Prédica: João 8.31-36
Leituras: Isaías 62.6-7,10-12 e Romanos 3.29-28
Autor: Ari Knebelkamp
Data Litúrgica: Dia da Reforma da Igreja
Data da Pregação: 31 de outubro de 1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIII
Tema : Dia da Reforma
(Observação: Há três auxílios homiléticos sobre o texto de Jo 8.31-36 em Proclamar Libertação, vol. II, p. 383ss.; VIII, p. 73ss.; XVII, p. 225ss.)
1. Considerações iniciais
É pela cruz de Jesus Cristo que a verdade de Deus brilha aos olhos do mundo. Felizes aqueles e aquelas que sabem reconhecer nela a verdade libertadora.
Num contexto histórico cheio de conflitos as comunidades joaninas perceberam que a busca da verdade, por Jesus Cristo, é uma realidade dinâmica que acontece nas relações sociais entre as pessoas, na vida de um povo, na vivência comunitária. Como minorias hostilizadas, especialmente na Ásia Menor, elas procuravam mostrar a dife¬rença de qualidade entre a vida sob a lei e a nova vida no Espírito, cheia de solidariedade e de graça (Jo 1.17). Elas atestavam que a verdade é o que Deus realmente faz por meio de sua palavra que se fez carne em Jesus Cristo. Essa verdade é o que Jesus Cristo é, diz e faz em toda a sua vida, finalmente na sua cruz. Jesus Cristo é a fonte donde brota a liberdade: Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres (Jo 8.36).
São muitos os conflitos e as controvérsias que aparecem no Evangelho de João. Internamente, as comunidades joaninas não admitiam a adaptação da fé ao jugo de déspotas romanos. Nesse contexto foi preciso lembrar a radicalidade do evangelho e reafirmar que Jesus Cristo, o crucificado e ressurreto, é rei. Não César, mas Jesus c o Senhor. E aí há novidade. Surge uma religião comunitária: Jesus Cristo, um só Senhor, e Senhor de todos e de todas. Logo, todos somos irmãos e irmãs. A base dessa convivência deve ser o amor. Tal proposta colocava em perigo inclusive a organização, a estrutura do Império. A discussão sobre a origem de Jesus está no centro de Iodas as controvérsias. A encarnação de Jesus é reafirmada, cm contraste com a tentativa gnóstica de chegar até Deus. Jesus Cristo é o único revelador da vontade do Deus Criador. Deus assume no Cristo toda a realidade humana, inclusive o sofrimento. O prólogo é uma resposta direta e incisiva às especulações que suprimiam a humanidade de Jesus Cristo.
Além disso, o conflito se mostrava em relação à própria cultura grega. O pensamento e a cultura grega estavam presentes em todos os cantos. A sabedoria grega reafirmava o materialismo, dividia a pessoa em corpo e inteligência/memória. Atribuía supremacia à alma sobre o corpo, às ideias sobre a prática. Os gregos também pensavam assim a sociedade: os inteligentes, isto é, a nobreza, de um lado, em posição bem superior, e os que viviam ligados à atividade do corpo (trabalhadores/servos/escravos) do outro lado. Sabemos que essa nunca foi a compreensão do povo de Deus ao longo da história. Aliás, a cultura grega tendia a colocar a realidade em substâncias e a relacionar substâncias. Definia e classificava. Enxergava a realidade de forma estática. Movimento era problema para eles, pois é característica de gente explorada.
As comunidades joaninas também procuravam romper as barreiras da apropriação do sagrado pelos templos e sinagogas, e fizeram surgir um evangelho profundamente místico e revolucionário ao mesmo tempo. Em Jesus Cristo tudo encontra a sua plenitude. Ele é o preexistente, o Logos, o servo/messias prometido ao longo dos séculos pelos profetas; ele é a luz, a bondade, o caminho, a verdade e a vida, o pão da vida, a videira verdadeira, o bom pastor, a ressurreição e a vida, a fonte de água viva, o santuário vivo, o céu aberto…
O Evangelho de João é memória coletiva de uma comunidade que, pela fé em Jesus Cristo, o Filho do Deus vivo, lutava pela vida em sua plenitude. Ó evangelho foi escrito para crermos que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhamos vida em seu nome (Jo 20.31).
Uma comunidade missionária é, portanto, aquela que procura unir fé e vida, que são os dois eixos fundamentais do projeto de Jesus Cristo. É da fé em Jesus Cristo, o Verbo encarnado, a verdade que liberta, que jorra a vida plena, boa, definitiva, vida não sob as amarras da lei, mas sob a graciosa liberdade do evangelho. É da fé em Jesus Cristo que vem a seiva para manter a árvore da vida em pé.
2. Dialogando com o texto
O texto de Jo 8.31-36 não impõe maiores dificuldades exegéticas. É de fácil compreensão. Nele João relata o diálogo tenso entre Jesus Cristo e os judeus num contexto de final de festa dos tabernáculos, em Jerusalém, festa esta de cunho muito popular e que reanimava todos os anos as grandes esperanças nacionais do povo judeu. O posicionamento de Jesus Cristo nesse diálogo certamente causou uma enorme indignação nos seus interlocutores, de consciências presas na Tora (v. 33). A verdade é a realidade de Deus revelada, tal qual ela aparece como dom da graça que vem de Deus, por meio de Jesus Cristo. Jesus Cristo é a verdade personificada de Deus.
Em Jesus Cristo estão as chances de um rompimento total com o pecado (vv. 34-36). Ser discípulo de Jesus Cristo é condição e garantia de que alguém conhece real¬mente a verdade (v. 31), e esse reconhecimento é que conduz à bênção, isto é, à verdade que liberta (v. 32). Não é suficiente ter a verdade, é preciso estar na verdade e contemplar a vida e o mundo na perspectiva da justificação por graça e fé (Rm 3.19-28).
Para estar na verdade é preciso praticar o amor, pois a verdade é também uma realidade a ser percebida, reconhecida e respeitada. Deus ama o mundo – eis a verdade, a realidade fundamental. Deus busca os pobres e os acolhe, perdoa os pecados, cura dos males. Embebidos nessa verdade cabe-nos aterrar a estrada, limpá-la das pedras (Is 62. 10b). O amor de Deus é a verdade. A verdade é Jesus Cristo. Nele somos livres para a vivência comunitária calcada no amor e no serviço ao próximo.
3. Rumo à prédica
O movimento da Reforma foi um grito em favor da libertação das gaiolas religiosas, teológicas, culturais da época. Ensina que na cruz Deus nos encontra em nossa obscuridade e nos abraça com aceitação total e incondicional, identificando-se completamente com a dor e o sofrimento da nossa existência e, assim, nos atraindo para uma relação de amor com Ele. Deus entra em nossa obscuridade, expõe e vence os poderes que reinam neste mundo. Através da morte de Jesus Cristo, Deus nos liberta de tudo o que poderia nos escravizar, exigindo lealdade absoluta.
O movimento da Reforma nos mostra também como o reconhecimento da misericórdia de Deus se revela somente àquele e àquela que ora e medita, a quem o Espírito Santo convence da verdade do evangelho, e – contra toda a tentação – conserva e fortalece nessa verdade.
A verdade é o que Deus faz na história. Jesus Cristo é a palavra de Deus feito carne, ação, esperança. Em meio à dor, à vulnerabilidade humana, vivemos o futuro de Deus. Por isso somos livres para viver ao pé da cruz daquele que é a verdade, em confiança absoluta em Deus e em alegre submissão à sua vontade.
O pregador e a pregadora hão de se perguntar: qual é a verdade que liberta? A verdade da coisificação do ser humano pela ideologia neoliberal que hoje varre o mundo? A verdade das promoções dos eus através do movimento gnóstico, da Seicho-No-Iê, do movimento espírita, dos cursos de promoção humana que pipoqueiam por aí? A verdade da cruz de Jesus Cristo tem algo a ver com as verdades das auto-salvações?
Os movimentos acima descritos espiritualizam o sofrimento e o atribuem ao desconhecido. Consideram o ser humano um deus que precisa desenvolver o divino do seu interior para se integrar ao cosmo todo, promovendo a sua própria salvação. Essas propostas não são verdadeiras gaiolas? É Deus que nos torna um povo santo! Libertação e justificação são iniciativas de Deus. O centro da fé cristã é a vida, a morte c a ressurreição de Jesus Cristo. A iniciativa de tornar o ser humano limpo, resgatado, justificado é de Deus. Da experiência dessa fé libertadora surge o comprometimento com a prática do amor e da solidariedade cristã.
Após o estabelecimento da situação específica da comunidade, a prédica surgirá no confronto das colocações e indagações acima com o(s) texto(s) cm questão.
4. Subsídios litúrgicos
a) Oração preparatória:
Liturgo/a: Vamos preparar-nos agora para o culto que estamos por realizar, confessando a Deus a nossa indignidade e nossas falhas: bendito seja Deus, Pai e Mãe de todos e de todas nós, Filho e Espírito Santo!
Comunidade: Amém!
Liturgo/a: Por estarmos reunidos na presença do Senhor para ouvir a sua palavra, reconheçamos que não aterramos a estrada, não a limpamos das pedras e não erguemos um sinal aos povos, nem permitimos que a verdade nos libertasse para uma nova vida. Por causa da nossa indignidade carecemos da glória de Deus. Com o publicano roguemos a graça e o perdão de Deus, clamando juntos: ó Deus, tem compaixão de nós e perdoa-nos!
Comunidade: Ó Deus, tem compaixão de nós e perdoa-nos!
Liturgo/a: Retira de nós, Senhor, a nossa indignidade, devolve-nos a alegria da salvação, liberta-nos para que possamos participar da tua glória, mediante Jesus Cristo, teu Filho, nosso Senhor!
Comunidade: Amém!
b) Bênção e envio:
Liturgo/a: Agora, ao nos despedirmos neste encontro com Deus, recebam a bênção Dele e o seu envio: Deus Criador de tudo o que existe, das coisas visíveis e invisíveis, Deus Filho, em cuja cruz fomos justificados gratuitamente, Deus Espírito Santo, que nos congrega e ilumina com os seus dons, abençoe e guarde vocês no caminho da verdade, da liberdade e da paz! Amém! Vão agora, irmãos e irmãs! Resistam a tudo o que promove dor e sofrimento. Sejam firmes na confissão da esperança e na vivência da justificação, pois quem fez a promessa é fiel. Nesse sentido, vão agora, ergam um sinal aos povos e sirvam ao Senhor!
Comunidade: Demos graças a Deus!
5. Bibliografia
BROWN, Raymond. A comunidade do discípulo amado. São Paulo : Paulinas, 1979.
COMBLIN, José. A força da Palavra. Petrópolis : Vozes, 1986.
GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. São Leopoldo : Sinodal; Petrópolis : Vozes, 1982.
VV. AA. O livro da comunidade, João 13-17. Belo Horizonte : CEBI, s.d.
Proclamar Libertação 23
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia