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Prédica: 1 Coríntios 11.23-26
Leituras: Êxodo 12.1-14 e João 13.1-17,34
Autor: Baldur van Kaick
Data Litúrgica: Quinta-feira da Paixão
Data da Pregação: 01/04/1999
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
 

1. Quinta-Feira da Paixão

A Semana Santa é uma época no ano eclesiástico em que muitas pessoas participam dos cultos, principalmente na Sexta-Feira da Paixão. Apesar de muitas famílias viajarem nesta época, tenho observado que também no Domingo de Páscoa a frequência ao culto é apreciável quando se realiza um culto de família. A Quinta-Feira da Paixão ainda é dia de trabalho, razão por que o número de frequentadores do culto varia de lugar para lugar. Deveríamos procurar introduzir o culto vespertino na Quinta-Feira da Paixão onde não é realizado e convidar com antecedência a comunidade para as celebrações na Semana Santa. Vale lembrar que cresce o número de apresentações da Paixão de Cristo na Semana Santa. Em uma mídia dominada por imagens de violência, de sexo e de poder do dinheiro, não devemos desprezar essas representações que revelam, à sua maneira, que dentro da história deste mundo existe uma história da salvação e que cada pessoa pode, com sua biografia, fazer parte desta história.

2. (…) e há quem tenha fome (v. 21)

Em l Co 11.23-26, texto de prédica na Quinta-Feira da Paixão, o apóstolo Paulo menciona os momentos dramáticos da instituição da Ceia do Senhor. O apóstolo não pretende desenvolver sua teologia da Ceia neste texto. Ele menciona a instituição da Ceia apenas com o objetivo de corrigir erros na prática da Ceia em Corinto. Há divisões na comunidade quando esta se reúne para a Ceia (v. 18). Uns não esperam pelos outros (v. 33). Alguns comem antecipadamente, outros passam fome (v. 21). Esse desvio na prática da Ceia está destruindo a Ceia do Senhor. A comunidade não está celebrando mais em realidade a Ceia do Senhor, mas uma ceia própria (vv. 20 e 21). Ela está comendo o pão e bebendo o cálice do Senhor indignamente (v. 27). Por causa dessa situação, o apóstolo recorre à autoridade máxima em assuntos de Ceia do Senhor, que é o próprio Senhor Jesus, e lembra o que o Senhor lhe deu e o que ele transmitiu à comunidade em relação à Ceia. O apóstolo quer conduzir a comunidade a uma correção da prática da Ceia.

Através da análise de alguns detalhes do cap. 11 pode-se perceber que a Ceia do Senhor em Corinto faz parte de uma refeição bem mais ampla. Os cristãos em Corinto trazem alimentos quando se reúnem para a Ceia, e estes são repartidos em uma refeição comunitária. A Ceia também é refeição que alimenta o corpo, o que é de especial importância para os cristãos e as cristãs em Corinto que pertencem às camadas pobres da população (l Co 1.26-29). Nessa refeição, o pão da Ceia do Senhor é oferecido no começo (vv. 23-24), segue a refeição, e
o cálice é distribuído no final (depois de haver ceado, tomou também o cálice — v. 25). Em Corinto, porém, a comunidade não está mais esperando pelos pobres (v. 21). Eles trabalham até tarde, são empregados, portuários ou escravos, e quando chegam, a refeição já passou. É esta a razão por que o apóstolo recorda o que ele lhes entregou a respeito da Ceia do Senhor, e isto como diretriz para que a comunidade se oriente por ela e corrija uma prática equivocada. Quem se senta para uma refeição e nela recebe o corpo e o sangue do Senhor deve esperar
pelo irmão e pela irmã.

3. Porque eu recebi do Senhor (…) (v. 23)

Se olhamos até aqui para a intenção que o apóstolo tem ao citar o texto da instituição da Ceia, cabe concentrar-nos agora no próprio texto da Ceia. Este, e não o contexto, é o texto de pregação para a Quinta-Feira da Paixão. O texto descreve o drama da Ceia do Senhor na noite em que Jesus foi traído. É claro que o texto já respira a ressurreição. O apóstolo declara que é do Senhor ressuscitado que ele recebeu a Ceia. Esta, para o apóstolo, é Ceia do Senhor (v. 20). É o Senhor que oferece nela o pão e o cálice e é ele quem age na Ceia. Isto é o meu corpo, que é dado por vós. Esta sentença, com a qual o Senhor qualifica o pão, assinala que o pão é o seu corpo. Corpo, como mostrou exaustivamente Ernst Käsemann, é uma categoria antropológica que significa em Paulo a possibilidade de relacionar-se. Assim como Jesus se relacionou em seus tempos terrenos com os seus através de seu corpo, do mesmo modo ele tem agora comunhão/koinonia(l Co 10.16) com os seus através do seu corpo, e o pão é o seu corpo através do qual ele se relaciona e se une com os seus. O específico desta primeira sentença, porém, é que aquele que come o pão (v. 27) tem comunhão/koinonia com o corpo do Senhor que foi entregue em Gólgota à morte (v. 24) e com os benefícios de sua morte vicária na cruz. Na Ceia a comunidade tem comunhão com o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.

Depois da refeição, mencionada acima, o Senhor oferece aos seus o cálice e afirma: Este cálice é a nova aliança no meu sangue. No centro desta sentença se encontra a menção da nova aliança. Aqui se trata de uma alusão a nova aliança anunciada em Jr 31.31ss. e que é idêntica ao reino de Deus proclamado e trazido por Jesus através de sua morte na cruz (v. 25). Se através do pão o Senhor dá parte/koinonia no seu corpo entregue à morte e nos frutos de sua morte pelos seus, através do cálice o Senhor dá parte/koinonia no seu senhorio presente. Em todo o Novo Testamento, morte e ressurreição de Jesus Cristo são inseparáveis. Isto vale também para a Ceia do Senhor. Na Ceia, a comunidade se une com o Cordeiro de Deus e com o Senhor presente e é colocada em seu reino presente.

O v. 26 explica que a Ceia do Senhor é Ceia para ser celebrada no tempo da Igreja, que vai da morte do Senhor até que ele venha. Fazei isto em memória de mim lembra que a Ceia é para ser repetida regularmente neste tempo da Igreja. Mas a celebração da Ceia em memória do Senhor também implica o anúncio de sua morte como morte salvífica. Ou seja, na Ceia o sacrifício do Senhor na cruz é anunciado. Ele é acontecimento concluído. Não é repetido, mas proclamado como acontecimento em que se consumou a nossa salvação. E através da união com ele, com o autor da salvação, na Ceia, o cristão e a cristã têm parte nos frutos dessa sua morte na cruz. É aqui que, para o apóstolo, está também o ponto de apoio para a correção da prática da Ceia em Corinto. Se o Senhor realizou a obra da salvação na cruz, num lugar de tamanho sofrimento e desprezo, a comunidade reunida na Ceia do Senhor não pode excluir da Ceia os que fazem parte das coisas humildes e desprezadas do mundo (l Co l .26-29). A refeição que é o núcleo da Ceia do Senhor só pode ser ceia inclusiva. Quem está unido na Ceia com aquele que morreu na cruz não pode excluir da Ceia os que sofrem.

4. Considerações homiléticas

A comunidade reunida em culto na Quinta-Feira da Paixão não olha para a situação em Corinto, mas está cativada pela celebração da ceia de Jesus com os seus discípulos. Desviar nesta noite a atenção da Ceia do Senhor para os problemas da comunidade de Corinto seria homileticamente errado. Cabe-nos, portanto, na Quinta-Feira da Paixão, olhar com muita atenção para os acontecimentos daquela noite em que Jesus celebra a ceia com os seus e conduzir a comunidade reunida para uma celebração da Ceia do Senhor que seja significativa. Na verdade, o tempo parou e a comunidade reunida se encontra na Quinta-Feira da Paixão com os discípulos no cenáculo onde foi preparada a ceia e é convidada a se unir com o seu Senhor.

5. Os bens divinos emanam de Cristo… (Lutero)

Quando a comunidade na Quinta-Feira da Paixão vai para o altar, ela caminha para o momento de união mais íntima que um cristão/uma cristã pode ter com o seu Senhor. A Ceia do Senhor é o ponto alto na vida de um cristão /uma cristã. O Senhor presente vem no pão e no vinho para habitar nos seus. O que o apóstolo diz em Gl 2.20 se aplica também à Ceia: Logo, já no sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. Na Ceia acontece em verdade um sonho, a distância entre o céu e a terra, entre Cristo e nós desaparece, e nós temos parte na salvação. Nessa união com o Senhor a comunidade recebe perdão, os abatidos são consolados, os oprimidos libertados, os que caminham para o incerto, como os discípulos, são fortalecidos. O que Lutero escreve em seu escrito sobre a liberdade do cristão também serve para descrever o que sucede na Ceia do Senhor: Os bens divinos emanam de Cristo e entram em nós: de Cristo, daquele cuja vida foi dedicada a nós, como se fora a sua própria (p. 51). Através da Ceia a comunidade é guiada para aquele espaço em que Jesus é o Senhor e em que atua a sua graça. Homileticamente importante para a compreensão do que acontece na Ceia também pode ser a referência de que Jesus usou pão ao declarar: Isto é o meu corpo. Pão é alimento básico para a vida. A Ceia implica, portanto, uma experiência de receber energias que são nutritivas. Na verdade, a Ceia é um sonho. E quando o cristão/a cristã volta a sentar, depois da Ceia, ele/ela volta diferente.

6. Devem emanar dentre nós os bens divinos… (Lutero)

A Ceia é um sonho. Mas toda Ceia verdadeira é o começo de uma nova vida social (Kraus). Quem faz uma excursão para o céu não pode se esquecer dos irmãos e das irmãs que sofrem. João 13, o Evangelho da Quinta-Feira da Paixão, narra que na noite da Quinta-Feira da Paixão o Senhor lava os pés de seus discípulos e, depois de fazer isso, diz: Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também (v. 15). Novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros (v. 34). Com o auxílio do Evangelho podemos introduzir de maneira homileticamente boa a visão do apóstolo Paulo de que a Ceia só é Ceia do Senhor quando inclui os necessitados. Importante é que isso seja desenvolvido de maneira clara. E também neste ponto Lutero mostra o caminho. Depois de expor que os bens divinos emanam de Cristo e entram no cristão, ele acrescenta: Da mesma maneira, devem emanar dentre nós os bens divinos, que recebemos de Cristo, e têm que se derramar sobre aqueles homens que de nós necessitam (…) Eis aí a natureza do amor quando é verdadeiro (…).' E Lutero conclui: Pela fé o cristão se eleva até Deus, e de Deus se curva pelo amor” (p. 51-52). A ceia não é ópio, mas é o caminho para a vida (Jo l4.6), e quem se une com o Senhor se volta em amor para os que sofrem. A prática do amor é o fruto visível da união com o Senhor. No culto da Quinta-Feira da Paixão esta dimensão da Ceia do Senhor pode ser resgatada no momento dos avisos, quando são lembrados os doentes, os falecidos e os esquecidos no processo da globalização e quando a comunidade é convidada a trazer alimentos (energias nutritivas!) para serem entregues às famílias que enfrentam necessidades. A ênfase do apóstolo nos lembra que o culto com a Ceia do Senhor é o lugar apropriado para se realizar o repartir de alimentos mencionado em l Co 11, na forma de uma refeição, como em Corinto, ou na forma da distribuição de uma cesta básica cujos alimentos são trazidos para o recinto da igreja no culto da Ceia e distribuídos posteriormente.

7. A Ceia do Senhor, o ponto alto também de nossa vida

Quando a comunidade, na Quinta-Feira da Paixão, levanta dos bancos c caminha para o altar, ela faz o mais importante de sua vida. Caminha para o momento da união com Cristo. Isto ela faz depois de uma caminhada mais longa. Expressou seu arrependimento por não viver os valores do reino de Deus e foi purificada de suas impurezas e transgressões. Ouviu as leituras e a prédica e foi iluminada pela palavra de Deus. Em seguida são dados os avisos e ela é confrontada com o sofrimento no mundo. Na ação de graças ela se une a anjos e arcanjos e toda a milícia celestial e canta o Santo. Está diante do Deus santo. As palavras de instituição lembram o drama da instituição da Ceia e que o Senhor mesmo está presente na Ceia. O Pai-Nosso, após as palavras de instituição, com a prece e perdoa-nos as nossas dívidas, recorda que todos vão à mesa com a necessidade de ser perdoados. A prece o pão nosso de cada dia nos dá hoje lembra que a comunidade necessita do pão da vida, que é Jesus Cristo, e do pão cotidiano para poder sobreviver. Quando a comunidade canta o Ó Jesus Cordeiro, todos sabem que é ele quem vem na Ceia, no pão e no vinho, o Cordeiro de Deus que morreu na cruz para agora dar os benefícios de sua morte vicária aos seus. E quando então a comunidade se levanta e vai para o altar, e come do pão e toma do cálice, é para que o Cordeiro de Deus entre em sua vida e para que ela experimente na união com ele as forças que vêm do Senhor c que vão além de toda experiência de recebimento de forças humanas. Com isso não descrevi os passos da Ceia do Senhor; só quis ressaltar que não se pode celebrar o momento de união mais íntima que um cristão e uma cristã podem ter com Cristo de qualquer maneira. Toda displicência e todo celebrar mecânico, algumas vezes presentes em nossas celebrações, como também o esquecimento dos que sofrem, levam a um celebrar indigno.

A pergunta para nós pastores e pastoras é como celebramos a Ceia do Senhor e se ela é para nós um momento extenuante ou um sonho que se realiza em nossa vida como obreiros e obreiras, uma excursão para dentro do céu. E a indagação é se já fizemos a experiência de que podemos, na mesa do Senhor, fazer aquela troca da qual Lutero fala, ou seja, de que podemos desfazer-nos de nossas ansiedades, frustrações e estresse, e experimentar que de Cristo emanam para dentro de nossa vida forças de perdão e de ressurreição, de esperança e de amor. Da maneira como celebramos a Ceia vai depender como a preparamos e como a vamos celebrar na comunidade: como um adendo ao culto ou como o ponto alto também de nossa vida.

Bibliografia

Manfred JOSUTTIS. Der Weg in das Leben : eine Einführung in den Gottesdienst auf verhaltenswissenschaltlicher Grundlage. München : Chr. Kaiser; Gütersloh: Gerd Mohn, 1991.
Ernst KÄSEMANN. Anliegen und Eigenart der paulinischen Abendmahlslehre. In: ID. Exegetische Versuche und Besinnungen. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1964. v. 1.
—. Gaste des Gekreuzigten. In: ID. Kirchliche Konflikte. Göttingen : Vandenhoeek & Ruprecht, 1982. v. 1.
Martin LUTHER. Da liberdade cristã. São Leopoldo : Sinodal, 1959.

Recomendo o livro de M. Josuttis para quem quiser se aprofundar no estudo do culto cristão. Ele contém estímulos preciosos para a prática pastoral.

Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia