Prédica: Isaías 58.5-9a
Leituras: I Coríntios 2.1-5 e Mateus 5.13-20
Autor: Norberto da Cunha Garin
Data Litúrgica: 5º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 07/02/1999
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
1. Entre esperanças e desilusões
A gente é tentado a imaginar uma multidão de pessoas, avançando por regiões semidesérticas, em busca de Jerusalém. Quando se aproximavam, os mais jovens subiam nos montes mais altos. Queriam enxergar aquilo que um dia fora a cidade santa. Não havia mais do que um monturo. Não foi assim. Os grupos vieram devagar e espaçadamente, porém traziam consigo alguns projetos e muitos sonhos.
Entre os projetos estavam a reconstrução do templo e a restauração das muralhas de Jerusalém. O primeiro projeto foi concluído em 515 a.C. e o segundo por volta de 450 a.C., sob a batuta de Neemias.
Entre os sonhos estava a realização de uma sociedade justa e fiel a Yahweh.
No coração do povo havia a consciência de que o cativeiro babilônico fora uma consequência da sua iniquidade. Eles não queriam repeti-la outra vez. Sonhavam com uma sociedade nova, governada por Yahweh. Queriam que fosse algo semelhante ao que os mais antigos contavam a respeito da instalação de Israel na Palestina.
Os projetos se realizaram. Os sonhos não encontraram a mesma fertilidade no coração do povo. Especialmente as elites do Israel do retorno continuaram a se aproveitar da oportunidade para explorar e escravizar os mais fracos.
Os velhos e conhecidos problemas sociais, do tempo do rei Joaquim, reapareceram com o mesmo vigor. Eram como erva daninha que cresce no meio da plantação sob a chuva de verão. Persistia a tentativa de agradar a Yahweh com formas estereotipadas de religiosidade.
Este texto. Is 58.5-9a, parece ser um responso. Um diálogo entre um líder e sua comunidade. O tema é a prática do jejum. Constitui-se numa advertência de Deus contra o povo. O motivo é, especialmente, a falsidade do culto. Essa falsidade está baseada nos pecados que se cometem contra o próximo — contra os próprios irmãos israelitas (Is 58.6). De forma muito especial, em Is 58.3, aparece a resposta de Deus. Nessa advertência Yahweh fala que no mesmo dia do jejum, os judeus se preocupavam com os negócios e com a maneira como explorar os seus próprios irmãos trabalhadores (Schökel, 1968, p. 271).
Há pelo menos quatro elementos que devem ser considerados com relação à necessidade de a nova comunidade se regenerar:
1. reapareceu uma comunidade de pobres, sinalizando o recrudescimento da injustiça presente no período pré-exílico (Is 57.1-5);
2. o aparecimento de um culto verdadeiro, em espírito e em verdade: manifesta interesse pelo templo (60.7,13); pela composição da assem¬bléia cultual (56.3-7); pelo jejum (58.1-12); pelo sábado (58.13-14);
3. postula-se uma nova relação com os estrangeiros, os gentios; não deixa de encará-los como uma ameaça a sua religiosidade, mas propugna pela inclusão dos gentios na salvação de Yahweh;
4. finalmente, se reconhece como uma comunidade que carrega consigo a esperança; o autor do Trito-Isaías está convencido tanto da salvação próxima quanto da proximidade da justiça de Deus.
O emprego da primeira pessoa reforça a sensação de que se trata de um discurso religioso, um diálogo dirigido para uma comunidade de uma sinagoga da Palestina pós-exílica (Smart, 1965, p. 246).
A espera pela salvação de Yahweh, através de sua manifestação última, conforme Is 52.7, desiludiu os retornados. Houve dificuldades na instalação de uma justiça correta e o recrudescimento da distinção de classes sociais. O alvo das críticas do profeta são as elites religiosas. É o pessoal do templo que subverte a religiosidade genuína. Estão sempre preocupadas em cumprir, rigorosamente, as observâncias religiosas. Não obstante, são culpadas por boa parte da opressão e do derramamento do sangue inocente.
2. Compreendendo melhor o texto
Para se entender o texto, é importante olhar um pouco antes.
V. 3: Este versículo é central. Ele possibilita entender o diálogo que se estabelece, no seio da liturgia, entre o povo e Yahweh. Por um lado há uma cobrança contra Yahweh a respeito de que Ele não respondia às questões do povo. Mas em 3b Yahweh responde com a verdade. O povo não estava interessado em realizar uma adoração autêntica. Queria apenas cumprir um calendário litúrgico. As suas práticas não eram puras, estavam misturadas com os negócios e com a injustiça. O povo não tinha procurado cumprir as leis de Yahweh nem seguir os seus mandamentos. Por essa razão, mesmo com o cumprimento das práticas religiosas rituais, Yahweh não tinha escutado o povo (Achtemeier, 1982, p. 54).
V. 5: A resposta de Yahweh é polêmica. Ao invés de consolar o povo, lhe faz, uma reprimenda: Por acaso é este o jejum que escolhi, um dia em que o homem mortifique a sua alma? Faz um jogo com a palavra jejum, alertando para as violências cometidas contra o próximo e as práticas rituais de penitência (Schökel, 1968, p. 272).
A piedade que Yahweh pedia aos judeus não consistia no cumprimento de rituais vazios. Eles estavam destituídos da carne da realidade. Em sua 'piedade' pedem 'reto juízo', o cumprimento de todas as promessas divinas. Então Yahweh cita suas próprias palavras que os condenarão: 'Por que jejuar… e mortificarmo-nos?', como se estes atos humanos pudessem comprar os dons de Yahweh. (Stuhlmueller, 1970, p. 153.)
Da mesma forma Whybray (1975, p. 214) concorda que o jejum, como pura forma ritual de alcançar as bênçãos de Yahweh, não tem sentido. Yahweh não se agrada desse tipo de religiosidade.
V. 6: O ser humano, na visão vétero-testamentária, é julgado pelo exercício da misericórdia que pratica. Isto fica claro especialmente quando se estabelece um paralelo de Is 58.6 com Jó 22.6-7.
Num comparativo com o escrito de Ben Sirac, a preocupação da ação de misericórdia está ligada à preocupação que o Eclesiástico tem com o fim (Eclo 7.35-36); pode-se conjecturar, com segurança, que esta é uma visão bastante particular de segmentos da sabedoria de Israel.
Neste versículo o autor deixa claro que a vontade de Yahweh é que a prática religiosa dos judeus seja mais pautada pelo cumprimento da justiça e pelo respeito para com o ser humano, especialmente o próximo (outro judeu), do que a preocupação com as práticas rituais cúlticas. Entre as medidas que Yahweh manda os judeus tomarem para cumprirem os seus autênticos ritos religiosos está a liberdade dos escravos.
É interessante observar a coincidência dessa preocupação com as medidas de Neemias, que estabeleceu um acordo com as aristocracias de Judá, visando a libertação dos escravos. Os judeus haviam transformado seus irmãos empobrecidos em moeda de troca no mercado internacional, visando o enriquecimento legal, mas ilícito (Ne 5.1-13).
A conclusão que se pode tirar é que Neemias chegou em Jerusalém no reinado de Artaxerxes I Longimano (465-424 a.C). É muito provável que a data exata dessa ação de Neemias seja o ano de 445 a.C., ou seja, por volta do 20° ano de Artaxerxes. Nessa época, por todas as circunstâncias sociais e religiosas, fazia-se necessária e urgente a reorganização da sociedade de Israel.
V. 7: O v. 7 se constitui numa orientação sobre o significado real do culto a Yahweh. A admoestação é para amparar o irmão necessitado e dar abrigo àqueles que estão empobrecidos.
Acima de tudo, deve-se imitar a Yahweh, repartindo o pão com o faminto, cuidando do oprimido, libertando o escravo. Dessa forma, em companhia do pobre e do humilde, cada um será julgado digno da redenção divina. Saliente-se que esses preceitos se constituíam na preocupação específica das escolas proféticas de Israel. Havia outros povos do Oriente Antigo que também os consideravam significativos, especialmente aqueles ligados ao compartilhar do pão, abrigar os pobres e acolher aos despidos (Whybray, 1975, p. 215).
Na mesma direção vamos encontrar outros textos do Antigo e Novo Testamento que apontam para a mesma preocupação social, como cumprimento da religiosidade autêntica (Ez 18.7-8; Jó 31.13-23).
Ao compararmos Is 58.7 com a narrativa de Mt 25.35-36 percebe-se bastante similaridade: Porque tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, fui peregrino e me acolhestes, estive nu e me vestistes, enfermo e me visitastes, estava na cadeia e viestes ver-me.
V. 8: Este versículo enfoca a ação da pessoa que realiza a vontade de Yahweh com a presença da luz. Exalta o cumprimento da justiça e sinaliza com a proteção de Yahweh sobre aquele que segue a justiça dele.
Paralelamente, a tua luz, a cura apontam para a situação de prosperidade ou estado de abençoado. A expressão glória de Yahweh irá à tua retaguarda tem o sentido de fazer com que o autor dessa ação de solidariedade e misericórdia seja salientado por Yahweh (Whybray, 1975, p. 217).
V. 9a: As orações se perdiam no espaço. Yahweh não as estava mais respondendo. As práticas litúrgicas de Israel não estavam mais dando certo, a despeito do rigorismo dos ritos religiosos (jejuns). O v. 9 é a resposta que Israel espera. Agora, com a mudança radical de atitudes para beneficiar o convívio entre os homens através de atos concretos de justiça e amor, há também condições de viver em comunhão com Yahweh. Agora sim, há diálogo com Yahweh. (Gierus, 1989, p. 151.)
Quando o ser humano é capaz de desenvolver uma religiosidade autêntica, que brota da justiça e da misericórdia, então a oração chega aos ouvidos de Yahweh e ele se faz sentir no meio do povo (Schökel, 1968, p. 273).
3. Pensando numa mensagem
Por causa da sua iniquidade, Israel havia mergulhado no exílio. O tempo de cativeiro serviu para rever muitas práticas. Cresceu a saudade da terra. Surgiu a necessidade de resgatar a religiosidade centrada em Yahweh. Vieram as condições e o povo retornou a Jerusalém. As pedras clamaram e Yahweh se serviu de gentios para realizar sua obra. Na bagagem do retorno, projetos e sonhos. Reconstruir a cidade de Yahweh e restaurar as suas muralhas. Os sonhos, bem mais remotos, não conseguiram se realizar com o mesmo vigor – a antiga comunhão, baseada na solidariedade entre os irmãos (judeus), não vingou. Reapareceram as diferenças de classes. Com elas, o explorador e o escravo, o opressor e o empobrecido, o rico e o despido. O povo sentiu a dureza da vida “no lombo''. A elite sentiu a culpa e tentou se refugiar nos rituais religiosos o jejum.
Como Israel, somos cativos. Nosso cativeiro é no exílio da globalização Não estamos mais na nossa terra porque a terra já não é mais nossa. Aos poucos vão nos tirando até a soberania. Se não fizermos alguma coisa, logo seremos forçados a responder, nos guichês de cada dia, quando perguntarem nossa identidade: I’m a Brazilian person. Nosso chão, nossa terra, nosso espaço, se não forem apresentados com as cores do marketing competente, não terão mais qualquer valor. Somos exilados em nossa própria pátria.
Os judeus penduravam seus instrumentos e se recusavam a tocar as melodias que os babilônios queriam ouvir. Em breve, se não fizermos nada, e se quisermos cantar nossa cultura, teremos que solicitar licence e pagar a devida taxa de utilização. Nossas manifestações políticas, culturais e religiosas terão que passar pela approbation dos órgãos controladores. Nossa mensagem necessitará receber o ' 'to hold true'' do patrocinador, do contrário não será veiculada na mídia.
Ainda estamos estupefatos com a grandeza da Nova Babilônia (a globalização). A sua Profetisa (a Internet) anuncia a salvação dia e noite. Seus novos Jardins Suspensos (sites) nos encantam olhos e ouvidos. Achamos maravilhoso estar na capital do mundo (provedor de acesso). A imensidão das suas cidades (os múltiplos links) nos embriaga. A rapidez dos seus exércitos (velocidade dos modems) nos fascina. Assim, embora cativos da Nova Babilônia, estamos extasiados com as facilidades e comodismos que ela nos oferece.
Alimentamos sonhos e fazemos projetos grandiosos a cada nova madrugada. A despeito de toda a tecnologia, de toda a velocidade de comunicação, os nossos irmãos e irmãs (empobrecidos excluídos da globalização) continuam a se amontoar nas metrópoles de tábua, papelão e lata. Os esgotos continuam a correr pelo meio dos becos. Os bandidos permanecem rondando as meninas às portas dos barracos. A droga arregimenta adolescentes e pais de famílias endividados. A serpente peçonhenta engole crianças, adolescentes e adultos que se deixam seduzir pelo exército do tráfico.
Enquanto isso, preocupamo-nos com a maneira correta de manifestar o Espírito Santo. Será mediante línguas estranhas ou profecias? Devemos operar curas ou ser entusiasmados nos cânticos? O correto é descer às águas ou batizar com água? O jejum deve ser uma dieta de um dia ou apenas de uma noite? Qual será a Igreja autêntica — a comunidade sem placas ou as denominações institucionalizadas? É mais autêntico um povo carismático ou um resto da libertação? Tem mais consistência uma Igreja tradicional, conservadora ou um grupo alegre de testemunhas? Pobres, oprimidos, nus e escravos perambulam pelas nossas cidades. Estão às portas dos supermercados ou nos umbrais das igrejas.
Deus anda por outros caminhos. Ele não valoriza tanto o purismo de nossos debates doutrinários. Não se ocupa tanto de nosso esforço para seguir códigos de costumes e normas rituais. Seu empenho está no cumprimento da justiça social paia com os desfavorecidos. Ele está junto com aqueles que estão junto com os pobres, oprimidos, nus e escravizados. Não fala línguas comuns nem estranhas. Não discute se deve operar curas nem mesmo canta, quanto mais se entusiasma. Ele lê/ as águas e não necessita descer a elas. Deus não faz jejuns, mas espera que seus filhos e filhas tenham o suficiente para comer de toda a abundância que colocou no mundo para todos. Não freqüenta nenhuma comunidade nem está arrolado em nenhuma Igreja. Não é carismático nem da libertação, muito menos tradicional e conservador. Aliás, assustou o mundo com o seu nascimento numa habitação de animais e pela sua morte prematura com pouco mais de 30 anos.
Deus ocupa outros espaços, diferentes daqueles que disputamos com unhas e dentes.
Aqueles que se esgueiram pelos becos e usam a sua boca para defender os empobrecidos, brilharão mais que os painéis luminosos da avenida. Quem faz da sua andança um erguer dos enfraquecidos terá uma luz que resplandece pela sua retaguarda e empana os monitores dos micros. Quem reparte o seu pão com a boca faminta que se abre num pedido de socorro terá sua vida coberta pelo seguro da misericórdia divina. Os que quebrarem as algemas que prendem os fracos aos opressores terão sua justiça resplandecendo mais que as novelas da TV.
Sobretudo, quem se dispuser a andar com os simples das vilas contará com a companhia de Deus.
4. Buscando a liturgia
Coloque um computador no altar. Deixe-o funcionando enquanto as pessoas vão chegando. Faça a comunidade sentir que se trata de um equipamento importante. Enfeite-o um pouco com alguns cartazes ou até mesmo com um vaso de flores. Depois, ao longo de sua prédica, fale da sedução que ele representa para todos nós. Ele é o profeta da Nova Babilônia. É ele quem salva todo o mundo — mas enterra, especialmente os mais simples. É desculpa para não facilitar a vida de tantas pessoas, que dependem de determinados dados e informações (computador fora do ar, caiu o sistema, o computador quebrou, tem vírus no computador…).
Amarre a sua mensagem com a necessidade de viver o outro lado dessa farsa chamada globalização. Especialmente, mencione a importância do lado humano de todas as coisas, do chão que está sob nossos pés, da tradição da qual somos herdeiros/as, da maneira como Deus se manifesta na simplicidade da vida.
Fontes e referências
ACHTEMEIER, Elisabeth. The Community and Message of Isaiah 56-66. Minneapolis : Augsburg, 1982.
AUNEAU, J. Os profetas e os livros proféticos. São Paulo : Paulinas, 1992.
GIERUS, Friedrich. Domingo Estomihi. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1989. v. XV, p. 147-153.
GORGULHO, Gilberto da Silva; STORNIOLO, Ivo; ANDERSON, Ana Flora. Bíblia de Jerusalém. São Paulo : Paulinas, 1985.
GOTTWALD, Norman K. Introdução socioliterária à Bíblia Hebraica. São Paulo : Paulinas, 1988.
OTTENBREI, Frei Estevão, OFM. Bíblia Sagrada em CD-ROM. Petrópolis : Vozes, 1996.
SCHÖKEL, Luiz Alonso. Isaías. Madrid : Cristiandad, 1968.
SMART, James D. History and Theologyin Second Isaiah. Philadelphia : Westminster, 1965.
STUHLMUELLER, Carroll C. P. Isaías 40-66. Santander : Sal Terrae, 1970. (Conoce la Biblia — Antiguo Testamento).
WEBER, Bertholdo. Quaresma: dor solitária ou solidária. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1983. v. IX, p. 50-56.
WHYBRAY, R. N. The New Centrury Bible Commentaiy. London : Morgan & Scott, 1975. WOLFF, Günter. Ação de graças. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1986. v. XII, p. 300-306.
Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia