Prédica: Romanos 13.11-14
Leituras: Isaías 2.1-5 e Mateus 24.37-44
Autor: Paulo Augusto Daenecke
Data Litúrgica: 1º. Domingo de Advento
Data da Pregação: 29/11/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
Tema: Advento
1. Sobrevoando a região do texto
Deus possibilitou, através de Cristo, uma nova perspectiva de vida à humanidade. Ele nos torna justos; chama e liberta para a fé quem nele confia. O apóstolo Paulo direciona sua fala apontando para isso no cap. 8 de Romanos, num reconhecido louvor, o qual seja: Nada poderá separar-nos do amor de Deus (v. 39).
Os caps. 1-8 são a base para a compreensão da história da salvação (caps. 9-11) e da parênese (caps. 12-15). A parênese paulina é a consequência e o objetivo da proclamação do evangelho. A novidade de vida (Rm 6) quer, na verdade, ser corporificada na humanidade e não ser apenas uma perspectiva. Cada qual é capacitado e autorizado a, concretamente, viver a tarefa da nova vida em justiça, em seu meio, em sua realidade.
Os caps. 12-15 detalham minuciosamente o caráter parenético na Carta aos Romanos, apresentando dois elos: a) uma advertência universal e fundamental (caps. 12-13); b) uma parênese especial (caps. 14-15). Esta vem assentada numa compreensão cristológica que tem como tema central o amor, cujas exortações explícitas e implícitas se vêem circunscritas no contexto de Rm 12.1-2, que é o fio condutor da preocupação de Paulo. Pela misericórdia de Deus cristãos e cristãs podem dispor-se completamente como sacrifícios santos e vivos.
O amor é o fundamento e objetivo de toda ação a partir da fé e com a fé, que acontece na certeza e esperança de que o dia próximo chegou. Neste sentido Paulo se vale de prerrogativas inseparáveis deste contexto, destacando o mandamento do amor como suma e norma de todos os mandamentos, o discurso sobre a hora oportuna (João), a imagem apocalíptica da ressurreição, o chamado à participação na luta entre o bem e o mal, trevas e luz (Qumrã), os ais…
No início do cap. 13 o apóstolo aponta para o compromisso cristão no mundo, em que o cristão não pode ficar devendo nada e para ninguém; o amor ultrapassa as fronteiras dos compromissos mínimos e funcionais; ele se revela como tarefa infindável e de infinitas possibilidades; se doa por completo e nunca amou o suficiente.
Por outro lado, Paulo caracteriza as possibilidades do amor: amor entre si, amor aos outros, amor ao próximo, amor a quem não provoca mal, que é o cumprimento da lei. Muito maior é o sentido do amor que brota da liberdade de amar. O amor-cordial, o amor-caridade é a concretização da palavra apostólica (w. 8-10).
O amor é dinâmico; é movimento em direção a; que experimentou a misericórdia e o amor de Deus. Onde, pois, acontece este amor, não são cometidos males.
Nos vv. 11-14, há uma advertência apostólica que chama a atenção para o tempo, a hora (kairos) e sua proximidade iminente. Aqui, de maneira forte e clara, Paulo ressalta o já. O chamado escatológico adverte, exorta os iniciados na fé a assumir as consequências na nova caminhada. Remete à vigilância e participação na luta pelo novo numa perspectiva e expectativa escatológica: desta forma os acontecimentos no âmbito do poder das trevas devem ser superados, vencidos. Para os crentes é preparada uma nova armadura (Rm 6.13; Ef 6.11). As armas da luz, da fé, do amor, da esperança (l Ts 5.8) agraciam os crentes com proteção e força na luta.
O dia próximo requer uma conduta diária moderada, agradável, dado que uma ética escatológica não pode ser uma exceção; ao contrário, carece de ser diária, constante.
2. Planando sobre o texto
A ética cristã é clara: a expectativa do dia que se aproxima motiva e provoca uma nova mudança. O futuro prometido e esperado não deixa a humanidade inativa, inoperante, porém permite que as contradições sejam expostas à luz e respectivamente ajustadas; instrumentaliza-se na solidariedade esperançosa, que se traduz em
serviço em favor do mundo (…), no lugar e do modo como Deus quer e espera (…) esta missão não se realiza dentro do horizonte estreito dos papéis sociais que a sociedade concede à Igreja, mas dentro do vasto horizonte de esperanças do futuro Reino de Deus, da futura justiça, da futura paz, da futura liberdade e dignidade do homem. (Moltmann, p. 392.)
O cristianismo deve servir ao mundo para que se transforme e se torne o que lhe é prometido (Moltmann, p. 393).
O texto expressa claramente que Paulo não está interessado num horário apocalíptico determinado; tal figura soa como uma metáfora para o iminente surgimento do fim (!), que, aliás, não é escuridão ou trevas, é a clara luz do amanhecer; anula que ele se refira aqui a um movimento temporal. A cristandade é o marco referencial entre a velha e a nova realidade. Esta realidade, este espaço se manifesta justamente entre a prova misericordiosa de Deus e o irrompimento do dia de Cristo. O apóstolo, com certeza, porém, evoca uma orientação inequívoca pelo futuro. Compete também a nós, hoje, compreender, nos preocupar com seriedade pessoal e social/comunitariamente, com este fim e colocar sinais da esperança cristã. Onde tal acontece, vida e história se colocam abertas ao futuro; ali age a esperança dos libertos, dos reanimados, dos iluminados pelo senhorio definitivo de Cristo.
O amor é fundamento, meio e objetivo de toda a existência cristã; amor incondicional experimentado através do amor de Deus que liberta para amar.
3. Aterrissando na realidade
Relacionamos o Advento sempre com proximidade, esperança, preparo. É uma época especial; no entanto, dado o cunho comercial exploratório do Natal, a preparação neste período se dá em função da propaganda. Com isto esvazia-se o sentido específico do Advento: Deus vem para junto de seu povo! Há, pois, uma supervalorização deste tempo pré-natalino, em detrimento da vida que se prepara durante o ano para a sua tarefa cristã no mundo; ainda que, é verdade, muitos, de fato, só despertem o elemento fé, adormecido e hibernado, por estes dias.
O Advento evoca nos e nas fiéis uma sensação de análise, balanço, julgamento, questionamento diante do vivido ou não e na perspectiva do novo que está pela frente, com a angustiante pergunta: como será então? Para muitos é tempo de sofrimento, apesar de anunciar o Natal-alívio, Natal-alegria, Natal-libertação, Natal-solidariedade!
O tema principal é a proximidade do dia do Senhor, do Senhor que vem, para o qual é preciso estar atento, vigiar, estar a postos, despertos; sem restrições aos que crêem, pois o dia do Senhor virá como um ladrão à noite — uma maneira característica de Paulo falar referindo-se à escatologia, ainda que aqui não fale do ladrão, mas que a salvação está próxima e que para tal é fundamentalmente importante estar vigilante:
O Apóstolo resume o tema em Rm 13.11-14. Embora conserve a antítese trevas-luz (dia), não fala mais do ladrão de noite, e se contenta com afirmar que nossa salvação está mais próxima que quando abraçamos a fé. Conservam-se as expressões fundamentais de I Ts: as obras das trevas, e aqui elas são enumeradas (Rm 13.13), armas da luz; revestir as armas da luz é explicado como sendo revestir-se do Senhor Jesus Cristo (Rm 13.14). Paralelamente se apresentam novos motivos que estão ao nível da teologia das grandes Epístolas; proceder com decência, como em pleno dia. revestir-se de Cristo, não fazer caso da carne seguindo seus apetites (Rm 13.14). (Cerfaux, p. 158.)
O tempo é este. Não há outro. Este é que precisa ser valorizado. Urge vivê-lo adequadamente, aproveitar o tempo presente como dádiva para a tarefa cristã diante do futuro — motivador da superação dos dias maus, conforme o apóstolo também aponta em outros trechos de seus escritos:
O tema está subentendido já em Ts 5.1-11: a respeito da época e do momento, não haveis mister que vos escrevamos… Pode-se especular sobre os sinais dos tempos, mas é preciso convencer-se antes de tudo da necessidade da vigilância. Rm 13.11-14 fala das exigências do nosso tempo; é hora de despertarmos do sono. Ef 5.7-20 conservou o tema geral. Os dias são maus, esclarece o Apóstolo, aproveitai o tempo (Ef 5.16) (…).
(…) O tempo (kairós) são os últimos dias. Eles são maus porque os poderes das trevas (Ef 5.11) os dominam, mas o cristão pode resgatar o tempo, devendo-lhe sua primeira destinação; é o tempo da salvação.
(…) a época, o tempo atual, que se supõe ser bastante curto, nos é dado para operar nossa salvação. A ideia da grande tribulação ameaçadora corrobora nossas obrigações morais e espirituais. (Cerfaux, p. 159.)
A preocupação de Paulo, portanto, é a manifestação de uma proposta de resistência diante dos dias maus e de transformação para a qual temos de revestir-nos das armas que a fé coloca à nossa disposição pois nossa luta não é contra a carne e o sangue, mas contra os principados, as dominações (Cerfaux, p. 151). A proposta de Paulo não é de passividade, porém
a proximidade da parusia responde às aspirações ardentes da esperança, característica dos cristãos. Esta se traduzirá em alegria; e assim que ela aparece nos Atos dos Apóstolos e nas nossas Epístolas. Em seguida vemos a esperança incluir a salvação, a glória, a vida futura, todo o futuro eterno do cristão. Uma vez que a escatologia prevê a grande tribulação preparatória ao fim do mundo, a esperança normalmente acompanha-se da paciência; Paulo une tribulação, paciência, provação, esperança (Rm 5.3-4), pois somente a esperança mantém a vida — também a vida pública e social — em livre andamento.
O Senhor ressuscitado é sempre o Esperado pela Igreja, e esperado pela Igreja para o mundo todo e não para ela somente. Por isso o Cristianismo não vive de si mesmo, mas do senhorio do Ressuscitado e para o senhorio futuro daquele que venceu a morte e traz vida, justiça e o reino de Deus. (Moltmann. p. 389-90.)
Desta forma é necessário reconhecer que
a atitude do cristão face aos valores do mundo presente é até certo ponto condicionada pelas virtudes da esperança e da paciência. Se certas almas descobrem assim na religião um remédio para as misérias de sua vida, seria isso mais condenável que entregar-se ao desespero? Mas esperança não é pusilanimidade, e a paciência não dispensa do esforço viril. Paulo não tolerava nas suas comunidades o torpor ou a inércia. Era para elas um exemplo vivo de heroísmo e de atividade. (Cerfaux, p. 155.)
O Advento, pois, é um tempo precioso de atividade. Mas é evidente que Paulo não se refere a essa correria, que mais se torna um enfado, brecando a alegria do Natal, proximidade do Senhor.
Imagino hoje quanta especulação estará sendo feita em 1999, diante da virada de ano, década, século e milênio! Quanta crise, insegurança, exploração psicológica, expectativa deverão fazer parte deste Advento e Natal! Quanta frustração poderá desencantar o dia depois!?
O Advento habilita para uma transformação radical (Is 2.4) ao mesmo tempo em que é convite, conclamação para ensinar e andar no caminho e na luz do Senhor (Is 2.3,5).
O Advento é tempo de percepção da realidade, de estar atento, de estar vigilante para não perder a hora; é oportunidade de redescobrir o sentido da vida como um permanente advento.
Bibliografia:
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FISCHER, Joachim. Auxílio homilético sobre Rm 13.11-14. In: Proclamar Libertação.
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Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia