Prédica: Tito 2.11-14
Leituras: Isaías 9.1-7 e Lucas 2.1-20
Autor: Lurdes Caron
Data Litúrgica: Natal
Data da Pregação: 25/12/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
Tema: Natal
Um povo lhe pertence. Pois tornou-se manifesta a graça de Deus, fonte de salvação para todos os homens e mulheres. Ela nos ensina a renunciar à impiedade (I Jo 2.16) e aos desejos mundanos, para vivermos no tempo presente com moderação, justiça e piedade à espera da bem-aventurada esperança (1 Cor 1.7; Fl 3.20; 2 Tm 4.8) e da manifestação da glória de nosso grande Deus e Salvador Jesus Cristo. Ele se entregou a si mesmo por nós, a fim de nos resgatar de toda a iniquidade e purificar um povo que lhe pertença, e esteja repleto de ardor pelas boas obras. (Tito 2.11-14.) 1
1. – Considerações preliminares
Gostaria de iniciar esta conversa partilhando uma convicção pessoal: vivemos um momento privilegiado e de graça na história social, política, cultural e religiosa. O universo, por mais grandioso que seja, está se tornando pequeno. Tudo está ao alcance das pessoas. Estamos conhecendo mais, admirando mais e amando mais o mundo criado. A graça recebida pede resposta.
A reflexão para este Natal se baseia no cap. 2 da Carta a Tito. Para que possamos amar a palavra de Deus revelada na Carta a Tito e sua comunidade, vamos conhecê-lo e situá-lo na história, no seu tempo. Sabemos de Tito o que nos conta Paulo em quatro de suas cartas: Gálatas, 2 Coríntios, Tito, 2 Timóteo.
Tito era membro da comunidade cristã de Antioquia. É encontrado pela primeira vez como companheiro de Paulo e Barnabé na viagem para o Concílio de Jerusalém, pelo ano de 50. Foi o grande colaborador de Paulo, antes de Timóteo. Visitou Paulo na prisão em Roma: (…) Tito partiu para Dalmácia (2 Tm 4.10). Saiu-se muito bem conciliando Paulo e os coríntios no auge do desentendimento entre eles (2 Co 7.6-16). Mostrou-se digno da confiança na tarefa de fazer uma coleta em favor dos cristãos de Jerusalém (2 Co 8.6). Foi por Paulo encarregado de organizar a nascente Igreja na ilha de Creta e de refutar os falsos doutores. “Se eu (sc. Paulo) te deixei em Creta, foi para que ali concluas a organização (…) é mister tapar-lhes a boca. “ (Tt 1.5-11)
A comunidade dos coríntios andava revoltosa. Tito, convidado, aceitou o desafio de trabalhar nessa comunidade na tentativa de reconduzi-la à paz. Com habilidade conseguiu cumprir a missão que lhe fora confiada. Reconquistada a paz, voltou a reinar nela a harmonia (2 Co 2.13ss.; 7.13ss.; 8.6; 12.17s.). Paulo, feliz com o sucesso de Tito, confiou a ele outra missão: levar a Segunda Carta aos Coríntios, preparar sua vinda (de Paulo) e organizar a coleta para os pobres em Jerusalém (2 Co X. 16-24). O apostolado de Tito, servo bom e fiel, estava se tornando mais intenso.
Tito, convertido do paganismo, era considerado a expressão viva do evangelho, um cristão exemplar, livre das amarras da Lei (Gl 2.1-3). Dotado de um caráter sólido, espírito ponderado e alma forte, era, como bom organizador, o indicado para as tarefas difíceis. Participou, com Paulo, entre outros, da terceira viagem missionária a Éfeso. Tito, pode-se dizer, foi considerado administrador e diplomata da fé cristã.
2. A graça de Deus tornou-se manifesta
A graça e a bondade de Deus, nosso Salvador, se manifestaram para todos, homens e mulheres, em Jesus, Verbo feito carne. Ele se entregou a si mesmo por nos para remir-nos de todo o desequilíbrio e para purificar um povo que lhe pertence. Em Cristo, Deus nos salvou, não por causa de atos bons que houvéssemos praticado, mas porque, na sua misericórdia, fomos lavados pelo poder regenerador e renovador do Espírito Santo que Ele derramou sobre cada um, por meio de Jesus Cristo Salvador. Por Ele fomos justificados pela graça e nos tornamos herdeiros da esperança da vida eterna.
A bondade de Deus se manifesta sobretudo naqueles que nasceram de novo pura poderem entrar na participação do Reino. Eles vivem o mistério da salvação iniciado no Natal, e com seu testemunho pregam a homens e mulheres o novo nascimento para que todos se tornem filhos e filhas de Deus e herdeiros da vida.
Assim se começa a entender melhor o Batismo. Ele tem, como efeito principal, a regeneração interior que transforma o homem e a mulher, criaturas, em epifania da salvação, no mundo. Todo ser humano é agraciado com a salvação universal de Cristo.
Essa leitura convida e desafia todos os homens e todas as mulheres para a prática da justiça e o cultivo da solidariedade. Faz-se necessário implantar a cultura da solidariedade se quisermos um mundo mais humano e solidário. Sem a cultura da solidariedade, não será mais possível acreditar em nenhuma mudança.
A graça nos ensina a abandonar a impiedade e as paixões humanas para viver neste mundo aguardando a realização da esperança o a manifestação da glória do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo. O povo que andava nas trevas, viu uma grande luz. Uma luz raiou para os que habitavam na terra sombria da morte (Is 9.1).
A graça educa nossa maneira de olhar as pessoas. Ela se manifesta para todos, homens e mulheres. Paulo, nesta Carta a Tito, alerta que a graça é para todos. Viver a graça é viver a cidadania. É olhar para a situação das pessoas, olhar para a situação de exclusão a que muitos estão condenados. Olhar para a situação e tentar mudá-la. Omitir-se diante de uma situação de miséria, de exclusão, de fome, de falta de escola e de falta de condições para uma vida mais digna é estar fora do plano de Deus, é excluir-se do projeto de Deus. Graça é olhar, é perceber a situação do povo, como Tito. É gerar paz, harmonia, perdão e bem querer. É fazer brotar vida nova.
Essa manifestação da graça, essa epifania de Deus, nos leva a mudar a maneira de encarar e viver a existência, desde agora. O cristão vive na expectativa de uma realização. No horizonte ele pressente a manifestação da glória de Deus, em Jesus. Em Tt 2.13, Paulo, unindo as duas palavras Deus e Salvador como atributos de Jesus Cristo, faz uma afirmação clara e solene da divindade de Jesus. O nascimento de Jesus, o Salvador, constitui-se no começo de uma nova etapa na história do mundo. Por isso, Lucas contextualiza esse nascimento dentro da história do mundo conhecido da época (Lc 2.1-2).
A salvação se concretiza na libertação de todos os males sofridos por homens e mulheres. Por isso, os pobres e oprimidos são os primeiros da lista no plano da salvação. Eles são também os protagonistas dessa nova história. O mundo onde Jesus nasce é o mundo dos pobres.
A salvação é o tema preferido de Lucas. A salvação, para ele, não é algo distante. Ela se faz presente hoje (cf. 4.21). Hoje nasceu para vós o Salvador (2.11). Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir (4.21). Lucas lembra as palavras do livro de Isaías: E todos verão a salvação que vem de Deus (3.6). O canto dos anjos, na noite do nascimento de Jesus, deixa claro que Ele é o Salvador do mundo inteiro, pois Deus ama a todos os seres humanos (2.14). A alegria anunciada aos pastores é para todo o povo (2.10). A salvação é, portanto, para Israel e para todos os povos. Deus mesmo é o Salvador (1.47). Mas na ocasião do nascimento de Jesus, os anjos dizem aos pastores que ele, Jesus, é o Salvador (2.11). O velho Simeão toma o menino nos braços e diz estar vendo a salvação de Deus (2.29). Jesus, portanto, faz acontecer a salvação de Deus. Ele é o visitador de Deus que traz salvação ao povo (7.16).
3. Viver o tempo presente
A salvação é para todos. O que significa para nós hoje alguém sem escola, sem condições para uma vida digna? Qual é a salvação para esses excluídos? Qual é a salvação para aquele e aquela que não assumem o projeto de Deus? Deus é para todos. A festa do Natal nos recorda que Jesus vem para toda a humanidade. Ele não veio só para minha Igreja, minha família, minha comunidade. E muito menos para um tempo passado. Deus é e quis fazer-se um de nós. Veio para ficar entre nós. Veio para todos os povos.
A salvação exige o cultivo e prática da justiça. Esta requer uma educação para a justiça, o que implica um compromisso com a construção de uma sociedade onde prevaleçam a participação e a comunhão. Participação e comunhão não se aprendem com teorias e muito menos com falas a respeito de sua importância. Há que aprender a participar, mesmo que essa participação implique tensões. A participação é condição para que exista e se desenvolva a comunhão e se pratique a justiça. Essa prática é, também, fazer uso do exercício da cidadania. Salvação também é viver com moderação, com justiça e solidariedade.
Viver a cidadania na prática da justiça é uma dimensão que, necessariamente, precisa ser exercitada na família, na escola, na Igreja, na sociedade, nos meios de comunicação social, para que seja uma experiência de justiça. Neste sentido, a educação como prática de justiça precisa ser um ensaio das relações sociais justas que se pretende estabelecer. Não existe exercício da cidadania mantendo pessoas passivas, dependentes de quem sabe mais, desinformadas, desconhecedoras de seus direitos e deveres. Cidadania inclui participar das decisões dos grupos sociais, respeitar e ser respeitado, ouvir e ser ouvido. Isto é o que fez Tito, quando esteve na comunidade de Corinto. Para ajudar a estabelecer a harmonia, a ordem, a paz, o perdão, foi necessário ouvir, respeitar e provocar, assim, o assumir conjunta e corresponsavelmente.
Uma nova sociedade dificilmente surgirá sem que antes se exerça a justiça, nas diferentes instituições educativas e seus segmentos, num reconhecimento mútuo de que as pessoas são dom, gratuidade, liberdade, consciência, serviço e não apenas peças de uma engrenagem. Justiça significa comunhão e participação em todos os níveis: econômico, social, político, cultural, religioso. Significa diálogo, respeito na relação consigo mesmo, com o outro, com o mundo e com Deus. Significa cuidar da própria vida, da vida dos outros e de todo o universo criado.
4. Vida e esperança
Deus nos educa através da vida, respeitando a liberdade que ele mesmo nos deu. A realização do ser humano se dá no desenvolvimento e nas relações que estabelece. Essa realização depende da maneira como o ser humano administra o seu tempo para desenvolver um projeto de vida, escolhendo caminhos, atividades e valores com os quais gasta sua preciosa vida.
O homem e a mulher, criaturas de Deus e criadores de cultura, são capazes de gerar vida e esperança. Não basta o ser humano existir, ele precisa criar, transformar, construir, fazer-se. Crescer é ir além de si mesmo. A cada momento o ser humano é outro. O ser humano é um construtor interminável de cultura. Na visão bíblica, homem e mulher são chamados a continuar a ação criadora de Deus. Esse chamado implica cultivar a vida, fazê-la florescer e frutificar. O Deuteronômio diz: Ponho diante de ti a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas com a tua posteridade, amando o Senhor teu Deus, obedecendo a sua voz e permanecendo unido a ele. (Dt 30.19-20.)
A Esperança é vida e a Vida é esperança. Para isto, não basta ter esperança passiva. Esta é conformista. Confia demais em promessas. Aguarda soluções mágicas. A vida requer esperança ativa. A esperança ativa é inconformada, antecipa, madruga na luta para transformar a utopia em realidade concreta. É necessário passar da esperança passiva para a esperança ativa 3. Só assim é possível criar significados e sentidos novos para a vida, evitando sua destruição. Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância (Jo 10.10).
É o Espírito Santo que nos infunde a virtude da esperança e nos oferece motivações sólidas e profundas para o esforço cotidiano na transformação da realidade, conforme o projeto de Deus. Todos nós cristãos estamos nos preparando para a celebração do Grande Jubileu do ano 2000. Celebração que não é só festejar o aniversário de Jesus, mas sim e também celebrar a vida e a esperança cristã. A esperança é olhar a vida com vida. Fomos educados para em tudo ver a morte. Para ver só as folhas secas caídas ao chão, sem perceber a quantidade de vida ao redor. O povo que caminhava nas trevas, viu uma grande luz. Sobre aqueles que habitavam a terra da sombra, uma luz resplandeceu. Multiplicaste a sua alegria, aumentaste o seu júbilo. (Is 9.1-2.)
A treva é símbolo da infelicidade, da opressão. A luz é símbolo de salvação. O contraste com as trevas evoca o nascer do sol, evoca também a glória de Deus. Para ver a glória de Deus é preciso abandonar o olhar pequeno, curto, limitado, olhar de morte e abrir-se para o sol, para a luz. É preciso cantar com os anjos na noite de Natal, anunciar a Glória a Deus.
A salvação, dom de Deus, exige a participação humana. Ela se realiza através da conversão e da perseverança. Os pastores que ouvem a mensagem dos anjos imediatamente vão a Belém e partilham o que receberam. Voltam glorificando e louvando a Deus (2.15-20).
5. Glória a Deus
Louvar e agradecer a Deus é, também, uma das dimensões da salvação. Ser liberto de doença ou escravidão ainda não é tudo. Faz parte da salvação viver uma nova relação com Deus, a partir da libertação experimentada. Um exemplo disso é o leproso curado que volta a Jesus: glorifica e agradece. Os capítulos introdutórios de Lucas são muito ricos em expressões de louvor (cf. 1.46; 1.67-69; 2.13-14; 2.20; 2.28-32; 2.38).
Jesus é a salvação e a faz acontecer. Salvação, hoje e sempre. Salvação, dom de Deus, libertação e vida em abundância para todos. Salvação que implica conversão 4.
Hoje, não permitir o nascimento de Jesus é quando anunciamos a nós mesmos, nossas culturas, nossas ideias, sem nos colocar no projeto de Deus, sem perceber a cultura do outro, sem perceber a vida no diferente. Anunciar o nascimento de Jesus é anunciar a purificação, o olhar puro, a beleza, a leveza da vida. É amar e perdoar. É gostar de si e de ser amado. É viver a felicidade para a qual Deus nos criou.
É possível cantar Glória a Deus quando se segue o exemplo de Tito, que vai para junto da comunidade de Corinto e a escuta para reconduzi-la à paz e ao perdão. Estar junto da comunidade é ouvir suas necessidades e solidariamente promover o bem, a paz, a justiça, o perdão e o bem querer. É cantar Glória a Deus.
Como escutar, hoje, com a mesma intensidade e perceber onde está a graça, a salvação? Deus veio para todos. Ninguém tem o direito de menosprezar o irmão ou a irmã. Todos, solidariamente, somos convocados a dar glória a Deus pelo bem, pela vida, pela esperança, pelo Deus que vive e reina. Glória a Deus que se fez carne e habitou entre nós.
6. Considerações finais
A fé, a esperança e o amor fazem parte do vocabulário paulino (l Ts 13.5-8; l Co 13.7-13; Rm 5.1-5; Cl 1.4-5). A salvação é graça de Deus para todos. Deus Salvador veio para toda a humanidade. Viver segundo a graça de Deus é assumir seu projeto. Assumir o projeto de Deus é olhar as diversas formas de exclusão que o mundo apresenta e fazer acontecer entre os excluídos a graça e a salvação.
A graça e a salvação, que são para toda a humanidade, exigem o cultivo da dimensão comunitária. Então, juntos e juntas, poderemos, como os anjos, cantar o Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens e mulheres de boa vontade. Poderemos celebrar a grande festa do jubileu do ano 2000, numa dimensão social, resgatando a esperança e o sentido profético da denúncia e do anúncio cristão. Poderemos celebrar a beleza da vida, do perdão, da esperança e a certeza da vida em abundância. Poderemos dizer e digo: FELIZ NATAL PARA TODA A COMUNIDADE.
Bibliografia
ARDUINE, Juvenal. Educação antropogenética. Vida Pastoral, v. XXXIX, n. 200, p. 11-16, mar.-abr. 1998.
BELLINATO, Guilherme. Paulo — cartas e mensagens. São Paulo : Loyola, 1979.
BÍBLIA : tradução ecumênica. São Paulo : Loyola, 1994.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo : Paulinas, 1985.
BITTENCOURT, Estevão. São Paulo c seu epistolário. 1981. (mimeo.).
CNBB. Hoje a salvação entra nesta casa : o Evangelho de Lucas, São Paulo : Paulinas, 1997. p. 54-56.
DOO, Harold Charles. Saint Paulaujourd'hui. Paris : Nouvelle Alliance ed Universitaires, 1964.
Notas
1 BÍBLIA : tradução ecumênica, p. 2335.
2 Nota: O texto de Tt 2.11 -14 já foi refletido em Proclamar Libertação, v. II, p. 430ss.; v. XI, p. 128ss.
3 Cf. Juvenal ARDUINE, Educação antropogenética.
4 Cf. CNBB, Hoje a salvação entra nesta casa, p. 54-56.
Proclamar Libertação 27
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia