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Prédica: Isaías 63.7-9 (10-16)
Leituras: Gálatas 4.4-7 e Mateus 2.13-15,19-23
Autor: Albérico Baeske
Data Litúrgica: 1º Domingo após Natal
Data da Pregação: 27/12/1998
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
Tema: Natal

 

Saudando o meu sízigos Gerd Sander, missionário na Nova Guiné, pastor na Baviera, visitador eclesiástico na Ucrânia.

1. Preparando prédica em meio à correria

O culto reúne o maior número de pessoas numa comunidade. Por isso ele é a primeira prioridade de pastores e pastoras — supondo que andem à espreita e a serviço da fé no Deus cujo coração e rosto vemos em Jesus Cristo e cujas palavras ouvimos de sua boca. A prioridade implica, antes de tudo, a preparação para a prédica, esteja ela ao encargo do pároco ou de uma equipe da qual participam não-obreiros.

Na forma de organizar a comunicação do querigma há entre nós bastante criatividade, disposição intrépida e sacrifício pessoal. Há, também, profissionalismo e rotina, desânimo e tédio. E, ainda, superficialidade alegre, teatro barato e boba agitação apelativa.

Convém que pastores e/ou equipe envolvidos com o labor homilético tenham claro o seguinte:

1) A comunidade presente no culto foi convidada e reunida pelo Espírito Santo. Ela está à mercê dele, não dos pregadores. A tarefa destes é servi-la. Servem, ouvindo a palavra de Deus.

2) Para o Novo Testamento, a prédica é acoé — o que foi ouvido (p. ex., Mt 10.27; Rm 10.14ss.; l Jo 1.1; Hb 1.1; 2.1). Pessoas pregam porque ouvem a Deus que se faz ouvir. São suas testemunhas, exegetas de Jesus Cristo (p. ex., At 15.12.14; 21.19), o exegeta único e universal (Jo 1.18).

A pessoa cujo ouvido é despertado por Deus, de manhã em manhã, não se rebela nem recua. Embora ela perca nesse processo a sua vida (sim, a perde!) — e a receba. Deus lhe dá a língua de discípulo onde e quando lhe apraz (Confissão de Augsburgo / CA V, in: Livro de concórdia [LC], 4. ed., São Leopoldo : Sinodal : Porto Alegre : Concórdia, 1993, p. 30.2 |V|). Quer dizer, a pessoa sabe confortar os atormentados e as atônitas, os oprimidos e as deprimidas, as pessoas feitas descartáveis e as excluídas (cf. Is 50.4ss. / Mc 8.27-9.1 par).

3) A língua de discípulo não é língua de artista criativo nem de malabarista espiritual com os melhores dos motivos. Ela transmite o que ouve de Deus. De modo cristalino e direto, curto e grosso. Sem oscilar nem ser cambiante, sem embromação e associações emotivas. Procura o que Deus diz, e não o que seu próprio coração, cabeça e estômago almejam.

Língua de discípulo é língua refreada. Refreada por Deus, que nos aceita, de fato, apesar de sermos como somos. O deus que nos aceita como somos é o ídolo. Aquele que Feuerbach, coberto de razão, tentava eliminar. No que, aparentemente, não logrou êxito, pois o deus-ídolo está bem vivo em nosso meio, sobretudo eclesial. Ele é o objeto da nossa faculdade apetitiva, do desejo do ser humano de se livrar dos males que ele tem ou teme e conseguir o bem que ele deseja, que sua fantasia lhe mostra, o objeto do nosso chamado instinto da felicidade (Ludwig Feuerbach, Preleções sobre a essência da religião, Campinas : Papirus, 1989, p. 168).

4) Como a língua de discípulo cumpre a finalidade para a qual foi fornecida? A pessoa enviada para pregar peleja para conhecer a quem se dirige. Tal conhecimento ocorre na convivência in loco et concreto. Pregadores avulsos, pregadoras ambulantes se desmentem. Pára-quedismo no serviço à pregação é contraproducente. Porque permanece no discurso. Discurso, talvez, crítico, revolucionário. Opta-se fervorosa e brilhantemente pelo povo, porém não se suporta o seu cheiro. Cai-se no enganador embalo das próprias inflamações, desprezando as preocupações terra-a-terra do povo. Toma conta o gosto do palavreado, das belas frases cantantes, dos discursos derramados (P. Prado).

Assim, a melhor falação se evidencia produto e vítima da fraseomania, mais precisamente da faculdade apetitiva à qual Feuerbach se referia. Pois, vez por outra, todo o mundo gosta de uma sacudida, de uma higiene mental, para continuar depois de consciência tranquila, levando a sua vidinha. É papel de teólogos da glória, aliás de porcaria, que escurecem a Igreja, e não de teólogos da cruz que dizem as coisas como são'' (expressões constantes de Lutero).

Mudança, quebra do velho, vida nova brotam onde sucede trabalho conjunto entre pregadores e comunidade. Trabalho continuado, determinado e disciplinado. Trabalho de esmiuçar a palavra de Deus, confrontando-a com o nosso dia-a-dia. Puxando-a para os capciosos detalhes da existência conflituosa, ela não fica sem frutos (cf. Is 55.9ss.). E um trabalho miúdo, de quintal e sem lobby. Trabalho suado e sofrido, durante longo tempo (cf. 42.1ss.; 2 Tm 2.1ss.). Fora disso, Deus levanta o cartão vermelho. A começar para toda homilética, para auxílios homiléticos e a pregação não inseridas em comunidade localizada (evidentemente não restrita a ela).

2. A comunidade

Abordo o texto-base da prédica tendo meu ponto de partida e de chegada em determinada comunidade com que convivi um par de anos. Marcado por tal experiência chego ao texto. Ele me remete de novo para a comunidade e me põe em condições de agir no meio dela e com ela.

Descrevo como experimentei a congregação, embora com a brevidade que o ensejo exige. Evito externar situações comunitárias e pastorais que demandam sigilo.

É uma comunidade com poucos membros, em parte parentes entre si. Uma família, ciente da origem alemã, sustenta todo o seu clã. Dá emprego, empresta dinheiro ou compra o rancho semanal e remédios. Revela intuito e preferências apenas no seu círculo. Aceita gente de cor se são da ala moderada das Assembléias de Deus. É brizolista, furiosa com a corrupção no município, por exemplo. Fiel à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), como a aprendeu e a imagina, não visceralmente oposta a reformas no sentido de uma leitura simplória da sua ordem comunitária Nossa fé — nossa vida. Convida vizinhos e conhecidos para reuniões da comunidade; leva gente em seus carros ao culto. Muito generosa quanto a contribuição e coletas; compra literatura da Editora Sinodal e a passa adiante. Faz questão de que o pastor frequente a sua casa. É ligada à ala renitente da Missão Evangélica União Cristã, cujos viajantes já hospedou e gosta de ouvir. Emite conselhos em questões de vida e fé, no que nem sempre é seguida. Sabe, a seu modo, da sua responsabilidade perante Deus, o mundo e a Igreja. E o deixa transparecer, às vezes. Melindra-se quando questionada a respeito.

Os demais membros da comunidade respeitam o clã, em especial as cabeças. Concordam com a sua opinião sobre Deus, o mundo e a IECLB. Caso, uma vez, não o façam, silenciam em público, são coniventes com o que a turma deles decide e intenta ou se submetem brabos, xingando em casa e/ou se queixando ao pastor (p. ex., em relação à cota de contribuição). As visitas que fazem entre si são antes sociais do que comunitárias. Em vista do número restrito das pessoas ligadas à comunidade, existem muitos agressivos dependentes de álcool. Os motivos vão desde a miséria e a não-aceitação dos fracassos na vida, parcialmente autoprovocados, até a tristeza do coração. Há portadores de deficiências físicas. Um avô contraiu AIDS. Alguns são tratados com comovente carinho e sacrifício financeiro pela família. Além da penúria diária, da falta de trabalho rentável e da cachaça, escapadas extraconjugais e absurdidades sexuais provocam graves crises domésticas. Constantemente pessoas sofrem dos nervos, já que as conjunturas geral e particular provocam que se perca os nervos mesmo. Outras caem doentes, até morreram precocemente, por falta de alimentação saudável e de higiene, de tratamento adequado em tempo hábil, devido a simples desleixo e por não ser acostumado a gastar com a saúde ou por não poder pagar médico. Quando se despende dinheiro nisso, é preferencialmente com benzedura. Pais soturnos e mães submissas paparicam as crianças ou as têm como mão-de-obra gratuita em casa e fora dela. Por via de regra, os pais dispensam a formação escolar delas acima do fundamental. Jovens que pensam Prosseguir nos estudos são desencorajados. Ninguém concluiu o segundo grau. Quase todas as pessoas são crentes da Rede Globo e dependem do noticiário das rádios locais, escasso e filtrado. Um ou outro assina o Jornal Evangélico — necessitamos saber quem faleceu. Tal contexto propicia a fofoca como influente veiculo de comunicação. Esboçam certa criticidade frente à classe política sob o angulo moralista e não-ideológico, mormente quando financiada pelos judeus e quando gasta dinheiro da gente com os índios, esses bichos à-toa. Entretanto, são receptivos ao charme dos políticos em visitas ocasionais e presentes em vésperas de eleições. Ao menos na época da política a gente ganha alguma coisa.

Vivem, pois, na comunidade como no Estado: sem voz, com pouca vez, sendo volta e meia manipulados e cobrados. Da primeira podem sair. O que, na situação dada, significa um brado de liberdade. Alguns o deram. Todavia, mais num ataque de embestamento do que refletidamente. Logo perceberam que mudaram para pior, já que as opções eclesiásticas se regem por proibições. Retornar depois, a brabice impede. Ainda é convicção comum que Igreja é preciso. Menos importante é qual. Tendo cada pessoa a sua — com o mesmo Deus. Comparando as igrejas, a nossa não é tão ruim assim. Ideia que torna difícil a morte súbita da IECLB, mas espelha e espalha profundo marasmo nela. A tradição supera de longe a convicção. Dificilmente alguém vê na Igreja a alavanca de Deus para transformar o mundo e o que nele subsiste. Destarte o pessoal se arrasta na fé. Ela não inspira alegria e libertação. Não renova as forças. Não faz o pessoal formar asas como as águias, correr e não se fatigar, caminhar e não se cansar (Is 40.31).

3. O texto-base para a prédica

Foi proposto Is 63.7-9. Estes versículos iniciam uma unidade que encerra em 64.11. O seu tema é 63.19c. Na opinião uníssona dos biblistas consultados, lemos em 63.7-64.11 um salmo com diferentes elementos do gênero, preponderantemente da lamentação popular (cf. Lm 1; 5; SI 44; 89). É possível que 63.15-64.11 seja a lamentação do povo mais grandiosa que há na Bíblia (C. Westermann). O texto todo foi formulado e/ou composto logo (?) após a derrocada de 587 a.C. (cf. 63.18; 64.9s.). Talvez tenha sido usado nos cultos dos exilados e das gerações posteriores, cabendo ao liturgo 63.7-14 e à comunidade, 63.15-64.11. Estenderam perante Javé a sua aflição com as perguntas e ânsias que provocava. O salmo é influenciado pelo escopo da pregação deuteronomista: Javé agracia Israel — Israel reage com desdém — Javé castiga — Israel grita por socorro (cf., p. ex., Gerhard von Rad, Teologia do Antigo Testamento, São Paulo ASTE, 1973, v 1, p. 322-33 [221-32] e Werner Schmidt, Introdução ao Antigo Testamento, São Leopoldo: Sinodal, 1994, p.138-43 [127-33). Portanto, teologicamente autônomo e mais antigo do que Trito-Isaías (Is 56-66; veja para sua historiar mensagem: p. ex. Wemer H. Schmidt, p. 255-7), em que se encontra incluído. Isaías 63.7-64.11 é amplo demais para uma prédica. Por outro lado, não é plausível apenas a seleção indicada de 63.7-9. Pois os versículos que seguem ressaltam o peso e as consequências de 63.7-9. Sobra decidir, então, onde parar, no v. 14 ou no v. 16. Interrompo após o último, porque a passagem assim se enquadra na visão deuteronomista abrangente e antecipa ou resume tudo o que é dito até o fim do cap. 64. Daí é recomendável deixar-se inspirar pela unidade toda na compreensão e comunicação da perícope, agora delimitada. O título de Is 63.7-16 poderia ser: Javé salvou o seu povo na época de Moisés — por que se recolhe hoje? Conforme o seu gênero literário, a passagem se divide em quatro partes.

l) Is 63.7-9 exalta Javé, referindo-se às suas ações libertárias na história de Israel, mormente no êxodo e durante a trabalhosa jornada no deserto (cf. Êx 34.6; SI 77.12ss.; 103.8; 106.45; 135s.; 145.7s.). Em Israel glorifica-se Javé enumerando as intervenções dele em seu favor. Dito de forma inversa: relacionar as interferências históricas de Javé é igual a engrandecê-lo (cf. no hebraico o paralelismo teológico assertivo entre hasedê e tehillot). Eis a confissão central e sempiterna deste povo. Reunido em culto, louva e agradece, lembra, memoriza e atualiza os atos e fatos históricos criados por Javé. Já que dão corpo à sua condescendência graciosa (quénosis) e à sua fidelidade. Com efeito, estas não são conceitos ou ideias, em absoluto características abstraías de Javé. Pelo contrário, são realidades que estabelecem, promovem e consumam a história de Israel. Ela testemunha existencialmente que a condescendência graciosa e fiel de Javé aconteceu em abundância de forma concreta, histórica e localizável. Para Israel, Javé inexiste fora de tal concretização. Nunca especula sobre a sua aseidade.

Destarte se deu a aliança — aliança com que Javé constituiu Israel em o meu povo. Fora de qualquer dúvida, esse povo é apenas seu, nada senão isso. Proporcionando-lhe a experiência histórica da sua resolução graciosa e fiel, Javé visou filhos não traiçoeiros. Eis o seu projeto. Na sua gratia praeveniens, confiou em Israel. Motivo pelo qual volta a reafirmar a aliança, ao tornar-se, constantemente, o resgatador em meio a tamanhos aperreies do seu povo.

Sem intermediários, Javé, pessoalmente, interveio. Foi a sua face, ou seja, ele próprio presente (cf. Êx 33.14-16; Dt 32.12) e agindo. A face de Deus é a revelação da graça de Deus (L. Köhler, ap. H.-J. Kraus), aqui e agora. A sua grande bondade, a sua compaixão e o seu amor o moveram para realizar o seu opus proprium: resgatai' (cf. v. 16 [observe guaál / goél, termo teológico-chave em Dêutero-Isaías) o povo para si. Liberta-o de todas as amarras, de todos os opressores e de todas as determinações opostas ao seu Libertador. Ora, é esta a função de Javé na aliança com Israel (cf. L v 25.48s.,23ss.; Is 41.14; 43.14; 44.6,24; 48.17; 49.7,26; 54.5,8). Como o pai levanta e carrega o seu filhinho em terreno cheio de cardos e espinhos, assim Javé levantou Israel e o carregou pelas misérias e o guiou em meio aos perigos no deserto. Tal qual a mãe ergue, de caso a caso, a sua criança que caiu e se machucou e, de resto, vive cuidando dela o tempo todo, do mesmo jeito Javé tratou o seu povo (cf. Dt 1.31; 32.11ss.; Is 46.3). Ele o salvou de vez em vez e ainda o conservou constantemente. Não no grito ou por emoção momentânea, mas de maneira proposital, planejada e permanente desde os primórdios da sua relação.

A grandeza e a glória de Javé residem nesse amor, nessa compaixão e bondade para com Israel. O ser de Javé aí está comprometido. Ele não quer ficar só. O seu ser consiste em procurar comunhão. Neste afã, se entrega à vida e nas mãos do seu povo (cf. Dt 29.3; Is 9.Is.; SI 31.8). Em toda a tribulação dos israelitas, ele próprio fica atribulado (Jerônimo, ap. F. Delitzsch) — tal o envolvimento existencial dele com o povo. Fato que propicia unidade e continuidade a Israel através dos tempos. Perante, com e em Javé, o povo na atualidade é o mesmo de então, e vice-versa. Passado e presente são um só e único agir de Javé (L. Köhler, ap. H.-J. Kraus). Um Deus assim, Javé tão direto e permanente junto ao povo, sofrendo com ele, perfaz a peculiaridade da fé dentro de Israel (cf. Is 63.15c-16a).

2) Is 63.10: Ao grau de intimidade entre Javé e o seu povo (ler toda a perícope uma vez sob este ângulo) corresponde a reação de Javé quando Israel se rebela (cf. Nm 20.10; Ez 2.8; Jz 2.13; 3.7; Dt 32.15ss.; SI 78.10s., 17s.,32,41,56; 106). Ou seja, o povo deixa de viver conforme a aliança, o que equivale a jogá-la para o beleléu.

O seu Espírito santo (formulação única no Primeiro Testamento; exceto em v. 11 e SI 51.13b) é Javé, ele mesmo, atuando nos seus juizes e reis cujo coração foi plenamente fiel a Javé (cf. l Rs 15.14.11) e falando por meio da sua turma de profetas e guias do povo (Nm 11.25ss.; Dt 34.9). O próprio Javé, se opondo aos espíritos adivinhos e aos pseudoprofetas (cf. Zc 13.2). Javé, ele próprio, fazendo valer o seu intento em Israel, desdobrando a sua justiça e garantindo o culto que lhe agrada. Querer existir independentemente do Espírito santo, desprezar a sua interpelação, é magoá-lo. Javé ama (cf. em Is 63.7-9 o acúmulo de expressões que o sublinham), logo pode ser magoado. Ele é vulnerável.

Tendo a aliança como pano de fundo, a atitude do povo é simplesmente inconsequente, incompreensível e desnaturada. Enquanto a de Javé é natural, compreensível e consequente. Por ansiar pela aliança, ele vira inimigo e guerreia contra quem não a cumpre (cf. Lm 2.5; SI 78.59ss.). Ele a cumpre e insiste que Israel também o faça. O não-cumprimento da aliança é o povo pretender andar sozinho, dispensando a grande bondade, a compaixão e o amor de Javé. É crimen laesae maiestatis, o que provoca o zelo do criador da aliança. Pois ele entende que a sua parte é levantar e carregar a quem fez parceiro.

Um Deus vulnerável que se volta contra os seus adoradores — outra peculiaridade da fé dentro de Israel. O povo israelita está na mão do seu Deus, e não vice-versa. Javé dispõe sobre Israel, e não vice-versa. Reside aí o seu senhorio. O que inclui que o seu povo, enquanto rebelde, caia na completa insensibilidade para com suas proezas (cf. de modo mais arguto Is 53.17ab, 18,19ab). Este povo se vê permanentemente às voltas com o próprio Javé, por bem ou por mal. Tudo no tempo todo lhe vem dele. Em absoluto ocorre que Javé apenas permitisse ou deixasse acontecer as coisas. Ao contrário, ele é o semper actuosus (cf. hu ressaltado). Israel jamais se consegue desvencilhar dele.

3) Is 63.11-14: A duríssimas penas Israel chegou a se lembrar dos tempos antigos (cf. Dt 32.7; SI 44.1-9; 80.9-12). Conscientizando-se do jeito em que Javé começou a relação com ele, o povo inaugura a sua penitência. A recordação inicia a volta de Israel à aliança.

O povo redescobre como Javé agiu com Moisés, seu servo, o pastor do seu rebanho (o destaque conferido a este na saída do Egito é peculiar, cotejando, p. ex., com Dt 26.5ss. e SI 80): salvou-o no Nilo (cf. Êx 2.5.10). Preparou-o pessoalmente (cf. acima o que foi dito com referência a seu Espírito santo) para ser seu representante e servente durante a libertação do Egito. Provido com o Espírito santo de Javé (Nm 11.17.25) — o poder surpreendente e irresistível tanto para o seu portador quanto para o que ou quem ele enfrenta — e deste modo impelido (cf. Jz 3.10; 6.34; 11.29; 14.6), Moisés executou a passagem maravilhosa para a liberdade pelo Mar de Juncos (cf. Êx 14). (Segundo o original hebraico parece melhor relacionar o v. 11 com Moisés do que com o povo.)

Moisés o conseguiu, sustentado e acompanhado pelo braço glorioso de Javé, que fendeu as águas (no hebraico, o termo águas é análogo ao de Gn 1.2). Javé repetiu a sua ação criacional, triunfando de novo sobre o caos das águas (cf. Êx 15.5,8; Js 51.10; SI 106.9). O resultado desta vez foi que Israel passou pelo pântano como o cavalo trilha o deserto, quer dizer: para os pés do povo, o fundo do mar virou areião seco e duro (cf. Êx 15.8; Is 51.10; SI 77.17). E, ainda, Javé conduziu o povo para o repouso, o torrão prometido e derradeiro (cf. Dt 3.20; 12.9; Gn 49.15; SI 95.11), como o gado desce para um vale. Quer dizer: o povo podia entrar em Canaã, tranquilo, bem protegido e guiado, sem perigo algum; após a longa e pesada marcha pelo deserto, se deliciar na terra que mana leite e mel (Êx 3.8) como o rebanho livre que vem da montanha com vegetação escassa para as vargens e ribeiros da baixada. De jeito pessoal e direto (cf. SI 143.10 e o dito acima com referência a Espírito), Javé efetuou tudo com a determinação de se auto-revelar como criador, impulsionador e consumador da história, cujo núcleo centrípeto é a sua história com Israel. A particularidade deste povo não se localiza nele, mas no fato de que Javé o ama (cf. Dt 7.7ss.) e o colocou no seu colo. O que corresponde a assegurar para si mesmo um renome eterno e fazer para si um nome glorioso.

As façanhas salvíficas de Javé no princípio provocam, com toda a força, a pergunta tempestuosa e penetrante: Onde está ele hoje (duas vezes no v. 11, cf.Jr 2.6; Is 51.9s.)? Pergunta que revela dor insuportável. Embora a rememoração das ações libertárias de Javé seja uma só louvação dele, na situação em que Israel se encontra de momento pode apenas resultar em desespero. O presente do povo se torna terrível justamente quando comparado com outrora. Tão terrível que nem há mais fôlego para descrever a atualidade. Pois a sua história é o lugar do encontro de Israel com Javé, se bem que aberta e comentada pela palavra dele. Insuportável mesmo é a dúvida se Javé ainda é aquele tu (que) conduzes o teu povo. Israel está afogando na mais profunda atribulação existencial possível — na da fé em Javé. Será que Javé esqueceu do seu povo e de tudo o que realizou em seu benefício? Ele se fechou em definitivo para Israel?

4) Is 63.15-16: O que é transmitido de Javé em Israel não vira tradição estéril e venenosa, mas anima a esperar por Javé nos dias que correm. A rememoração da história passada evita que o povo desfaleça — e causa os seus gritos. Gritando, resiste à ausência de Javé. Na fornalha ardente desta, recorre a ele. Como alguém que submerge agarra uma tábua, assim Israel agarra a sua história passada. Não há alternativa. Se há final feliz, só aquele que o próprio Javé efetua. O presente, sobre o pano de fundo do passado, leva Israel a crer e confiar que Javé salva da ausência de Javé. Sem tal confiança, o gritar do povo seria hipocrisia.

Logo, clama: Olha desde o céu e vê (cf. Sl 14.2; 113.6; Lm1.11). Bem sabe que tal iniciativa de Javé resulta em mudança da sua sorte (cf. Êx 3.7ss.). Céu não é um espaço distante e transcendente, mas caracteriza a presença abrangente de Javé (cf. l Rs 8.27), atuando em contraposição ao que ocorre no mundo (cf. Is 6). O povo implora a Javé, perguntando com agressividade, e até mesmo acusação, pelo seu querer e poder intervir (cf. Is 63.11) agora. O que traz ainda mais à luz a abrangência e a profundeza da desgraça que se abateu sobre o povo. Roga pelo seu zelo (cf. Êx 20.5; Is 9.6; 26.11) no sentido da manifestação do seu afeto e pelo seu valor no sentido do empenho de sua força de persuasão em favor da gente arrasada. Suplica o frêmito das suas entranhas no sentido de fazer das tripas coração e a sua compaixão no sentido de comoção no seio de mãe (cf. a acepção própria do vocábulo hebraico; cf. acima Is 63.7-9). Tudo com a finalidade de que Javé abra brechas no beco sem saída em que Israel se meteu com a sua rebeldia contra ele. Eis o jeito como o povo se chega a ele. A sua última esperança contra todas as esperanças já mortas pela realidade para lá de desalentadora (cf. Is 63.18s.; 64.10s.).

O povo condensa isso chamando Javé de o nosso pai (cf. 64.7; Dt 32.6). (Javé é raras vezes confessado como pai. O que se deve à ênfase de Israel em diferenciar o seu Deus das divindades cultuadas na circunvizinhança. Javé não é nenhum deus da fertilidade [cf. Jr 2.27], arquétipo do pai físico e este, retrato fiel daquele. Javé é o criador e o ser humano a sua criatura, não o seu filho, a sua filha. Quando Israel uma vez denomina Javé de pai e a si, seu filho, emprega o termo para exemplificar a relação entre ambos fp. ex. SI 103.13] ou para definir a escolha a que Javé procedeu [p. ex. Êx 4.22; Os 11.1] ou ainda para descrever a adoção do rei por Javé [p. ex. SI 2.7; 89.27s.; 2 Sm 7.14].)

O seu pai, a saber, o vivo, único e exclusivo — este, sim, tem condições de tirar Israel da desgraça. Os seus pais consanguíneos, os vultos da sua fé, os heróis e as heroínas da sua história, a começar com Abraão e Israel (= Jacó [Gn 32.28s.]), morreram, não conhecem o povo nem sabem de nada e também nada arrumam (cf. Ec 9.10). Eles também só receberam as promessas de Javé e experimentaram as suas ações libertárias, sem dignidade ou mérito da parte deles. Em absoluto, resolvem tradição religiosa, estirpe racial, antiguidade venerável dos figurões e fatos, e vinculação sentimental aos mesmos. Nada resta ao povo a não ser confiar, confiar perseverantemente em Javé, o pai que o formou (cf. Is 43.1) — pai cujo sinônimo é resgatador (cf. 63.8): o fundador da aliança e, em consequência disso, comprometido com a libertação de Israel (cf. Jr 32.6ss.; Rt 4). (Nisso se evidencia que Israel 'historizou' o conceito cultual canaense de 'pai' e de 'paternidade' [E. Haller].)

Israel se aproxima de Javé em razão das suas inúmeras provas de misericórdia (cf. SI 115.1; Dn 9.18). A existência do povo se assenta tão inteiramente na compaixão de Deus ao ponto de que, se esta for perdida, o povo se saber perdido (C. Westermann). Por isso se refugia nas atitudes de Javé, o pai, implorando-lhe para que se comprove de novo como tal — embora nada dele sinta. Volta-se ao resgatador, pedindo-lhe que desempenhe de novo a sua função — embora ele o faça sofrer (cf. Is 63.17ab,18,19ab). Daí o brado (bem mais explícito em Is 63.19css.), desesperadoramente audacioso e transbordante de saudade: Não te refreies (versão aguçada da última linha do v. 15, traduzindo G e considerando 64.11), Javé, nosso pai! Não renegues nem suprimas a tua postura de pai! Impetuoso, o povo insiste com Javé para que — finalmente — saia do seu recolhimento, dê vazão à sua afetividade paterna e à sua comoção materna (cf. acima Is 63.7-9). Resgatar os seus filhos e as suas filhas é o seu direito, se não o seu dever de pai (G. Fohrer).

(Recomenda-se partir do texto hebraico. Caso não seja possível, seguir a versão da Bíblia de Jerusalém; todavia com as mudanças propostas: v. 11 [linhas 3ss.] e v. 15 [linha 4 terminando com … compaixão? e linha 5 aproveitando G].)

Sugestões para prédicas

Na comunidade descrita, eu realizaria uma sequência de pregações sobre Is 63.7-16. Os blocos delineados abaixo de jeito nenhum correspondem a um número idêntico de prédicas. A meu ver, servem para mais. Tanto a situação da comunidade quanto a mensagem bíblica o aconselham. Esmiuçando a ambas, pode-se dar o encontro entre elas. São imperativas a sua leitura delicada e dedicada e a sua dosagem contínua e determinada. Se o Espírito Santo dispor, a comunidade percebe e enfrenta a sua situação. E a perícope chega até a comunidade, sendo compreendida e vivida.

1) Assim eu aprofundaria o dado básico da história bíblica da salvação de que Javé não anulou a sua aliança com Israel. O seu amor, a sua bondade e a sua compaixão continuam teimando com esse povo. O judeu Jesus Cristo morreu e foi ressuscitado preferencialmente em seu favor. Antes de todos, o Deus da Bíblia constituiu seu povo os descendentes de Abraão, Isaque e Jacó, para o bem ou para o mal. Aliás, antes de todos os manipulados, sobrecarregados e oprimidos, embora como animação para eles. Hesito em identificar, sem mais nem menos, estes com aqueles.

O antijudaísmo cristão é blasfêmia contra o Deus da Bíblia e porta de entrada para qualquer discriminação e exclusão de pessoas. O judeu é o protótipo do outro, que desafia os seres humanos a aceitar a alteridade, convivendo em abertura e aprendizagem mútuas, em igualdade fraterna e liberdade solidária. Quem se volta contra os judeus logo odiará os negros, índios e homossexuais. Em particular, Israel desafia a cristandade a comprovar que foi alcançada por Deus, que confessa ser Jesus Cristo a corporificação universal do seu amor, da sua bondade e compaixão.

Isto é parte-chave da fé e vida cristãs, que acompanha toda a história da Igreja. Há pouquíssima consciência disso entre nós. Fato que desmascara o nosso ser cristão. Exatamente aí começa a recuperação da nossa identidade (cf. Albérico Baeske, Israel — o povo amado de Deus, Anuário Evangélico 1978, São Leopoldo : Sinodal, 1977, p. 59-68; vv. aa., Estudos Teológicos, São Leopoldo, v. 33, n. l, p. 9-46, 63-82, 1993).

2) Seguindo o testemunho da perícope no contexto da congregação mencionada, eu chegaria à lamentação bíblica. Na comunidade, todos e todas se lamentam. Têm motivos de sobra. Felizmente, se lamentam — muitas vezes o único sinal de que vivem e sentem as mil e uma misérias. Ainda assim, os seus lamentos viram lamúrias que bloqueiam as relações interpessoais, paralisam as reações contrárias à conjuntura e criam dependências dos politiqueiros, do pessoal de terreiros ou de psiquiatras, que custam caro.

Uma ou outra pessoa, individualmente, leva sua lamentação a Deus. Mas a comunidade, em conjunto, é desajeitada para isso. Sente vergonha, falta-lhe coragem. Carece de exemplo. Necessita de estímulo. Precisa se treinar nessa expressão concreta da fé bíblica. Urge que a comunidade aprenda com a sua irmã mais velha, aquela do exílio babilônico. Em especial, no que diz respeito à sua experiência, convicção e esperança de que Deus não age lá em cima, nas regiões superiores, mas cá embaixo, nos grotões da nossa vida cotidiana (cf. Dietrich Bonhoeffer na prisão: sempre sinto de novo como penso em termos do Velho Testamento, Resistência e submissão, 2. ed., São Paulo : Paz e Terra; São Leopoldo : Sinodal, 1980, p. 85s., 103, 132s., 134s., 140, 162s.,181s.).

Daí eu formularia todos os problemas que percebi na comunidade e com ela em lamentações dirigidas a Deus. Entretanto, no intuito nítido e declarado de instigar a congregação reunida a tomar doravante iniciativa idêntica nos cultos. Visa-se mais do que a chamada comunidade poimênica. Pois esta corre o perigo de continuar entre si e se auto-ajudar. Com a lamentação conjunta perante Deus, a comunidade expõe a perplexidade que lhe causa o seu desamparo e, ao mesmo tempo, confessa de quem lhe vem o seu socorro (na linha do texto-base cf. Martinho Lutero, in: LC, p. 394.1-402.48; 370. l s : 448.9-450.24; 372. l s : 457.1-461.34; 375.21 : 474.119-24; m: Castelo Forte 1983, 2. ed., Porto Alegre : Concórdia; São Leopoldo : Sinodal, s. d., 26/02; O. Bayer, p. 61-9).

3) Puxando o texto-base para a comunidade, ou seja, completando as linhas esboçadas por ele, chega-se aos bruta facta que continuam a história bíblica da salvação: o nascimento e a vida, a luta e solidariedade, a morte e ressuscitação de Jesus de Nazaré. Gálatas 4.4-7, trecho escolhido para acompanhar Is 63.7-16, o salienta com propriedade. Inclusive deixa cristalino que a ruminação (Lutero) da passagem do Primeiro Testamento jamais se restringe à época da Festa de Cristo. Embora seja bom começar a ruminá-la neste período.

A iniciativa surpreendente, a presença indelével, a solidariedade total e a compaixão universal do Deus da Bíblia se instalam, de vez e para sempre, com o menino do curral, Jesus. Encarnado, Deus é o Deus pleno. Deus na sua maior auto-afirmação. Cujo ser é constante humildade, despojamento, misericórdia e serviço (H. Bezzel). Mais: Cristo não vira meu cunhado ou irmão, mas, isto sim, o que eu sou. Ele toma a nossa natureza e dela participa de maneira que sucede maior parentagem do que aquela que existe entre homem e mulher, embora na terra não haja maior do que esta (M. Lutero, WA 29, p. 644.14-7). Eis o Deus da aliança alargada. Deus, nosso Pai mesmo. Ele que nos criou e preserva, resgata e restitui. O Deus conosco em carne e osso (neste sentido cf. Martinho Lutero, Obras selecionadas [OS], São Leopoldo : Sinodal; Porto Alegre : Concórdia, 1996, v. 6, p. 20-78; Carl E. Braaten, Robert W. Jenson [Eds.], Dogmática cristã, São Leopoldo : Sinodal, 1990, v. l, p. 512-27; Jürgen Moltmann, Paixão pela vida, São Paulo : ASTE, 1978, p. 11-8, 49-64).

Ora, Deus não apenas em carne e osso, certa vez, naqueles dias (cf. M. Lutero, OS, 1992, v. 3, p. 426). Mas hoje, no pão, na nossa boca, coração e colo (id., WA 23, p. 156.30s.). A Ceia do Senhor é a Festa de Cristo, aqui e agora. Na Ceia do Senhor ocorre a insofismável intervenção libertadora de Deus, material, corporal e convivencialmente. Deste modo, empurra a história rumo à sua paz com a sua justiça entre ele e os seres humanos e destes entre si. Non gaff gen coelum. Não fita o céu! Cá embaixo o tens! (Lutero não cansa de repetir isso). Os cristãos e as cristãs vivem da Ceia do Senhor. Esta os conserva em marcha, os enche de alegria, concretiza a sua libertação e os leva a abraçar a liberdade, os faz deitar raízes na esperança que excede em tudo infinitamente além do que pedem ou pensam (Ef 3.20; cf. LC, p. 518.1-529.39; 609.1-653.96).

4) Auscultando o texto e fazendo um check-up da comunidade, deparo-me com o fato aterrorizador de que Deus pode guerrear contra nós. Não apenas contra uma pessoa ou família, mas contra o seu povo. A Bíblia é inequívoca a este respeito, referências são dispensáveis devido à sua superabundância. Tão presente tal fato está no Primeiro e no Segundo Testamentos (cf. a comparação da palavra de Deus com a chuva de verão, que não retorna ao lugar por onde passou, empregada por M. Lutero, in: OS, 1995, v. 5, p. 306.26-307.5) quanto ausente na mentalidade cristã e no conceito que as igrejas, todas elas, guardam de si. Ora, não é um sinal da guerra de Deus contra nós que pouca gente cristã cogite dessa terrível possibilidade? E pessoas não-cristãs constatam que Deus deve ter deixado as igrejas e abandonado os cristãos e as cristãs? Em vista daquilo que somos e apresentamos, elas podem reagir de modo diferente?

É verdade: magoamos a Deus. Nós o procuramos onde ele não está: no alto, no festivo e espiritual, em vez de buscá-lo no pesado, no material e humano. Não cooperamos com ele no lidar com o pesado, o material e humano; nem ficamos ao lado de Deus na Sua paixão (cf. D. Bonhoeffer, p. 177). Nós o desejamos como executivo nato dos nossos planos para a vida e o que imaginamos que venha depois, em vez de ser o livre amante de nossa vida e futuro. Ansiamos por ser iguais a ele, estabelecendo o que é bom e o que é mau. Já que percebemos, volta e meia, que isso só piora as coisas, queremos que Deus nem exista ou, melhor, que nós fôssemos logo Deus (cf. M. Lutero, in: OS, 1987, v. l, p. 16 [17.]). Eis a obsessão do ser humano. Ela fica especialmente perversa quando se diz, no ambiente cristão: Deus se torna ser humano para que nós nos tornemos Deus. Ideia fixa que acompanha a cristianismo desde sempre e, muitas vezes, o determina e asfixia. O que resulta na nossa falta de humanidade:

“Muitos são aqueles que se deixam tocar por devoção sonhadora quando ouvem falar da pobreza de Cristo, se enfurecem com os cidadãos de Belém, vociferam contra a sua cegueira e ingratidão, pensando que, se eles tivessem estado lá, teriam prestado excelente serviço ao Senhor e à sua mãe, e não permitido uma mesquinhez dessas. Mas não percebem quantos dos seus semelhantes ao seu lado precisariam da sua ajuda… Por que não comprovam aqui o seu amor? É mentiroso e errado se achas que querias ter feito o bem a Cristo, se não o fazes a esses. Se tivesses estado em Belém, terias te preocupado tão pouco com ele como os demais.” (Id, in: WA 10/1/1, p. 87.6-17).
Em outros termos: passamos da ética à moral (cf. E. Dussel, p. 61-72, 83-92) e por cima do amor, da reconciliação — e do conflito (cf. J. M. Bonino, p. 87-104).

Deus, o amoroso sensível e vulnerável, não aguenta isso. Ele reage, nos entregando conforme os desejos dos nossos corações. Caímos, pois, na situação do sem temor a Deus, sem confiança em Deus, na situação determinada por nosso egoísmo e cobiça (CA II, in: LC, p. 64. l s.). Deus nos mantém e move assim, razão pela qual nem nos damos conta do perigo que nos cobre. Ficamos gente cega, surda e muda em relação a ele e, por conseguinte, não nos enxergamos. De fato, a noite nos envolve (cf. Hinos do povo de Deus [HPD], diversas edições, São Leopoldo : Sinodal, em diversos anos, 155.2) enquanto vivemos na ilusão de estar em pleno meio-dia. Eis o Deus contra nós, do qual só ele próprio nos pode salvar. Ele abre os corações e destapa os olhos e ouvidos — onde e quando lhe apraz. Para que isso suceda conosco, gritamos a Deus, desesperada e esperançosamente ao mesmo tempo. Refugiamo-nos em Deus, apelando para ele contra o próprio Deus (segundo M. Lutero, ap. O. Bayer, p. 62). Destarte a lamentação bíblica adquire a sua expressão evangélica, a saber, cristológica.

Lembretes para a liturgia

Não há limite para a criatividade. Que ninguém barre ou atrapalhe o Espírito Santo. Importa que a comunidade se articule e manifeste. Motivo por que avisaria, anteriormente, qual a temática do culto. Assim conseguiria incentivar a congregação a trazer breves formulações (preparadas em casa ou ad hoc) para a confissão penitencial, a coleta e a intercessão. Eu apenas coordenaria esses momentos. Todavia, cuidaria para que combinassem com a abordagem do respectivo aspecto do texto-base. Pois muito se perde nos cultos devido à dispersão ou contradição temáticas.

Não se podem valorizar suficientemente os cantos, em particular quando ensaiados e repetidos por princípio de edificação e envio da comunidade.
Para o primeiro bloco temático escolheria de HPD 2.39s., O povo canta (OPC), diversas edições, Palmitos : PPL, em diversos anos) 216s.; para o segundo, HPD 147, 160, 212, 257, OPC 32, 40-43, 46s., 50s., 60, 72s., 76s., 98s., 102s., 213-15.218s.; para o terceiro, HPD 14s., 50, 57, 59, 63, 65, 155s., OPC 81, 96s., l00s., 266s.; para o quarto, HPD 3, 23, 42, 150, 291, Hinário da IECLB, diversas edições, São Leopoldo : Sinodal, em diversos anos, 110, OPC 15, 88s., 92s., 236s.

Textos para ruminar

Com referência a 1:

IWAND, Hans Joachim. A justiça da fé. 2. ed. São Leopoldo : Sinodal, 1981, p.5-13.

Com referência a 4.2) e 4):

BAYER, Oswald. Viver pela fé: justificação e santificação. São Leopoldo : Sinodal, 1997, p. 61-9.

Com referência a 4.4):

BONINO, José Miguez.. A fé em busca de eficácia. São Leopoldo : Sinodal, 1987. p. 87-104.

DUSSEL, Enrique. Ética comunitária. 3. ed. Petrópolis : Vozes, 1994. p. 61-72, 83-92. (Teologia e libertação / Série III / A libertação na história, VIII).

LUTERO, Martinho. Obras selecionadas [OS]. São Leopoldo : Sinodal; Porto Alegre : Concórdia, 1993. v. 4, p. 99-108, 123-54.

Textos para consultar

Com referência a 3:

KRAUS, Hans-Joachim. Das Evangelium der unbekannnten Propheten Jesaja 40-66.
Neukirchen-Vluyn : Neukirchener, 1990. p. 224-33. (Kleine biblische Bibliothek).
FOHRER, Georg. Das Buch Jesaja : 3. Band : Kapitel 40-66. Zürich/Stuttgart : Zwingli,
1964. p. 246-56. (Zürcher Bibelkommentare).

WESTERMANN, Claus. Das Buch Jesaja : Kapitel 40-66. 4. ed. Göttingen : Vandenhoeck, 1981. p. 305-16. (Das Alte Testament Deutsch, 19).

Com referência a 3 e 4:

KIRST, Nelson. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1983. v. I e II, p. 159-67. SCHWANTES, Milton. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1987. v. XIII, p. 91-7.

Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia