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Prédica: Amós 3.1-8
Leituras: I Coríntios 1.10-17 e Mateus 4.12-23
Autor: Peter T. Nash
Data Litúrgica: 3º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 24/01/1999
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
Tema:

Uma ética profética

Este não é um texto bom para mim. Assim, quase todo o mundo gostaria de fugir das responsabilidades. Se eu tivesse uma escolha, deixaria os detalhes tediosos e chatos dos compromissos já assumidos e curtiria o melhor deles tanto quanto possível. Neste texto Amós, o grande despertador israelita, acaba com a ideia de que poderíamos passar a vida só recebendo. Ele insiste que o povo de Deus, os amados de Deus reajam ao amor dele com solicitude ativa. Ele deixa claro que indiferença à vida não é uma opção de Deus nem dos fiéis. Nos dois primeiros versículos deste terceiro capítulo, o profeta de fogo cristaliza quase todas as obras proféticas: a verdadeira recepção do amor de Deus leva a uma resposta eufórica, ativa e positiva, mas uma recepção morna leva a uma correção desagradável.

É possível pensar demais na correção, na tragédia das obras proféticas. E uma tendência humana procurar as falhas e as dores dos outros e das outras. É claro que não seria um tratamento abrangente do texto se nada fosse dito sobre o castigo prometido — sim, prometido, não ameaçado — no texto de hoje. Castigo prometido, que bobagem é essa? Mas, para melhor entender o que quero dizer, vamos entrar na ética profética por um instante só.

No pensamento de todos os profetas israelitas o grande e principal pressu¬posto é que o compromisso de Deus com os israelitas é absoluto e irretratável. É um compromisso que nasceu do amor que se estende através de Israel à criação inteira. Nas pressuposições dos profetas, começando deste ponto de compromisso absoluto e amor sem fim, é lógico que os seres inferiores vão errar. Quando os seres humanos erram, Deus sempre tem que corrigir os seus amados para evitar um erro maior. Escapar do amor de Deus é uma tentativa bem humana. Se pudermos aceitar esse pressuposto profético, acompanharíamos as profecias veterotestamentárias com muito mais tranquilidade. A primeira opção do Deus israelita é convidai a humanidade para uma convivência íntegra; não é a vontade de Deus castigar. Pedindo um empréstimo da irmandade reformada, poderíamos dizer: A natureza de Deus é ser sempre gracioso.

Que tipo de amor Deus dá?

Confiando nessa ética profética, podemos falar do fato de que o castigo prometido no v. 2b pretende tirar ou resgatar o povo de Israel dos caminhos enganosos. Nunca foi a intenção de Deus, nem o entendimento do próprio Amós (ou um possível redator deuteronomístico), acabar com Israel. A intenção é fazer uma advertência semelhante à que é feita nas caixinhas de cigarro. Assim, de modo mais direto, mas ainda não exagerado: Se você continuar a fumar desse jeito, vai acabar com os pulmões tão sujos que não deixarão entrar oxigênio, vai fazer seu coração ficar fraco, seu bebê poderá nascer deformado ou até morrer antes de nascer. E, sendo nós humanos e não deuses nem semideuses, Amós concedeu a Deus o direito de tirar os cigarros de nossas mãos, nos dar um tapa forte no traseiro e nos colocar de castigo. É um direito divino, não é um direito humano.

Uma das metáforas mais antigas do povo de Deus é a de um exército forte e capaz. Mas no conto Ragtag Army (Exército de gentalha) o sacerdote episcopal e escritor norte-americano Martin Bell destroça esta imagem nobre e meio convencida para nos mostrar que somos uma força realmente fraca sem a presença de Deus. Traduzo a seguir um pedacinho:

“Acho que Deus deve estar muito velho c cansado. Pode ser que certa vez ele tenha parecido muito bonito no seu uniforme de general, mas isso já passou. Ele está cm marcha já faz muito tempo, sabe? E olhe só o exército de gentalha dele! O que ele tem como soldados d somente você e eu. Exercitozinho bobo! Escute! Ate a batida do tambor está errada. Todo o mundo está fora da cadência. E olhe bem, Deus fica parando ao longo do caminho para buscar um de seus soldados mais pequeninos que decidiu se desviar para brincar com um sapo. ou correr num campo, cujo pó ficou preso na macega. Ele nunca vai chegar a lugar nenhum assim. Mas a marcha continua.

Viu como marchadores se dividiram em grupinhos? Observe aquele grupo lá na frente. Que grupo bem formado! Todo o mundo igualzinho — pelo menos eles estão marchando com o passo certo. Isso é bom! Só que eles estão descalços. Estão levando os sapatos nas mãos. Bobinhos. Logo Deus vai precisar parar novamente.

(…) Se Deus fosse mais sensato ele pegaria esse seu exercitozinho e o aperfeiçoaria. Nossa, quem ouviu falar dum soldado que deixou a marcha para brincar num campo? É ridículo. Porém mais absurdo ainda c um general que pára a marcha da eternidade para buscá-lo. Mas Deus é assim. Sua marcha não é uma marcha vazia e sem fim. (…) Ele sabe aonde quer chegar e pretende levar cada um c cada uma de nós com ele. Mas não haverá marchas forçadas. Afinal, sempre há sapos e flores, espinhos e macega ao longo do caminho. (…) A maior parte de nós está com medo e sentindo-se só. (…) gostaríamos de chorar ou fugir. Não temos certeza de onde fica o fim da viagem e não conseguimos confiar em Deus, especialmente quando está escuro lá fora e não podemos vê-lo, li ele não quer prosseguir sem nós. É por isso que está demorando tanto.
Escute! Até a batida do tambor está errada. Todo o mundo está fora da cadência. (…) Mas a marcha continua.” (Martin Bell, The Way of the Wolf, New York : Seabury. 1970, p. 91-93.)

Que tipo de amor Deus incentiva?

Um dos problemas da pregação baseada nos livros proféticos é a confusão entre o papel de Deus e o papel humano. As pessoas ficam confusas e pensam que o papel de corretor cabe aos seres humanos. O pior caso é a coleção de exemplos que usam a metáfora do noivo e da noiva e que se encontram em Oséias, Jeremias e Ezequiel. As sociedades machistas usavam e usam essas metáforas para justificar uma superioridade estrutural dos esposos sobre as esposas. Esquecendo que nessas metáforas um dos parceiros é divino e outro é humano, os homens se colocavam no papel de Deus e assumiam e assumem o direito de corrigir ou castigar. É uma tendência humana que é fortalecida no machismo, mas não é uma característica de machos nem se limita aos homens. Voltamos todos ao pecado original: fazer deuses de nós mesmos. Queremos decidir o destino dos outros, tanto adultos quanto crianças. Não entendendo que Deus mesmo está mudado pelos relacionamentos com cada um/a de nós, pensamos que Deus está nos dando ordens somente para seguir os caprichos dele. Ficamos pretensiosos e tentamos agir como Deus.

Outra coisa esquecida é a ética profética. Quando agimos a partir dos profetas, temos que agir a partir do pressuposto de que Deus está sempre procurando manter e/ou recuperar o seu relacionamento com os seres humanos. Assim chegamos a perceber que perdoar é o primeiro princípio que guia todas as ações de Deus. Precisamos também nos dar conta do fato de que os seres humanos não têm essa capacidade inesgotável para perdoar. No Antigo Testamento perdoar e julgar ficam nas mãos de Deus. Até a ética neotestamentária reconhece o fato de que a capacidade humana de perdoar tem seus limites. Os seres humanos não podem exercer o papel de juiz nem devem tentar. Também precisamos reconhecer e aceitar nossa capacidade limitada de perdoar e não nos sobrecarregar.

Na história de Martin Bell ele fala de uma batida de tambor. Se eu puder trocar a metáfora temporariamente e falar da vida como se fosse um baile em lugar duma marcha, gostaria de nos lembrar que aqui, no Brasil, há várias batidas boas, cada uma ligada com uma parte da cultura ou com uma subcultura. A predileção pela batida ou pelo ritmo de nossa subcultura é normal; é uma coisa boa. Num país que gira em torno do carnaval e do samba, é possível entender uma reação negativa de pessoas que preterem uma valsa ou bandinha animada. Depois de tantos anos se sentindo excluído numa sociedade que canta Quem não gosta de samba, bom sujeito não é, é ruim da cabeça ou doente do pé, o povo teuto-brasileiro se encolheu para se proteger. Numa forma de autodefesa, decidiu que qualquer coisa que não provém de nós não pode ser boa.

O que está em jogo? Somente o mundo inteiro

O que está em jogo? Somente o mundo inteiro. A visão de um mundo perfeito é sempre o sonho dos seres humanos. Projetamos um mundo sem doença, sem guerra, sem traição (tirando as novelas) e sem pobreza na nossa ficção científica. Temos uma retroprojeção de um mundo perfeito em nosso mito da queda, mas tanto nas obras de ficção quanto na colocação teológica do Javista em Gn 3 percebemos que é impossível os seres humanos manterem um paraíso na terra. Somos, por natureza, imperfeitos. Ao contrário de nossos desejos, não podemos andar em linha reta por muito tempo.

Quando pensamos que nosso jeito de ser é certo e o jeito do outro é errado, estamos condenando. E a partir de nossa condenação de outros, somos condenados. Com certeza, há coisas que estão sempre erradas: o assassinato, por exemplo, nunca pode ser justificado. Também estupro, escravidão e exploração de crianças são coisas que podem ser explicadas e até entendidas nos contextos delas, mas nunca podem ser justificadas. Mas em geral precisamos aceitar o fato de que todos nós somos pecadores. Pode até ser que seu pecado me atinja e o meu me agrade ou enriqueça; ainda assim, somos igualmente pecadores. O que recebemos da terra, do céu e, em última análise, de Deus, recebemos de graça.

O nosso perigo seria pensarmos que recebemos qualquer coisa na nossa vida por causa de merecimentos. Por quê? Porque nossa teologia insiste que até nossa capacidade e vontade de trabalhar com cuidado ou vigor são um dom que recebemos de graça de nosso Senhor. Faz parte de nossa natureza querer nos colocar acima das outras pessoas; mas este pecado também é perdoável.

Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia