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Prédica: Mateus 1.18-25
Leituras: Isaías 7.10-14 e Romanos 1.1-7
Autor: Heinz Ehlert
Data Litúrgica: 4º. Domingo de Advento
Data da Pregação: 20/12/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
Tema: Advento

1. Considerações exegéticas

O trecho indicado para a pregação no 4° Domingo de Advento é parte de um contexto maior. Segundo W. Grundmann, poder-se-ia delimitá-lo assim: Mt 1.1-2.23 com o título: A chegada do Messias-Cristo, contendo a seguinte subdivisão: 1) 1.1-17: Genealogia de Jesus — sua origem do povo de Deus; 2) l .18-25: Antes do nascimento — sua origem de Deus; 3) 2.1-12: A adoração dos magos; 4) 2.13-15: Salvamento da perseguição; 5) 2.16-18: A perseguição de Herodes; 6) 2.19-23: Chegada ao lugar de partida. A pergunta que estaria no centro é: de onde vem Jesus de Nazaré?

Fica claro, desde logo, que Deus está agindo: acompanha, intervém, dirige. Utiliza para isso um instrumento não tão frequente na história sagrada: o sonho. () evangelista, por sua vez, lança mão da citação da Escritura, conhecida de seus leitores, como recurso esclarecedor: as profecias, fundamento da esperança referente ao Messias, se cumprem. A história sagrada tem coerência.

No trecho em pauta, onde se narram acontecimentos que antecederam o nascimento do Messias-Cristo, está em evidência o personagem de José, marido de Maria, enquanto que no Evangelho de Lucas Maria, virgem, é a figura central. Serve para compreender por que o casamento de José e Maria pôde ser consumado legalmente, sem traumas, possibilitando um lar para a criança esperada.

V. 18: O que se vai abordar são as circunstâncias que poderiam complicar grandemente um nascimento normal numa família israelita: a gravidez antes dos nubentes terem coabitado, isto é, antes de uma relação sexual entre os dois, e tudo que isto implica. Para que não haja dúvida: a concepção da criança que deve nascer de Maria é obra do Espírito Santo! Isto remete ao ato criador de Deus narrado no Gênesis. Com poucas palavras o evangelista se refere ao costume israelita de realizar um casamento em duas etapas: a primeira, uma espécie de noivado, em que os nubentes não moravam juntos nem mantinham relações sexuais, mas já estavam comprometidos. Qualquer infidelidade nesta etapa seria considerada adultério e motivo do rompimento no divórcio. A segunda etapa: após pago o dote aos pais da noiva, passavam a morar juntos, o casamento estava consumado. Se a noiva engravidasse no primeiro período, sobre ela recairia a suspeita de infidelidade. O marido teria o direito de processá-la, segundo as leis pertinentes (Dt 22.23ss.). Havendo a hipótese de ter sido seduzida, tanto ela como o sedutor seriam culpados e passíveis de punição (apedrejamento). Só no caso de estupro comprovado a noiva estaria isenta de culpa. O que a violentou seria punido segundo os rigores da lei. Pela afirmação do v. 18: Achou-se grávida pelo Espírito Santo os leitores ficam sabendo que Maria está acima de qualquer suspeita. Mesmo assim, essa gravidez de Maria tem tudo para trazer dor de cabeça para José e causar conflito entre os dois. Pois José não sabe o que realmente sucedeu.

V. 19: Qualquer processo de adultério representaria uma infamação pública para a noiva e sua família. Caso o adultério fosse muito bem comprovado por testemunhas, resultaria em punição com morte por apedrejamento ou sufocamento. Mesmo não comprovado, ficaria a suspeita. José é caracterizado como justo. Justiça é um termo usado na linguagem dos salmos e dos profetas e é retomado em passagens importantes do Evangelho de Mateus (p. ex. 5.6,20,21 ss.; 6.1,33 e outras). José é cumpridor das leis. Mas seria apenas a letra da lei do povo que é lei de Deus? Além de justo neste sentido, ele aparentemente leva em consideração o sofrimento que isto traria para todos os envolvidos. Portanto, é justo também no sentido de ser bondoso, o que corresponde à vontade de Deus. Seria, então, aquela justiça superior à dos escribas e fariseus? Em todo caso ele prefere levar toda a responsabilidade e possível suspeita sobre si. Por isso escolhe a modalidade de a deixar secretamente, sem explicações. Evitaria o sofrimento? Não, mas seria menor.

V. 20: Deus acompanhou os conflitos, pensamentos e planos de José. Sabe, portanto, o que se passa no íntimo das pessoas. Não vai permitir que qualquer ato humano, independentemente da motivação que possa ler, comprometa seu plano salvador. Por isso intervém para desfazer os planos de José. Deus age. Neste caso vale-se do instrumento do sonho para comunicar-se com José. Um instrumento conhecido e reconhecido em Israel (cf. Gn 28.12ss. e outras), mas mesmo assim olhado com certa reserva pelos mestres teólogos como meio de revelação divina. O sonho que José tem não precisa de outra explicação. Contém uma orientação e ordem clara, proferida pelo anjo. José fica inteirado do que aconteceu com Maria e que acarretou todo esse drama humano deles. É agraciado com a revelação de que pelo poder do Espírito Santo é que Maria está grávida. Aliás, ao ser chamado filho de Davi é colocado numa linha das gerações que são portadoras das promessas de Deus a seu povo escolhido.

V. 21: Além disso, fica informado dos planos futuros de Deus com a criança por nascer e do papel que reservou a José nesta história. Será o pai adotivo da criança e lhe emprestará legitimidade na genealogia de Davi. O pai tem o direito de dar o nome ao filho, mas, neste caso, é Deus quem determina o nome. Jesus (– Deus é salvação e ajuda) e o nome que a criança deve levar, porque ele salvará o seu povo dos pecados deles. Então o próprio Deus interpreta o nome, indicando o seu projeto de salvação. Não é salvação dos inimigos políticos e a instauração de um grande reino, mas a salvação dos pecados, isto é: a eliminação da separação entre Deus e os seres humanos. Desta forma o seu povo será a comunidade do Cristo. Com isso termina a mensagem direta de Deus através do anjo no sonho.

Vv. 22 e 23: Mas essa mensagem corrobora o que foi predito pelo profeta. Aquela profecia se cumpre, portanto. É a interpretação que o evangelista dá. A citação de Is 7.14 segue a terminologia da LXX, aquela tradução grega do AT. Aí aparece o termo virgem (em lugar de jovem mulher da Bíblia Hebraica, que pode referir-se à mulher jovem, casada ou não). Mas aqui realmente se trata da concepção pelo Espírito Santo de uma jovem mulher virgem! Mateus, no entanto, não afirma que ela tenha continuado virgem depois do nascimento de Jesus, pois fala com naturalidade dos irmãos dele, filhos de Maria com José (12.46-50 e 13.55-56). Não tem interesse nesta controvérsia posterior. Muito mais importante é a mensagem do nome Emanuel. Este, sim, é traduzido: significa Deus conosco. Na vinda de Jesus, na sua vida e missão, Deus está com o seu povo, com a humanidade (Mt 28.20ss.).

V. 24: José obedece incontinenti. Comprova assim, mais uma vez, que é justo. Ele cria as condições para que Jesus possa nascer num matrimônio regular e fazer parte, legitimamente, da cadeia genealógica de Davi.

V. 25: Obediente é José também porque desiste de ter relações sexuais com Maria durante o tempo de gestação. É usado o termo técnico não a conheceu, próprio para expressar o ato sexual entre homem e mulher no AT (cf. Gn 4. l e passim). E, quando a criança nasce, dá-lhe o nome Jesus. As circunstâncias ou outros pormenores do nascimento, porém, não são contados.

Escopo exegético: A concepção e o nascimento de Jesus são obra maravilhosa de Deus. Em Jesus, Filho de Deus, ele próprio está conosco como salvador para nos dar comunhão com ele.

2. Meditação

O nascimento de Jesus, como fato histórico, seria um nascimento comum, não fosse o incomum de sua concepção. Com isso tanto a concepção quanto o nascimento se caracterizam como obra do Espírito Santo, milagre de Deus. O evangelista João expressa a seu modo este milagre, quando diz que o Verbo se fez carne e habitou entre nós (Jo 1.14). O apóstolo Paulo, por sua vez, afirma que Cristo Jesus assumiu a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana (..). (Fp 2.7.)

A ação do Espírito Santo, testemunhada neste trecho, nos remete ao início da Bíblia. No Gênesis o ato criador de Deus dá existência ao céu e à terra. Assim o testemunho do Deus criador é ligado inseparavelmente ao Deus salvador. Este é o plano divino da história sagrada que ficaria encoberto aos seres humanos, não tivesse acontecido a revelação. Ela é de iniciativa exclusiva de Deus. Como José não saberia nunca o que aconteceu com Maria se Deus não lho tivesse revelado, assim pessoa alguma, nem instituição religiosa, descobriria, por si, o propósito salvador de Deus. Mas agora o maravilhoso agir de Deus se tornou conhecido.

Mas o lado humano, com seus enganos e acertos, existe na história sagrada. Neste trecho é enfocado o homem José, chamado de justo. É exemplo de alguém que é temente a Deus. Vive os padrões de religiosidade que conhece e reconhece como válidos. Assim é a vida dos tementes a Deus hoje. É marcada por sofrimento que provém da miopia espiritual, enquanto não consegue enxergar além dos padrões religiosos em que foram educados. O padrão de justiça também é determinado pelas leis existentes num povo. Justo é, pois, considerado quem cumpre estas leis. No caso de Israel a lei é proclamada como lei divina. Quem obedece a esta lei obedece a Deus. Certamente o próprio José se considerava justo. E para continuar justo, não queria fazer nada que contrariasse as leis existentes e a sua interpretação por quem de direito. A saída que descobriu para o seu caso particular e que traria uma completa reviravolta nos planos que tivera para seu futuro também estaria dentro dos padrões de justiça. Deve ter amado muito a Maria. Do contrário não teria bolado aquele plano de a deixar secretamente, assumindo ele toda a culpa pelo trágico desenlace da separação inevitável. Não, entregá-la à condenação infame e à morte, isto não poderia! Não percebemos que a justiça de José adquire uma definição que melhor se chamaria de bondade que supera a justiça que vem da letra da lei? O seu coração devia estar mais em sintonia com o amor de Deus.

Deus realiza, sem dúvida, seu plano salvífico, mas não quer fazer isto sem a participação dos seres humanos. José não será posto de lado. Não pode escapar do papel que Deus lhe reservou na história. Assim age Deus conosco. É a sua maneira de nos envolver, apesar da nossa fraqueza, da nossa imperfeição e até do nosso pecado. Pode até ser doloroso e não compreendido no momento, mas o misterioso Deus tem os seus caminhos.
Deus não deixa o homem José totalmente no escuro. Não o trata como marionete, mas como pessoa criada à imagem de Deus. Ele quer o nosso sim livre para os planos que tem conosco. Por isso dá a orientação que julga necessária. No caso de José utiliza o instrumento raro e extraordinário do sonho para se comunicar e explicar. Nós temos a Sagrada Escritura e, quem sabe, a ajuda de pessoas instruídas na fé, mais maduras do que nós, para interpretar para uma situação especial o caminho que devemos seguir. Mas também hoje Deus pode proporcionar aos seus aquilo que precisam, enquanto dormem. Já fiz várias vezes essa experiência em minha vida.

Assim Deus revela a José que tem um papel importantíssimo a cumprir, mas sobretudo revela a ele e a nós o que o nascimento de Jesus significa para a história da humanidade: salvação dos pecados deles. Quando Deus criou o ser humano a sua imagem, o destinou à comunhão com ele. Seria uma relação gostosa que lhe daria, além disso, uma relação harmoniosa do homem e da mulher, com a natureza, com toda a criação. Toda a missão do Messias se resume nisso: a remissão dos pecados. A comunhão amorosa deve ser restabelecida. No anúncio a respeito do nascimento de Jesus já se expressa todo o programa de sua vida e obra, sua morte e ressurreição. Ser incluído na salvação é incomparavelmente mais do que uma vida tranquila ou gloriosa nesta terra. É a vida nova com Deus já aqui e na eternidade. O Emanuel, o Deus conosco garante a possibilidade de viver em comunhão com ele, mesmo que caiamos em tentação. Isto dá o sentido maior à vida, bem diferente das ofertas do mercado, mesmo as da época do Natal. O final feliz da história contada só é verdadeiro porque José creu e obedeceu. Esta fé e obediência se traduziram numa longa caminhada de pequenos passos e, certamente, sob muito sofrimento. A imediata perseguição seria só um exemplo. É a história dos discípulos. Mas ir com Jesus vale a pena já agora e na eternidade.

3. Passos para uma prédica

1) Um homem — José — se debate com um problema existencial. O pior da vida dele. Pois o pior problema é sempre o atual. Pode-se descrever com mais pormenores o drama de José no contexto dos costumes e leis do seu povo. Mas Deus no céu acompanha o aflito até hoje.

2) Mas Deus não é o espectador distante. É o senhor da história que realiza os seus planos hoje como ontem. Nisso quer os seres humanos como participantes e até colaboradores. Mas antes comunica o evangelho, a boa nova, que também foi anunciada a José (é verdade, em sonho): Jesus, concebido pelo Espírito Santo, é salvação: salva dos pecados, da separação de Deus.

3) O que importa, hoje como ontem, é ouvir com dedicação e obedecer como José. Isto muitas vezes pode implicar sofrimento e frustração. Especialmente quando se quer levar a sério a vida com Deus. Mas dá a incomparável satisfação de uma vida realmente boa e uma esperança que não morre.

4) Assim o milagre do Natal se concretiza para nós. Deus não só governa o mundo, mas veio até nós pessoalmente no milagre da encarnação e está conosco, assim como o Messias Jesus = Emanuel prometeu: (…) eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século (Mt 28.20).

Bibliografia

DEIFELT, W. Auxílio homilético sobre Mateus 1.18-25. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1992. vol. XVIII.
GRUNDMANN, W. Das Evangelium nach Matthäus. 5. ed. Berlin : Evangelische Verlagsanstalt, 1981.
SCHNIEWIND, J. Das Evangelium nach Mathhäus. 10. ed. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1962. (Das Neue Testament Deutsch).

Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia