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Prédica:1 Coríntios 1.1-9
Leituras: Isaías 49.1-6 e João 1.29-34 (35-41)
Autor: Gottfried Brakemeier
Data Litúrgica:2º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 17/01/1999
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
 

1. O texto

1) A introdução à Primeira Carta aos Coríntios apresenta as costumeiras características formais: ao prescrito (vv. 1-3), mencionando os remetentes e os destinatários e apresentando uma saudação, segue o proêmio (vv. 4-9), no nosso caso uma oração de ação de graças. É o modelo epistolar judaico que o apóstolo Paulo prefere. Ainda assim, ele se sente livre para adaptar as formas tradicionais a seus propósitos. Por via de regra, as introduções às cartas revelam algo dos motivos das mesmas e dos assuntos tratados a seguir. Assim também nesta carta, dirigida à comunidade de Corinto.

2) Quem escreve é Paulo, pela vontade de Deus vocacionado para ser apóstolo de Jesus Cristo (v. 1). Não se trata, portanto, de carta particular. Paulo reivindica para ela autoridade apostólica. A natureza oficial da carta recebe reforço pela menção de Sóstenes, co-remetente, embora não co-autor. Seria errôneo, pois, qualificar o conteúdo da carta como opinião particular de Paulo. A verdade evangélica está em jogo.

Paulo escreve à Igreja de Deus que está em Corinto (v. 2). Toda comunidade local é representação da Igreja universal de Jesus Cristo. Ela é composta de santos ou santificados. O termo não designa o moralmente perfeito, e sim o que pertence a Deus. A Igreja e seus membros foram adquiridos por Jesus Cristo. Portanto, eles são propriedade divina. E sua vocação consiste em documentar essa verdade. Isto na comunhão de todas as pessoas que invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo. Um voto de graça e paz da parte de Deus Pai e de Jesus Cristo encerra este cabeçalho.

A leitura da carta mostra que havia não poucos motivos de insatisfação com a comunidade. E Paulo é severo em sua crítica. Mas ele julga que antes de mais nada compete agradecer. O apóstolo agradece a Deus pela graça dada aos coríntios em Cristo (v. 4). Diz que a comunidade se tornou rica e menciona em particular a palavra e o conhecimento (v. 5). De lato, a comunidade de Corinto era dinâmica, carismática, privilegiada com muitos dons (vv. 6+7). Especialmente nos caps. 12a 14 o apóstolo vai voltar a esse assunto
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Essa riqueza gerou conflitos. Mesmo assim, Paulo não começa com a crítica. Ele lembra a comunidade do que tem recebido e, conseqüentemente, da responsabilidade que com isso assumiu. É interessante que a perspectiva, no final do proêmio, se volta ao futuro, ao dia de nosso Senhor Jesus Cristo (v. 8). Isto significa que a comunidade cristã é comunidade a caminho. Ela ainda não chegou lá. Deve crescer e procurar tornar-se irrepreensível diante de seu Senhor. Dessa maneira, o apóstolo, desde já, coloca parâmetros de autêntica existência cristã, disciplinando o entusiasmo na comunidade de Corinto e chamando-a de volta ao chão da realidade. Nisso a comunhão com Cristo, para a qual Deus convoca, é pressuposto indispensável (v. 9).

3) Procurando resumir o conteúdo do trecho, podemos ater-nos a três termos ou assuntos que se destacam:

a) Graça. É dela, não das conquistas próprias, que a comunidade vive. Jesus Cristo está na raiz da comunidade cristã. Frente a Deus não há nada para conquistar, mas tudo para receber. Sua graça (charis) se traduz em carismas, que constituem a riqueza de toda comunidade cristã. Se o fundamento da comunidade é a graça, ou seja, o que ela recebeu, não há motivo para a vanglória. E se há abundância de carismas, vai haver serviço mútuo, de uns aos outros.

b) Gratidão. Ela nasce da graça e é seu fruto natural. Eucharistein (agradecer) deriva-se de charis. É a reação devida ao dom recebido. Comunidade cristã é comunidade doxológica. Ela louva a Deus e o glorifica neste mundo. O texto em pauta contém elementos básicos de uma teologia do louvor. Glorificando a Deus, a comunidade e seus membros são também eles beneficiados. Pois o espírito do louvor é a alegria (chara!). E alegria é poderoso remédio contra os males desta vida.

c) Vocação. Todo dom implica um chamado. Paulo é vocacionado para ser apóstolo (v. 1), os membros da comunidade para serem santos (v. 2), todos foram chamados para a comunhão com Jesus Cristo (v. 9). A vocação tem em vista o testemunho (v. 6) por palavra e ação. Inclui também a vontade de perseverar firme até o fim (v. 8), ou seja, a comprovação da fé nas lides diárias. A comunidade cristã, se realmente grata, será ativa, sal e luz em seu ambiente imediato. Para tanto não precisa ser forte nem ter muitos recursos. A comunidade de Corinto é o exemplo. Era composta majoritariamente de pessoas humildes, fracas, desprezadas (cf. 1.26s.). Comunidade precisa ser apenas evangélica.

Paulo inicia a Primeira Carta aos Coríntios com um pequeno curso de eclesiologia. Lembra os/as destinatários/as da origem, tarefa e função da comunidade cristã. De tal lembrança também as comunidades da Igreja Evangélica d.1 Confissão Luterana no Brasil (IECLB) têm necessidade.

2. A situação

Vivemos em outro mundo e os problemas enfrentados na IECLB já não são os mesmos como os vividos pela comunidade de Corinto. Por outro lado, há coisas que nos unem com aqueles/as cristãos/ãs do séc. l. Tanto a diferença quanto a semelhança de situação deverão ser respeitadas:

1) O que não mudou é a fonte de vida da comunidade cristã, que é a graça de Deus. Ela é perceptível sobretudo no evento de Jesus Cristo, no evangelho. Ela santifica os membros, confere e desperta dons, chama para o testemunho ativo da fé, da esperança e do amor neste mundo. Conseqüentemente cabem à comunidade evangélica a gratidão e o louvor a Deus. Não só sua origem, também sua missão é sempre a mesma.

2) O que mudou são as circunstâncias desse testemunho e da vivência cristã. Talvez o nosso problema na IECLB não sejam as comunidades superativas como aquela de Corinto, e, sim, as comunidades acomodadas. Sob outros aspectos, aliás, pode haver surpreendentes afinidades. Seja como for, cumpre perguntar pelos nossos motivos de agradecer a Deus. Não são também as comunidades da IECLB ricas, dotadas de grandes potencialidades — apesar de tudo? Comunidade cristã que já não descobre motivo nenhum para agradecer a Deus deixou de ser cristã.

3) Isso não significa permissão para ignorar nossas dificuldades. O apóstolo Paulo, nesta sua carta, falou em termos fortes dos problemas em Corinto. Mas também a ação de graças deve ter sua vez. E a vez é hoje. Por que é tão importante isso?

a) Gratidão a Deus é uma expressão de realismo. (…) que tens tu que não tenhas recebido? Assim o apóstolo Paulo vai perguntar a comunidade de Corinto alguns capítulos adiante (4.7). Um receber precede toda a nossa produção. Tal afirmação não permite fechar os olhos diante da injustiça no mundo. Há pessoas roubadas daquilo que Deus lhes deu. A dádiva de Deus é o fundamento da existência humana. Particularmente a comunidade cristã deveria sabê-lo.

b) Gratidão é um exercício de humildade. Quem agradece se declara devedor, respectivamente obrigado. E com efeito, frente a Deus só existem pessoas endividadas, umas mais, outras menos. Mas todas em igual situação. Até o respeito e os frutos cabíveis a Deus ficamos devendo (cf. Lc 7.40-43). A gratidão autêntica aniquila a soberbia, a vanglória e a arrogância das pessoas. Ela une a comunidade.

c) Gratidão é um testemunho de esperança. Pois se Deus deu ontem, vai dar também amanhã. As dádivas do Deus bondoso não vão escassear, a fonte de vida não vai estancar, a comunhão com Cristo, uma vez estabelecida, vai perdurar. Gratidão a Deus inclui a certeza da persistência da sua fidelidade (v. 9). A comunidade cristã tem futuro. A gratidão é uma forma de externá-lo.

4) O texto está previsto para a pregação na época da Epifania, sendo ladeado por um trecho de Is 49 e outro do cap. l do Evangelho de João. A conjugação dos textos é significativa: Is 49 fala do servo de Javé, identificado no v. 3 com a comunidade de Israel, l Co se dirige à Igreja de Deus que está em Corinto. Entre ambas as comunidades está Jesus Cristo, identificado no NT com o servo de Javé e testemunhado pelo evangelista João como cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo (Jo l .29). Se é da graça que a comunidade de Deus — ontem e hoje — vive, então seja lembrado ser ele, Jesus Cristo, por excelência o portador e revelador da mesma. Epifania significa aparecimento. Em Jesus Cristo apareceu o que carrega a comunidade de Deus no mundo, a saber, a graça e a verdade (cf. Jo 1.17).

3. A pregação

Poderiam ser os seguintes os passos da prédica:

1) Causa surpresa a ação de graças no início de uma carta escrita a uma comunidade tão problemática como a de Corinto. Há divisões, gente que nega a ressurreição dos mortos, há um grupo carismático causando dor de cabeça. A prédica deveria explorar este aspecto, simplesmente contando o que houve em Corinto. Não obstante, Paulo agradece. Por que o faz?

Ora, porque nas fraquezas humanas a graça de Deus sustém a comunidade. Desde que haja pregação da palavra de Deus e administração dos sacramentos, há motivos de gratidão. Mas também no mais não faltam razões. Paulo escreve a uma comunidade rica!

2) Temos também nós hoje motivos para louvar a Deus? Quais? O/a pregador/a fale uma vez concretamente, a partir de sua perspectiva pessoal, de tais motivos. Por que é bom ser IECLB? Em que consiste a sua riqueza — e a desta comunidade em especial? Não confundamos gratidão com bajulação ou entusiasmo mentiroso. Mas ela deveria impossibilitar também um pessimismo masoquista. Deveríamos ser realistas, humildes e todavia esperançosos. Isto com base na promessa de Deus, manifestada em Jesus Cristo. Convém lembrar neste contexto a época da Epifania.

3) O terceiro passo poderia — a partir do exposto — enfocar a tarefa da comunidade (sua vocação). Podemos e devemos crescer na fé, no testemunho, na diaconia. Nós deveríamos ser mais IECLB do que somos. Novamente cabe perguntar: por quê? Não por mera obrigação, e, sim, porque vale a pena. A causa da IECLB é boa. E: Deus se agrada de gente que cumpre suas responsabilidades. Gente assim não precisa temer o futuro — nem o juízo das pessoas nem o juízo de Deus.

A pregação deveria animar a comunidade a ser e a assumir o que é: a Igreja de Deus que está em…. Para ela vale o voto do apóstolo Paulo que lhe deseja: Graça (…) e paz da parte de Deus nosso Pai e do nosso Senhor Jesus Cristo. (V. 3.)

4. Subsídios litúrgicos

(Confissão de pecados: Senhor, nosso Deus! Nós voltamos a nos dirigir a ti para pedir perdão para a nossa culpa, cura para as nossas enfermidades, força nas nossas fraquezas. Temos nos desviado dos teus caminhos e falhado em nosso dever. Ficamos devendo amor às pessoas ao nosso lado. As nossas fraquezas nos incomodam. Sê misericordioso conosco e concede-nos a tua graça. Tem compaixão de nós, Senhor!

Oração de coleta: Senhor, nosso Deus! Tu não te vingas de tua criatura. Tu não empregas violência como o fazem as pessoas, quando vêem feridos seus interesses e sua honra. Tu és um Deus que sabe amar e que dá chance de vida até mesmo ao inimigo. Faze com que o teu exemplo seja seguido em nosso mundo em prol da construção da paz. De qualquer maneira, porém, agradecemos por tua bondade, manifestada em Jesus Cristo. É dela que vivemos. Obrigado por tua paciência, por tua fidelidade que promete futuro, inclusive para além da morte. Glorificado seja teu nome! Amém.

Intercessão: A intercessão deveria listar pessoas e motivos concretos de súplica a Deus. Entre eles, porém, não deveria faltar a comunidade a que se dirigiu a pregação neste domingo. Também Paulo, no texto acima refletido, intercede pelos coríntios. Façamos como ele, ainda que em outros termos. A prece pela comunidade local evidentemente deveria incluir a prece pela Igreja em seu todo, pelas outras comunidades de Jesus Cristo (por que não?), a fim de que juntos cumpramos nossa missão cristã. O texto tem uma dimensão ecumênica. De resto serão as necessidades deste mundo (das pessoas desta cidade, desta vila, deste país, deste nosso planeta) que trazemos diante de Deus.

Bibliografia

LANG, Friedrich. Die Briefe an die Korinther. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1986. (Das Neue Testament Deutsch, 7).
NÖRENBERG, Klaus-Dieter. l Kor l,(4-5)6-9. In: Neue Calwer Predigthilfen : zweiter Jahrgang. Stuttgart : Calwer. v. A. p. 151-158.
PORATH, Renatus. l Coríntios 1.3-9. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1990. v. XVI, p. 51-55.
STIEGEMEIER, Werno. l Corínlios l .4-9. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1979. v. V, p. 228-234.

Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia