esforço de Paulo. Isso transparece também na sua versatilidade de poder servir-se de um estilo hebraico ao descrever um ambiente típico dos judeus. Esse gesto contribuiu para que elas tivessem, desde os inícios da fé cristã, uma perspectiva mais plural e multicultural.

4. Meditação: da Igreja dos alemães à Igreja-para-os-outros

A IECLB propôs para o biênio 97-98 o tema Aqui você tem lugar, a um só tempo dilema e desafio para as comunidades. Ele tem o mérito de provocar a discussão a respeito da presença e do papel de pessoas de outras raças no interior dessa Igreja oriunda do protestantismo de imigração, em que a maior parte dos membros são descendentes de alemães.

Esse texto de Lucas nos leva de volta aos conflitos existentes entre o cristianismo dominante, baseado na teologia da comunidade de Jerusalém, contra a inculturação da fé cristã no mundo grego, que permeia os textos de Paulo. Claro que essa kenosis assimilou a terminologia, sintaxe, filosofia e cultura do mundo grego, obrigando a discussão do projeto de cristianismo por parte das comunidades neotestamentárias, especialmente as não-judaicas. Como mostrou Dobberahn, ao se inculturar, a fé cristã viveu Jesus a partir das diferenças, muitas vezes complementares e não excludentes, refletindo a promessa do evangelho nas relações culturais, econômicas e sociais, traduzindo seu conteúdo a partir do novo lugar cultural, identificando-se solidariamente com os anseios daquela gente. Numa palavra: transformando-se em boa nova para os pobres.

O dilema dos luteranos de origem alemã, que parecia teologicamente equacionado, mostra agora suas arestas. Ernst Schlieper foi líder luterano que enfatizou, desde a primeira metade deste século, que a partir de agora não mais conseguiam compreender-se como uma Igreja dos imigrantes alemães, admitindo que tornar-nos-íamos culpados diante de Deus e de sua Igreja, caso não quiséssemos compreender os sinais dos tempos. Culturas vêm e vão, os idiomas sofrem transformações, a palavra de Deus permanece eternamente. Todavia, essa mensagem era um grito em meio a outras vozes e muitos ruídos, audível a muitos, mas não a todos.

A Igreja composta dos Sínodos que iriam se unir para formar a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil em 1968, viveu outros Concílios além do de 1950 (São Leopoldo). Modernizou-se, avançou e fez um tremendo esforço de abrasileiramento. A luta contra o etnocentrismo, já iniciada, chegou às assembléias conciliares, ganhou a escola de formação teológica, foi discutida em encontros de obreiros e conquistou espaço nas publicações, especialmente nas últimas décadas. No entanto, a estratégia mais efetiva aconteceu pela luta de pessoas comuns em busca da sobrevivência.

A migração de colonos dos Estados do sul e do Espírito Santo para as chamadas novas áreas forçou a presença da igreja nessas regiões. Surgiram comunidades que passaram a ser atendidas por pastores, pastoras e outros/as obreiros/as. Acrescente-se a isso o envolvimento dessas famílias de colonos e suas lideranças com setores do movi¬mento popular e das outras igrejas, e as novas práticas comunitárias surgidas nesses contextos, especialmente nos anos 70 e 80. O perfil da IECLB começou a mudar irreversivelmente. O rosto marcado pelo calor tropical dessa migração representou o momento e o lugar onde práticas e perspectivas culturalmente situadas começaram a ceder espaço a uma vivência própria, assim como a fé em Cristo recriada no mundo dos gentios relativizou a dogmática judaica da primeira comunidade.

O crescimento dessa Igreja-para-os-outros, expressão de Dietrich Bonhoeffcer, ajudou a forçar a revisão de conceitos que provocou uma guinada na linha política tradicional, com reflexos para toda a sua prática pastoral. Espremida pelo silêncio diante do regime militar e a pressão da Federação Luterana Mundial (FLM), que transferiu a sua Assembléia Geral de 1970 de Porto Alegre para Evian-les-Bains (França), a IECLB começou a criar espaço nas comunidades para uma reflexão teológica inserida no contexto político, social e econômico brasileiro. A realidade que conhecemos hoje é resultado desse momento.

O caminho da inculturação é dirigido pelo próprio Deus. Não é possível dirigi-lo ou manipulá-lo. Javé se faz adequado à cultura dos povos, assume com eles um pacto no qual resgata a sua dignidade, fazendo emergir uma sociedade antifaraônica do meio do povo oprimido. O conceito de hebreu não é étnico, mas sociológico e jurídico, e diz respeito a grupos etnicamente misturados que viviam, de uma ou outra maneira, fora da ordem social. Conforme a documentação extrabíblica, trata-se de fugitivos, cativos de guerra, escravos vendidos, trabalhadores forçados, mercenários socialmente desenraizados e 'bandidos' (Trein, apud Dobberahn).

O Evangelho de Lucas mostra que é possível relatar a prática de Jesus a partir de outra perspectiva, além da judaica, e se lança a essa tarefa. Da mesma maneira será desafiante para nós buscar uma leitura do evangelho em nossa realidade a partir de uma perspectiva inclusiva. A mesma expressão de fé que cimentou o esforço dos príncipes alemães na luta para resistir ao Sacro Império Romano Germânico sustentou a luta pela libertação do povo da Namíbia, testemunhou um bispo luterano na Assembléia Geral da FLM, reunida em Curitiba, em 1990.

O pastor Milton Schwantes admitiu, numa entrevista, que o pão nosso de cada dia é um pão nosso de dominação racial… no caso dos imigrantes alemães, nós fomos trazidos para cá em substituição à mão-de-obra escrava e em antagonismo ao negro… num projeto de branqueamento da raça. Enfatizou que esse problema nós temos que debater porque ele faz parte de nosso ser, de nossa existência cultural e religiosa no Brasil. Não debatê-lo significa ir carregando junto esse sedimento racial que está dentro de nós, está nos nossos costumes, faz parte de nossa linguagem. E concluiu, dizendo: Eu acho que nesse caminho que temos pela frente, nós realmente vamos mexer na raiz… das nossas comunidades… Nós temos a liberdade, na fé, de fazer isso, de dar esse passo com coragem e com muita alegria, porque assim como a Igreja se politizou alegremente, assim ela pode se tornar também um fórum de multiculturalidade. Com muita alegria.

Aceitar o desafio de pregar uma mensagem culturalmente aberta vai nos ajudar a redefinir a nossa missão e determinar a abrangência da nossa pregação em terras brasileiras. A Igreja como espaço limítrofe entre ruptura e continuidade, entre a utopia c o lugar, entre o cosmo e a revelação vive assim seu caráter sacramental de celebração da presença do que está oculto e mascarado no seu revés. É neste espaço limítrofe que cumpre também sua função querigmática, oferecendo-se como meio no qual ressoam os gritos e os silêncios que vão formando palavras nas quais habita a Palavra (Westhelle).

5. Subsídios litúrgicos

Preparar uma celebração da qual pessoas de diferentes raças possam participar. O culto pode ter momentos celebrativos característicos, com músicas e orações de diferentes regiões do mundo, como as do capítulo 3 do hinário O Povo Canta. Num momento de oração o dirigente poderá trazer informações sobre a comunhão luterana mundial. Algumas dessas informações podem ser encontradas em Lutheran World Information, 9 Jan. 1997, p. 10-20.

A FLM congrega 57 milhões de luteranos, membros de 122 igrejas luteranas espalhadas nos cinco continentes. Os países com maior população luterana em ordem decrescente são: Alemanha, Estados Unidos da América, Suécia, Finlândia, Dinamarca, Noruega, Indonésia, Tanzânia, Etiópia, Madagáscar, Índia, Brasil, Papua Nova Guiné, África do Sul e Namíbia. A África é o continente onde o luteranismo mais cresceu nos últimos anos.

Mostrar o quanto ganhamos como Igreja quando temos obreiros cedidos para igrejas luteranas de diferentes continentes e quando recebemos estudantes e obreiros de outros países do mundo. Se possível, trazer um estudante ou obreiro de outra igreja para falar um pouco sobre a realidade de sua denominação e país. Preparar um mural com textos e fotos (do Jorev) sobre a presença luterana nas diferentes regiões brasileiras, destacando suas características e contribuições. Essas propostas podem ser aplicadas a quaisquer outras igrejas.

Confissão dos pecados: Senhor, muitas vezes nos sentimos amedrontados com a presença de pessoas diferentes na comunidade. Tememos que, se muitas outras pessoas se aproximarem de nós, ficaremos descaracterizados e perderemos o que sempre significou a nossa marca ao longo do tempo. Perdoa-nos por não termos conseguido perceber a tua graça na comunhão dos diferentes. Ajuda-nos a ver na presença de pessoas diferentes em nossa comunidade uma possibilidade concreta de nos renovarmos culturalmente como Igreja. Amém.

6. Bibliografia

DOBBERAHN, F. E. O amém do pobre. Estudos Bíblicos, Petrópolis, n° 41, p. 18-26, abr. 1994.
GEORGE, A. Leitura do Evangelho segundo Lucas. 3. ed. São Paulo : Paulinas, 1982.
STORNIOLO, I. Como ler o Evangelho de Lucas. 2. ed. São Paulo : Paulus, 1990.
WESTHELLE, V. Missão e poder. Estudos Teológicos, São Leopoldo, v. 31, n. 2, p. 183-192, 1991.

Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia