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Prédica: Romanos 4.1-5,13-17
Leituras: Gênesis 12.1-4 e João 4.5-26
Autor: Nélio Schneider
Data Litúrgica: 2º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 28/02/1999
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
Tema:

 

A fé é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos. (Hb 11. l.)

1. Introdução

Em nosso itinerário litúrgico deste ano, somos convidados a nos dirigir para a Semana da Paixão e para o Domingo da Páscoa meditando sobre a fé de Abraão. Para o apóstolo Paulo, a fé de Abraão na promessa de Deus ilustra a dimensão mais profunda da salvação da pessoa humana. Tanto o texto da pregação (Rm 4) quanto os textos de leitura (Gn 12 [cf. o auxílio homilético elaborado por Júlio P. T. Zabatiero em Proclamar Libertação, v. XVII, p. 88-91] e Jo 4 [cf. o auxílio homilético elaborado por Eduardo Gross em PL, v. 21, p. 82-90]) permitem destacar três dimensões fundamentais: a) a salvação é um dom de Deus ao ser humano ímpio, independentemente de sua história anterior; b) a fé é a única atitude viável diante da oferta de salvação que vem de Deus; c) salvação, justificação e ressurreição são uma só coisa: nova criação como ação divina.

2. O contexto literário de Romanos 4

No cap. 3 de Romanos, Paulo estabelece que ninguém é justo por mérito próprio pelo fato de todos estarem sob a influência dominadora do pecado (vv. 9-18,23). Isso se aplica também, segundo Paulo, a quem está debaixo da lei, pois é justamente pela lei que nos tornamos conscientes do nosso pecado (v. 20). Na verdade, existe só uma possibilidade de nos tornarmos justos: recebendo pela fé em Jesus Cristo a justiça que Deus nos oferece gratuitamente por sua graça (v. 24). Assim, Deus se torna o único sujeito ativo da justificação (v. 26).

Isso posto, surgem algumas indagações: o ser humano teria ainda algum motivo para vangloriar-se? A resposta é negativa, pois está claro que o ser humano é justificado pela fé, independentemente da obediência à lei (v. 28). Dessa maneira, a oferta de salvação se torna universal, ou seja, não está restrita a quem cumpre a lei judaica, mas se amplia para todas as pessoas, visto que existe um só Deus, que pela fé justificará os circuncisos e os incircuncisos (v. 30). E, ao contrário do que possa parecer, esse procedimento de Deus não anula a lei substituindo-a pela fé, mas a confirma.

O cap. 4 é um aprofundamento da questão exposta no cap. 3: 4.1-8 são um aprofundamento de 3.27-28 com base no exemplo de Abraão (explicação de Gn 15.6); 4.9-12 oferecem o fundamento escriturístico para 3.29-30; 4.13-16 respondem à questão colocada em 3.31. A partir daí, em 4.17-25, Paulo mostra que a estrutura da fé cristã é a mesma que a da fé de Abraão.

Com isso, situamos concisamente o nosso texto dentro do fluxo de argumentação em que se encontra inserido.

3. O texto de Romanos 4.1-5,13-17

Passamos a destacar os elementos mais importantes que podem contribuir para a compreensão do texto em questão:

a) A salvação é dom de Deus ao ser humano ímpio

Palavra da Escritura: Abraão creu em Deus, e isso lhe foi creditado como justiça (v. 3). Essa afirmação implica o seguinte: não é pelo trabalho ou pelo esforço próprio que alguém consegue tornar-se justo. Pois trabalho e esforço geram uma dívida e pedem um pagamento ou uma recompensa. Nesse caso, a justificação seria algo como uma dívida de Deus gerada pelo meu trabalho ou esforço. Porém é evidente pela palavra da Escritura que isso não é o caso. A justiça é atribuída, creditada a alguém independentemente de seus bons antecedentes, ou melhor: Deus é um Deus que justifica o ímpio (v. 5). Deus chamou a Abraão quando ele ainda era ímpio e o fato de este ter confiado naquele lhe foi creditado como justiça. Isso lembra-nos da palavra de Jesus: Não vim chamar justos, mas pecadores (Mt 9.13 par). A leitura de Gn 12.1-4 ilustra a graça preveniente de Deus, chamando a Abraão, como protótipo do ímpio justificado pela fé, para tornar-se uma bênção para o mundo todo. Os critérios de Deus não foram a espiritualidade especial de Abraão, nem sua riqueza, nem seu poder ou sua inteligência. Poderia ter sido qualquer pessoa; a finalidade era abençoar a mesma e através dela o mundo todo. Assim a graça de Deus também atinge a humilde Maria e a mulher no poço de Jacó (Jo 4) que houve falar do dom de Deus e se torna mensageira da graça imerecida. Realmente bem-aventurada é a pessoa cujas transgressões são perdoadas, cujos pecados são cobertos, (…) cujo pecado o Senhor jamais leva em conta (Sl 32.1,2 em Rm 4.7-8).

b) A fé é a única resposta viável à oferta de salvação da parte de Deus

Palavra da Escritura: Portanto, a promessa vem pela fé, para que seja de acordo com a graça (Rm 4.16). Pelo fato de Abraão ter recebido a promessa de herdar uma terra ampla e abundante antes de ser instituído o regime da lei e ale mesmo antes de lhe ser dado o sinal da circuncisão (w. 9-12), ele se torna o exemplo de pessoa que crê na promessa de Deus sem ter nada a apresentar em troca. Portanto, Abraão não podia apresentar a Deus o cumprimento da lei ou mesmo o sinal da circuncisão para ser digno de receber a promessa divina. Ele nada tinha a apresentar; chegou a Deus de mãos vazias. Só poderia descrer ou crer, desconfiar ou confiar, rejeitar ou aceitar a promessa. Ele creu, confiou, aceitou a promessa; por isso, Deus o considerou justo. Se tivesse tentado barga¬nhar com Deus baseado em justiça própria fundamentada no cumprimento de alguma lei, teria provocado a ira divina. Pois a lei mesma é o sinal mais evidente de que o ser humano carece de justiça própria. Se não houvesse transgressão, não haveria lei.

Como garantir que a justiça seja atribuída a toda a descendência da Abraão? Determinando que a fé seja a única resposta aceitável à oferta de salvação que vem de Deus. Assim, Abraão se torna o pai na fé de todas as pessoas que crêem como ele creu, independentemente de méritos próprios.

É importante perceber que a fé não é uma atitude passiva diante da promessa de Deus, mas leva a uma mudança completa na organização da própria vida: Abraão sai do seu lar e vai para uma terra desconhecida, a mulher do poço de Jacó sai a proclamar sua experiência de fé. A fé tem consequências radicais e se constitui num risco muito grande: é basear toda a vida numa promessa aparentemente absurda.

c) Justificação é sinônimo de salvação e ressurreição

Abraão creu no Deus que dá vida aos mortos e chama à existência coisas que não existem, como se existissem (v. 17). A fé de Abraão é uma confiança que desafia todas as aparências; mesmo recebendo a promessa de descendência quando já tinha 100 anos de idade, Abraão não duvidou (…) da promessa de Deus, (…), estando plenamente convencido de que ele era poderoso para cumprir o que havia prometido (vv. 20-21). A fé de Abraão é fé no poder criador de Deus, é fé no poder ressuscitador de Deus, é fé na nova criação divina. Aqui criação, salvação e ressurreição estão muito próximas: todas são obra do Deus criador. A justificação está, portanto, a nível da ressurreição como ato exclusivo de nova criação de Deus. Ele cria a partir do nada, que é resultado do pecado e da morte. A ressurreição de Jesus Cristo é o primeiro fruto da nova criação. A justificação — ressurreição — nova criação é a água viva (Jo 4.10) dada por Deus, que resulta numa vida definitivamente sem sede.

Encaminhando-nos para a Semana Santa que culmina com a festa da ressurreição, proclamamos a fé de Abraão como exemplo de quem crê no Deus que justifica o ímpio. Pois Deus fez circular entre nós a boa nova de que, com base na ressurreição de Jesus dos mortos, também a nossa ressurreição é um fato. Basta acreditar e confiar nessa promessa, embora talvez pareça absurda.

4. Impulsos para a pregação e o culto

A partir do que foi apontado acima como relevante para a interpretação do texto, oferece-se a possibilidade de enfatizar na pregação um dos aspectos indicados: a salvação como dom exclusivo de Deus, ou a fé como única resposta viável, ou a justificação como obra criadora de Deus, como nova criação a partir da ressurreição. Reforço as dimensões acima expostas com alguns impulsos que podem concretizar mais o texto bíblico:

“Não vos teve o Senhor afeição, nem vos escolheu, porque fosseis mais numerosos do que qualquer povo, pois éreis o menor de todos os povos, mas porque o Senhor vos amava (…). (Dt 7.7-8a.)

Deus escolheu as coisas loucas do mundo para envergonhar os sábios, e escolheu as coisas fracas do mundo para envergonhar as fortes. Ele escolheu as coisas insignificantes do mundo, as desprezadas e as que nada são, para reduzir a nada as que são, para que ninguém se vanglorie diante dele. É por iniciativa dele que vocês estão em Cristo Jesus, (l Co 1.27-30a.)”

Considere a história do publicano/pecador Zaqueu à luz de 3a) e veja a surpreendente conclusão de Jesus: Hoje houve salvação nesta casa! Porque este homem também é filho de Abraão. Pois o Filho do homem veio buscar e salvar o que estava perdido. (Lc 19. l -10.) Zaqueu creu e isso lhe foi creditado como justiça!

Considere também a pergunta de Jesus a Marta antes da ressurreição de Lázaro: Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que morra, viverá; e quem vive e crê em mim, não morrerá eternamente. Você crê nisso? (Jo 11.25-26.)

Me pergunto
Onde é que foi parar a minha fé…
Voltou para casa a pé e ainda não chegou
Tento não me preocupar com ela
Mas a fé…
Sabe como é que é…
Acredita em qualquer um
Tudo para ela é comum
Tudo com ela é viável
E eu aqui um tanto instável
Meio no claro, meio no escuro
Tropeço enquanto procuro acreditar (…)
Espero, me quebro, tropeço no escuro
E ainda procuro a minha fé. (Zélia Duncan.)

Bibliografia

Os textos do NT são citados de O NOVO TESTAMENTO: nova versão internacional (NVI), 1993, da Sociedade Bíblica Internacional.

KÄSEMANN, Ernst. A fé de Abraão em romanos 4. In: ID. Perspectivas paulinas. São Paulo : Paulinas, 1980. p. 93-116 (Biblioteca de estudos bíblicos, 11)

WILKENS, Ulrich. Der Brief na die Römer : 1. Teilband – Röm 1-5. Neukirchen-Vluyn : Benzinger/Neikirchener, 1978. (Evangelisch-Katholischer kommentar zum Neuen Testament, VI/1)

Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia