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Prédica: Atos 2.14a, 22-32
Leituras: I Pedro 1.3-9 e João 20.19-31
Autor: Verner Hoefelmann
Data Litúrgica: 2º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 11/04/1011
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
Tema: Páscoa

1. Informações sobre o texto

1.1. O contexto

O texto é parte de uma prédica missionária de Pedro (At 2.14-40), pronunciada após o evento de Pentecostes. Depois de interpretar esse episódio nos vv. 14-21, a palavra de Pedro segue o esquema de uma pregação apostólica orientada para um público judeu:

l. Evocação do ministério público de Jesus (vv. 22-23);
2. Anúncio da ressurreição, fundamentado no testemunho das Escrituras (vv. 24-31);
3. Menção dos apóstolos como testemunhas da ressurreição (v. 32);
4. Exaltação de Jesus à destra de Deus (vv. 33-35);
5. Convite à conversão (vv. 37-40).

Mesmo que o texto previsto para este domingo se restrinja aos três primeiros pontos, é recomendável ter também os demais em vista. Esta prédica de Pedro possui uma função programática dentro do livro de Atos: após a ascensão de Jesus, é a primeira vez que os discípulos proclamam publicamente a mensagem salvífica. A ligação com Pentecostes é flagrante. Lucas pretende ressaltar que os discípulos não encontram coragem, inspiração e força para proclamar o evangelho dentro de si mesmos. A tarefa é possível porque eles foram animados e capacitados pelo poder do Espírito Santo que acaba de ser derramado sobre a comunidade.

Tal fora também a experiência de Jesus ao longo de seu ministério. O Espírito desceu sobre ele por ocasião do batismo (Lc 3.22), guiou-o ao deserto para ser tentado pelo diabo (Lc 4.1), conduziu-o pelas cercanias da Galiléia (Lc 4.14), iluminou-o em sua pregação inaugural em Nazaré, onde ele anunciou programaticamente a sua missão (Lc 4.18-21). Coisa semelhante se passa com os discípulos: eles só podem cumprir o mandato do ressuscitado de colocar em movimento a trajetória da Palavra de Jerusalém até os confins da terra (At 1.8) porque a promessa da assistência do Espírito acaba de se cumprir.

O contexto, portanto, pretende preservar-nos do risco de querer transformar nossa proclamação em veículo de nossa própria sabedoria e de nossos próprios projetos. Não somos donos da Palavra — somos seus instrumentos. Nossa prédica só poderá alcançar seu alvo se o Espírito Santo dela puder se servir. Simultaneamente, porém, a prédica de Pedro nos lembra que o Espírito Santo não é outro senão aquele que orientou Jesus em seu ministério. Depois de ser exaltado à destra de Deus, Jesus derramou seu Espírito sobre toda a comunidade, qualificando-a para testemunhar a ação de Deus em favor de seu povo (v. 33).

1.2. O texto

Vv. 22-23: Embora a perícope deste domingo esteja orientada para o anúncio da ressurreição, ela inicia com uma retomada do ministério público de Jesus. Isso indica que as primeiras comunidades não conseguiam proclamar a ressurreição de Cristo sem se referir ao nazareno que assumiu a condição humana e foi crucificado. O ressuscitado é o encarnado e o crucificado. Três pensamentos se destacam nessa evocação histórica.

a) Os milagres, prodígios e sinais de Jesus são indícios claros de que Deus estava com ele durante o seu ministério terreno. Isso não significa que suas obras sejam entendidas como prova irrefutável de seu poder divino. Significa apenas que elas são um sinal que convida a crer. Por isso Jesus se nega a realizá-las quando elas passam a ser exigidas como um substituto ou garantia para o ato da fé (Lc 11.29-32; 23.8). De qualquer forma, o ministério terreno de Jesus é um apelo de Deus ao seu povo, e as obras que realizou, um sinal suficiente para que possa ser reconhecido como emissário de Deus. Lucas nos diz que também a pregação apostólica é confirmada por tais sinais (At 2.43; 4.30; 14.3).

b) Deus estava presente também na morte de Jesus. Ele sabia tudo de antemão e permitiu que todas as coisas acontecessem. Isso não significa que Deus mesmo seja o responsável ou o culpado pela morte de Jesus. Significa apenas que ela pode ser integrada aos planos salvíficos de Deus, cujos desígnios se realizam ao longo da história (At 13.36; 3.18; 4.28; 20.27).

c) A morte de Jesus envolve responsabilidade humana. Pessoas humanas resistiram e se opuseram com violência aos apelos de Deus transmitidos por ele. Os ouvintes da prédica são responsabilizados pela crucificação e morte de Jesus, executada através de mãos iníquas, isto é, através das autoridades romanas.

V. 24: Este versículo estabelece um contraste com o anterior e constitui o centro da proclamação que se segue. Em contraposição ao crime de morte perpetrado pelos circunstantes na tarde de sexta-feira, a ressurreição de Jesus representa o sinal definitivo de que Deus estava e continua do seu lado. À luz da Páscoa se torna evidente que na sexta-feira santa não foi Deus quem rejeitou a Jesus. Ele foi rejeitado pelas pessoas envolvidas em sua crucificação, que com esse ato deram provas de sua obstinação. Em contraste com isso, a ressurreição significa, por assim dizer, que Deus ratificou a missão terrena de Jesus. E qual era sua missão, senão chamar as pessoas a edificar sua vida sobre a palavra de Deus, que liberta dos grilhões da morte em suas diferentes formas de manifesta¬ção? Por isso Deus não permite que nem mesmo a morte derradeira, sua grande adversária escatológica (l Co 15.26; Ap 20.14; 21.4), possa reter a Jesus, mas a obriga a soltá-lo para a vida.

Vv. 25-28: A reprodução do SI 16.8-11 (na versão da Septuaginta) serve ao propósito de mostrar que o triunfo sobre a morte faz parte dos planos salvíficos de Deus. Em sua versão original, esse Salmo expressava a confiança ilimitada de um piedoso israelita de que Deus o manteria unido a Ele no momento em que os poderes adversos fossem minando suas energias vitais.

Para aplicar o Salmo à ressurreição de Jesus, o autor parte de quatro pressupostos:

* O salmista está se referindo a uma ressurreição corporal (que em verdade só foi afirmada mais tarde pelos fariseus).

* O autor do Salmo é Davi, que fala como um profeta (v. 30).

* Jesus é Filho de Davi, pertencendo, portanto, à sua linhagem.

* Davi não fala a respeito de si mesmo, mas de um descendente, ou seja, Jesus.

Mesmo que se possa discutir alguns desses pressupostos, não é difícil perceber por que o Salmo foi usado nesse contexto como um testemunho em favor da ressurreição:

* A convicção do salmista de que Deus está do seu lado em qualquer circunstância (vv. 25, 28).

* A afirmação de que a carne repousará (literalmente: habitará numa tenda) em esperança (v. 26).

* A certeza do salmista de que Deus não deixará a vida (e não, a alma!) no nades = no mundo dos mortos (v. 27).

* A afirmação de que Deus não permitirá que o seu Santo (entendido como referência a Jesus) veja a corrupção, ou seja, que seu corpo se decomponha e experimente a morte definitiva (v. 27).

Como se pode perceber claramente, os vv. 25-26 são relacionados à vida terrena de Jesus, e os vv. 27-28, à sua morte e ressurreição.

Vv. 29-31: Estes versículos constituem uma explicação do texto bíblico recém citado, com a finalidade de mostrar aos ouvintes que o salmista, longe de referir-se a si mesmo, só podia estar se referindo à ressurreição de Jesus. A argumentação é construída em diferentes etapas.

a) Todos conheciam o túmulo de Davi, localizado na colina ao sul de Jerusalém. Ele ainda existia no tempo de Lucas e só foi destruído durante a insurreição de Bar Kochba, entre 132 e 135 d.C. A existência desse túmulo, com os restos mortais do monarca, é uma prova evidente de que Davi não ressuscitou e que, portanto, ele não estava se referindo a si mesmo ao compor o Salmo 16.

h) Davi escreveu o Salmo mencionado na qualidade de proibia. Como tal, ele não se releria a si mesmo, mas a um descendente seu, o futuro rei messiânico, que haveria de ocupar o seu trono consoante a promessa de Nata e do próprio Deus (2 Sm 7.12s.; Sl 132.11).

c) A promessa divina feita a Davi de que um descendente seu não seria subjugado pela morte nem seu corpo sofreria decomposição se cumpre na ressurreição de Jesus.

V. 32: A argumentação elaborada nos três versículos anteriores desemboca na repetição da mensagem central da perícope, que desencadeara toda a reflexão (v. 24): Deus ressuscitou a Jesus. Ao ressuscitá-lo da morte, mostrou-se fiel à promessa feita ao patriarca Davi e, sobretudo, ao seu plano salvífico que implica a superação da morte. Comparado ao v. 24, este versículo final acrescenta um elemento novo: a menção das testemunhas. Desde o início elas são parte integrante do anúncio da ressurreição (l Co 15.5), e no livro de Atos elas adquirem uma função especial (1.8,22; 10.40-43; 13.30-31). Para Lucas, elas asseguram a legitimidade da mensagem cristã. Partindo dos fatos realmente ocorridos, elas desdobram seu significado para dentro das novas circunstâncias que se apresentam, como se percebe nessa prédica de Pedro em Pentecostes.

2. Meditação

Os dois textos bíblicos previstos como leitura para este 2° Domingo da Páscoa possuem uma admirável relação com o texto da prédica e prestam uma excelente ajuda para a sua contextualização. Tomé, que não presenciara a aparição do ressuscitado na tarde da Páscoa, não acredita no testemunho dos discípulos. Ele quer ver para crer. Se não puder ver pessoalmente o sinal dos cravos nas mãos de Jesus, se não tocar ali com os dedos e se não puser a sua mão no lado dele aberto com a lança, não vai acreditar (Jo 20.25).

Por mais que ouçamos a repreensão final dirigida a Tomé por sua incredulidade, ou por sua credulidade condicionada a garantias e provas, ele parece continuar muito próximo de nós.

Sentimos uma admiração oculta por ele, porque de alguma maneira ele teve coragem de expressar perguntas e dúvidas que estão latentes em nosso próprio interior. Como é possível acreditar na ressurreição de Jesus? Como é possível acreditar em tal acontecimento inaudito, singular, sem paralelos, sem ter em mãos algum sinal concreto, alguma garantia, ao menos algum indício plausível? Como testemunhar o que não vimos? Como acreditar em nossa própria ressurreição? Como construir nossa vida sobre essa esperança, para a qual não se tem nenhuma garantia?

O texto de l Pedro impressiona por outro aspecto. Chamam a atenção as palavras carregadas e densas que o autor escolhe para caracterizar aquilo que aguarda os leitores no final dos tempos: herança incorruptível, sem mácula, imarcescível, louvor, honra, glória. Ao falar do tempo presente, contudo, o autor precisa constatar que a vida dos leitores está marcada pela tristeza e pelo sofrimento, provocados pelos vários tipos de provações que estão suportando.

Como testemunhar a ressurreição de Jesus e a nossa ressurreição em meio a um contexto marcado pelo sofrimento e pela morte prematura, sem que isso soe como fuga da realidade, consolo barato ou mecanismo de despressurização social? Os textos indicam algumas pistas, que podem ser exploradas para a pregação.

a) Proclamar a ressurreição significa afirmar que Deus tem um plano de salvação para este mundo e para cada pessoa em particular. Ele deseja acima de tudo construir, e não derrubar; animar, e não abater; renovar a esperança, e não causar desespero; promover vida, e não matar ou fazer vegetar. Esse plano, manifestado aos profetas antigos, foi definitivamente revelado em Jesus de Nazaré. Em sua trajetória, é possível perceber o que Deus pretende para cada uma de suas criaturas e para a sua criação em geral. Não há limites para o seu projeto. Nada é capaz de interrompê-lo ou ameaçá-lo. Assim como esteve presente na vida de Jesus, animando-o a combater os poderes da morte que se manifestam em meio à vida, Deus também esteve presente em sua morte, libertando-o dos grilhões da grande inimiga e devolvendo-o à vida.

b) Proclamar a ressurreição não significa encobrir, reprimir ou desconsiderar a realidade de sofrimento e morte que caracteriza a vida das pessoas, mas trazê-la à tona e aprender a encará-la de frente. É o que aprendemos dos textos previstos para este domingo. Ao proclamar o Cristo ressuscitado, Pedro resgata a memória histórica de Jesus que culmina em sua morte de cruz. Ao manifestar-se para os discípulos espavoridos na tarde da Páscoa, o ressuscitado aponta para as marcas da violência de que foi vítima, como a dizer que a ressurreição não apaga a memória da dor e do sofrimento. Ao confortar os leitores da diáspora com a perspectiva da salvação escatológica, a Carta de Pedro não ignora o sofrimento que eles agora padecem, mas os exorta a sofrer, se necessário, em consequência da prática do bem e da justiça, e não da iniquidade (cf. l Pe 4.12-16).

c) Proclamar a ressurreição significa engajar-se na luta contra as manifestações de morte que invadem antecipadamente o espaço da vida. É o que caracteriza o ministério de Jesus assim como foi lembrado na pregação de Pedro. Os milagres e prodígios que ele realizou pelo poder de Deus são sinais da inconformidade divina frente à situação miserável em que vivem suas criaturas, desfiguradas pela doença, pela fome, pela solidão, pela culpa, em suma, pelas manifestações concretas de pecado. Para emprestar terminologia paulina, seríamos igualmente as mais infelizes das criaturas se nossa esperança em Cristo se limitasse apenas à outra vida (cf. l Co 15.19).

d) Proclamar a ressurreição também significa, evidentemente, oferecer ao ser humano a possibilidade de libertar-se da sua preocupação e angústia com respeito ao futuro depois da morte. A partir da morte e ressurreição de Cristo, sabemos que nada mais nos pode separar do amor de Deus, que nele se manifestou como Senhor sobre a vida e a morte. Por mais angústia e medo que a experiência da morte nos possa causar, sabemos que do outro lado não nos espera o vazio ou o desconhecido, mas os braços abertos de Deus, prontos a acolher-nos em seu regaço e a presentear-nos com vida plena e duradoura.

e) Por fim, é bom saber que não nos compete provar a mensagem da Páscoa. Podemos apenas testemunhá-la e compartilhar a diferença que ela fez e faz em nossa vida, assim como se verificou na vida dos primeiros discípulos. Ao cair da tarde do domingo da Páscoa, eles estão acuados em casa, com as portas trancadas, amedrontados pela terrível experiência da crucificação de Jesus. Algum tempo depois, estão falando e agindo publicamente em nome do crucificado, despertando admiração e perplexidade por sua ousadia. Como explicar a diferença? Eles mesmos não sabem explicá-la de outra forma a não ser a partir da sua experiência: o crucificado não permaneceu na morte, mas foi ressuscitado pelo poder de Deus. Exaltado junto a Deus, ele continua animando o testemunho e a prática dos discípulos através do Espírito Santo derramado em Pentecostes. Nossa tarefa, portanto, não é provar a ressurreição, mas testemunhá-la a partir do nosso comprometimento decidido cm favor da vida. A tarefa de convencer e conduzir à fé pertence ao Espírito Santo — o mesmo que animou Jesus e as primeiras comunidades a proclamar o não definitivo de Deus à morte e o seu sim definitivo à vida. A experiência da fé, por sua vez, será capaz de nos fazer enxergar a vida e a morte a partir da perspectiva de Deus. Só ela será capaz de inverter a equação: não ver para crer, mas crer para ver o que Deus pode fazer em nome de seu amor irrenunciável em favor da vida — e vida plena — de suas criaturas.

3. Subsídios litúrgicos

Hinos: Hinos do povo de Deus: 66; 70. O povo canta: 16, 30, 32, 64, 158.
Intróito: Se a nossa mensagem é que Cristo ressuscitou, como é que alguns de vocês dizem que os mortos não vão ressuscitar? (l Co 15.12.)

Confissão de pecados: Amado Deus: Agradecernos-te pela mensagem gloriosa da Páscoa, que há alguns dias tu nos fizeste lembrar. Em teu Filho Jesus Cristo tu te mostraste como um Deus comprometido com a vida. Apesar disso. muitas vezes nos deixamos vencer pela frustração e pelo cansaço. Queremos provas e garantias das tuas promessas. Queremos ver para crer, ao invés de crer para ver. O passo da confiança ilimitada em teu amparo e proteção nos parece arriscado demais. Por isso rompemos a comunhão contigo, tornando-nos pessoas tristes, desiludidas, solitárias e desencorajadas. Perdoa, Senhor, o nosso pecado. Restaura-nos a alegria da salvação. Renova nossa fé e esperança, por amor àquilo que teu Filho realizou em nosso favor. Amém.

Palavra de graça: Por causa da sua grande misericórdia, Deus nos deu uma nova vida pela ressurreição de Jesus Cristo. Por isso nosso coração está cheio de uma esperança viva. (l Pe 1.3.)

Oração de coleta: Amado Deus: Envia teu Espírito aos nossos corações, para que ele nos console na aflição, nos oriente em nosso caminho, nos ensine a crer em tuas promessas e nos fortaleça para viver segundo a nossa esperança. Amém.

Bibliografia

COMBLIN, José. Atos dos Apóstolos. Petrópolis : Vozes, 1987.
FABRIS, Rinaldo. Os Atos dos Apóstolos. São Paulo : Loyola, 1991.
MARSHALL, I. Howard. Atos dos Apóstolos. São Paulo : Vida Nova, 1982.
ROLLOF, Jürgen. Hechos de los Apostoles. Madrid : Cristiandad, 1984.

Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia