Prédica: 2 Pedro 1.16-21
Leituras: Êxodo 24.12,15-18 e Mateus 17.1-9
Autor: Nilton Giese
Data Litúrgica: Último Domingo após Epifania
Data da Pregação: 14/02/1999
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
14 de fevereiro.
Domingo de Carnaval.
Nos países de fala espanhola hoje é o Dia do Namorados.
Ontem, 13 de fevereiro, em 1958, morreu José António Echeverría, estudante e militante da Ação Católica em Cuba, na luta contra o regime ditatorial de Fulgencio Batista. Amanhã, 15 de fevereiro, em 1995, foi preso o general Luiz Garcia Meza, condenado a 30 anos de reclusão por sedição, desvio de fundos e assassinato, depois de ter tomado, a golpe de Estado, o governo da Bolívia em 1980.
Quem já sonhou com o reino de Deus não pode conformar-se com este mundo tal como está. Quem já viu de perto o Invisível não pode se resignar nem ficar perplexo. Nunca tivemos tanta obscuridade nem tanta clareza. (José Maria Virgil.)
1. Contexto
A pesquisa exegética afirma que 2 Pe é o escrito mais jovem do Novo Testamento. Foi escrito por volta do ano de 150. Nessa época a discussão nas comunidades era fé em Jesus Cristo versus idolatria.
O mundo no qual a fé cristã penetrou era um mundo mágico. As pessoas pensavam de maneira mítica sobre a realidade. Sinais, milagres e visões eram algo normal. A gnose era uma das doutrinas de salvação presentes naquela realidade. Ela se baseava em revelações pneumáticas. Os gnósticos tinham por princípio o ataque à interpretação cristã a partir do Antigo Testamento. Para eles o Deus do Antigo Testamento foi aniquilado por Jesus. Além disso, os gnósticos também defendiam que Jesus não tinha sido crucificado de verdade. Quem morreu na cruz foi um sósia dele. Por isso, não reconheciam nem reverenciavam o crucificado. Além da gnose, a jovem Igreja cristã também se defrontou com um certo Marcião (80-160). Também Marcião não respeitava as tradições do Antigo Testamento. Ele atacava e ridicularizava a criação e a história da salvação segundo o AT. Para ele, o Deus do AT era imperfeito, fraco e hipócrita. Por isso, era necessário eliminar tudo que lembrasse o judaísmo. Para Marcião, Jesus Cristo era diferente. Ele era um Deus sem hipocrisia. Sua mensagem era a do amor misericordioso. Outro grupo surgiu a partir do batismo de Montano na Frigia (Ásia Menor) em 156. O montanismo era um grupo que defendia o êxtase e o falar em línguas como o verdadeiramente autêntico na Igreja. Era através do falar em línguas que o Espírito Santo estava presente na Igreja.
Diante dessa variada realidade, a comunidade cristã procurava uma orien¬tação, um fio condutor para manter a fidelidade aos ensinamentos de Pedro. Na volta às origens, a comunidade mencionou a transfiguração de Jesus (Mt 17; Lc 19; Mc 9) como fonte motivadora e sustentadora da fé. Nessa memória ela confessava que o Deus do Antigo Testamento c o Pai de Jesus (Mt 17.6). A glória do Deus Criador se manifestou em Jesus através da transfiguração, e através dela a comunidade procurava uma resposta e uma afirmação da fé em Jesus diante das interpretações de fé que surgiram ao seu redor.
2. Texto
Existe um ditado popular que diz: Quando você estiver perdido, o melhor a fazer é voltar ao ponto de partida e retomar a caminhada. A comunidade de 2 Pe sentia-se perdida. Seus velhos líderes haviam morrido. Eles estavam agora vivendo como terceira ou quarta geração de cristãos. A parúsia não aconteceu. A confusão de fé era muito grande. Novos líderes no cristianismo faziam escola. Juntavam adeptos, questionavam tradições. A comunidade resistia, mas precisava dar uma resposta, precisava reafirmar de forma clara a sua base de fé. A volta ao ponto de partida não está na cruz, como em Paulo, mas sim na transfiguração de Jesus e no testemunho profético das Escrituras.
A transfiguração de Jesus está relacionada com a confissão de Pedro (Mt 16.16), confirmando as palavras dessa confissão de fé. Aliás, as próprias comunidades de Paulo tinham dificuldade em identificar o Cristo sofredor com o ressurreto em glória. Conforme Malschitzky (PL XVIII, p. 79), ser missionário de um Cristo glorioso seguramente tinha mais chance de sucesso do que sê-lo de um fraco sofredor, cujos dias terminam numa cruz, que por si só já era testemunho de que o punido boa gente não era. No entanto, a comunidade de 2 Pe lembra que esse Jesus que se fez ser humano e que se mostrou solidário com os excluídos (Jo l. 14) tem intimidade com o Javé Libertador do êxodo e dos profetas.
A transfiguração é um encontro com o divino. Revela o Messias anunciado ao lado de Moisés e Elias, dois personagens de destaque no Antigo Testamento. Moisés é o representante da Lei de Deus, que tinha muita proximidade com Deus, ao ponto de Deus mesmo se encarregar do seu sepultamento (Dt 34.6). A volta de Elias era esperada, segundo Mc 9.11ss. João Batista e Jesus foram confundidos com ele (Jo 1.21; Mc 6.15; Lc 9.8). A memória da transfiguração c, portanto, o testemunho da ligação histórica de Jesus com as Escrituras. Memória de que Jesus não veio para aniquilar a história, mas sim transformá-la. A lei e os profetas continuam valendo.
3. Perguntas para reflexão
Podemos nós nos lembrar de momentos deslumbrantes, nos quais é possível sentir a presença de Deus de forma ímpar? Momentos ímpares que nos levantem da dor, da dúvida, do desnorteamento? Momentos cuja memória sustente a nossa confiança em Jesus e nossa fidelidade à comunidade? Ou qualquer um nos convence facilmente de que ele está certo e nós errados?
Penso ser importante colocar que o problema da idolatria e o da interpretação religiosa que exclui outras confissões não são problemas novos para a comunidade cristã. Essa situação vem acompanhando a comunidade desde seus primórdios. A questão sempre nova é reconfessar a fé em Jesus Cristo. Essa re-confissão deve ser uma resposta e uma luz na confusão de fé que envolve a comunidade. Mesmo dentro de nossa confessionalidade luterana, aberta ao ecumenismo, precisamos constantemente nos perguntar: por que somos cristãos evangélicos luteranos? Nossa forma de crer em Deus não é igual às outras igrejas: o que nos diferencia e por quê? Nos tempos modernos, não se mantém mais comunidade por tradição. Quem é evangélico luterano só porque o pai também era perde as estribeiras na primeira abordagem de um membro de outra Igreja qualquer. Qual a origem de nossa confissão de fé? Temos que reafirmar apenas as doutrinas do passado ou podemos nos atrever a novos enfoques? Muitas perguntas, mas é por aí que 2 Pe nos quer falar hoje.
Xavier Gorostiaga, sacerdote católico e reitor da Universidade Centro-Americana (UCA) na Nicarágua, foi um dos primeiros a dizer que estamos vivendo numa mudança de época, ou seja, uma mutação violenta da civilização ocidental. Isso significa que precisamos repensar essa mudança. Muitos valores mudaram. O passado parece não servir muito para caminhar no presente e no futuro. Segurança é uma palavra frágil em todos os sentidos. Desemprego e doença são os grandes monstros, mesmo nesses tempos em que se anunciam vacinas contra o câncer. Atendimento médico depende cada vez mais de planos de saúde, que a maioria da população não pode pagar. Enfim, se no passado a palavra atual era opressão, nos dias de hoje a palavra atual é exclusão. A economia mundial, dirigida pelas elites financeiras, não contempla em seus objetivos a atenção para as massas empobrecidas. Elas são consideradas fora do mercado, sobrantes, excluídas. E a exclusão se concretiza cruelmente no desemprego. Mais de um terço da população ativa no mundo não pode exercer um direito fundamental do ser humano: ser útil e contribuir com seu trabalho para o seu sustento e o de sua família. Ou seja, estamos descobrindo que existe algo que ó pior do que ser explorado: é o fato de milhões de pessoas não servirem mais nem mesmo para serem exploradas.
Estamos vendo a transfiguração do ser humano para a miséria. Nesse novo mundo, os milhões de excluídos já entenderam que não podem contar com a ajuda do Estado moderno neoliberal para a solução dos problemas. A maioria do povo perdeu a confiança no governo, desde o município até o governo federal. No entanto, vemos que no mundo inteiro existe urna onda de volta ao religioso. Não só do avivamento das religiões tradicionais, mas também de muitas manifestações heterodoxas do espírito religioso. Parece que as expressões religiosas do passado voltam a ter vida. Em especial todas as expressões da gnose, que existiam no Império Romano e procediam do Egito e da Mesopotâmia. O esoterismo, que sempre acompanhou o cristianismo, voltou à ordem do dia.
Nesse sentido, as igrejas históricas multiplicam as pregações moralizantes, mas na prática não convencem ninguém e nada mudam; ao contrário, os problemas se agravam. As igrejas pentecostais refugiam-se no fundamentalismo que contribui para manter as massas populares cm uma certa estrutura ética. Solucionam o mais urgente, que é sobreviver em meio à anomia geral, mas não têm uma proposta de futuro. Concretamente, vivem apenas da espera do fim do mundo e de um juízo final iminente. (José Comblin.)
Nessa mudança de época é preciso reafirmar nossa forma de crer em Deus. Precisamos voltar a falar no Jesus histórico, no Deus que se fez solidário com os excluídos, no Deus compassivo que escuta o clamor dos fracos e que se deixa ver no rosto dos que mais sofrem. No Deus que em Jesus Cristo se mostrou fiel até a morte anunciada na cruz. Nesse Deus que não me abandona no perigo, que não me deixa na mão, ainda que eu ande pelo vale da sombra e da morte (Sl 23.4). Por isso posso resistir e perseverar (Rm 8.38). Devo ser fiel a esse Jesus, ainda que tenha pouca fé (Mt 6.30). Estar no mundo sem ser do mundo, que se pode traduzir como estar no sistema sem ser do sistema. Mesmo que digam que não há alternativa, temos uma ao nosso alcance: resistir, manter a esperança contra toda esperança.
4. Onde posso me encontrar com Deus?
Como posso ter o meu monte Sinai, a possibilidade de que Jesus me leve para o monte Tabor para ver algo maravilhoso? A Bíblia nos ensina que somente podemos encontrar a Deus através de Jesus Cristo (Jo 10.10). E Jesus nos deu também a forma de continuar sentindo a sua presença em nosso meio. Os textos do evangelho nos ensinam que a recomendação de Jesus é que, se queremos nos encontrar com Deus, então devemos ir ao encontro daqueles que mais sofrem (Mt 25.40). O rosto de Deus se deixa ver na solidariedade (Jo 13.31-35). É no serviço, no amor ao próximo como a si mesmo, na entrega pelo outro que encontramos alegria e sentido para nossa missão cristã (Lc 4.16-20; 10.25-37). Ser justificado para praticar a justiça, porque ser cristão é coisa que corresponde ao coração e às mãos. Fé verdadeira crê em Deus e precisa abraçar o irmão.
Por isso, 2 Pe nos quer animar a celebrar a vida. A vida deve ter mais expressividade em nosso encontros de comunidade. Penso que é por isso que cultos temáticos atraem tanta gente. Culto de um ano de Batismo, cultos de oração pelos doentes, cultos com doentes do coração, de câncer de pele, leucemia, etc… que tiveram a experiência do controle de suas doenças ou até da cura, celebrações para pedir a bênção sobre o trabalho e a busca por um trabalho, jubileu de confirmação, cultos com oferta de solidariedade por flagelados de enchentes ou secas, etc. são momentos que enchem a igreja. A comunidade precisa e valoriza esses espaços. É a celebração da vida. É a visualização dos milagres que Deus faz ainda hoje.
4. Elementos para a liturgia
A maioria de nós lê a reflexão sobre o texto da prédica na semana que antecede a prédica. Com isso não temos mais tempo para preparar algo especial para esse culto que está à nossa frente. No entanto, esse culto poderia desafiar pessoas e grupos da comunidade a prepararem celebrações futuras. O texto de 2 Pe quer desafiar-nos a isso. Encontrar motivos em nossa memória como comunidade e como pessoas para celebrar. Faltam ideias? A Pastoral Popular Luterana (PPL) está produzindo um livrinho intitulado Cem jeitos para celebrar.
Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia