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Prédica: Atos 2.14a, 36-47
Leituras: I Pedro 1.17-21 e Lucas 24.13-35
Autor: Arnoldo Mädche
Data Litúrgica: 3º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 18/04/1999
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
Tema:

1. Introdução

No Evangelho de Lucas, cap. 3.4s., Jesus começa seu ministério após ter descido sobre ele o Espírito Santo em forma de pomba (batismo). Em At 2. l s. o Espírito Santo desce, desta vez em forma de línguas de fogo, dando início à comunidade de Jerusalém. Esse paralelismo redacional quer dizer: assim como Jesus atuou na força do Espírito Santo (veja ainda Lc 4.1,14,18!), também sua Igreja viverá pela força do Espírito, desta vez na pessoa do Cristo ressurreto (Lc 24.13-35 — Emaús, leitura do Evangelho do domingo). Até At 6.1-7 (instituição dos diáconos) a comunidade/Igreja cresce e se estrutura em vida comunitária. Com Estêvão (6.8s.) inicia a grande virada na qual o povo coloca-se do lado da liderança judaica que se recusa a aceitar Jesus como o Cristo. É o momento em que o judaísmo e o cristianismo se constituem negando-se mutuamente. A pregação dos apóstolos é combatida e, por consequência, também a Igreja cristã passa a ser perseguida e martirizada.

2. Texto

É importante considerar a construção contextual que antecede o nosso texto de pregação. Após a descida do Espírito Santo, surge a primeira pregação pós-pascal. A resposta da comunidade é fundamental (v. 37): Que faremos, irmãos? Arrependimento, Batismo e vários relatos de como viviam os cristãos na comunidade de Jerusalém. Atos 2.42-47 centraliza e reproduz de forma sintética e idealizada esse processo pós-pascal que determinará o início da Igreja cristã. Em 4.32-35 temos mais uma vez, duma forma generalizada, o crescimento numérico, espiritual e ético da comunidade primitiva. Lucas descreve de forma positiva a vida comunitária em Jerusalém, apesar dos percalços humanos de Ananias e Safira (5.1-11).

Podemos estruturar o texto por tópicos:

v. 14a: a primeira prédica
v. 36: o crucificado é Senhor
v. 37: que faremos, irmãos?
v. 38: arrependimento e Batismo
vv. 39-41: chamado e crescimento
vv. 42-47: vida comunitária

A pergunta deste domingo, que sugiro ser o tema de pregação, está sintetizada no v. 37. É a resposta de fé ao grande ato de amor e de salvação que é celebrado na Páscoa. Essa resposta de fé pode ser resumida no seguinte:

1) Aprendendo a doutrina dos apóstolos,
2) fraternidade cria comunhão,
3) oração faz a diferença e dá poder,
4) a singeleza de coração, como força evangelizadora,
5) os sinais de mudança comportamental são inquestionáveis,
6) responsabilidade pelos outros, um ato de consciência política, e
7) o culto de louvor une pessoas e oportuniza missão.

3. Meditação

Os sinais da comunidade primitiva ainda hoje estão presentes na Igreja de Cristo. Refiro-me principalmente à doutrina dos apóstolos, à comunhão comunitária, ao partir do pão (Eucaristia) e à oração.

1) Doutrina dos apóstolos: A tradição apostólica é parte fundamental da Igreja cristã. Lucas coloca essa questão como intenção básica de sua obra. Em Lc l .4 dá início ao Evangelho com as verdades que Jesus começou a fazer e a ensinar (veja At 1.1).

2) Comunhão comunitária: E preciso considerar o sentido duplo de At 4.32: um só coração e alma e, segundo, no uso social dos bens particulares. Muito se disse e se escreveu sobre esse comunismo cristão, mas não se pode considerá-lo um programa social e econômico. Trata-se muito mais de uma visão da grande família em que bens são socializados quando uma necessidade se faz presente entre os familiares. Exegetas apontam ainda que nesse texto há terminologia helenística, o que indica o interesse de Lucas em falar às pessoas mais esclarecidas da cultura grega. Outra tradição presente está na mesa partilhada com os pobres da tradição judaica.

3) Partir do pão: Traz a tradição do rito inicial da ceia judaica. Em At 20.7,11 é usado como termo técnico para designar a Ceia do Senhor. Em l Co 11.20s. Paulo também interpreta a Eucaristia mais como um exame de fé em Jesus Cristo do que como oportunidade de matar a fome.

4) Oração: As orações no início eram feitas no templo (v. 46) e se orientavam pelo costume das orações diárias dos judeus (At 3.1). Com o passar do tempo, desenvolveram uma forma própria de oração que transparece nos cânticos de Maria e Zacarias (Lc 1) ou em At 4.24-31, onde a fé cristã é contextualizada em seu caráter transformador e libertador.

Esses elementos, ainda hoje presentes de forma ideal na Igreja cristã, exaltam a riqueza da vida comunitária em suas repercussões sobre a vida pessoal e coletiva dos crentes. O louvor a Deus e a Cristo tem a ver com a responsabilidade social para com os outros. A comunhão eucarística é ampliada pelo culto público ao qual todos os grupos sociais e culturais devem ter acesso.

Diferentemente da exclusão judaica, o cristianismo abre-se para democratizar a fé no Deus que se revelou poderosamente em Jesus Cristo. Dali vêm a simpatia do povo (At 2.47) e o crescimento surpreendente como resposta em Jerusalém. As referências numéricas, porém, têm apenas função literária e querem afirmar teologicamente o fato de que Deus abençoava ricamente os primeiros passos de sua Igreja.

Apesar desse início promissor, o livro de At os retrata de forma real o crescente antagonismo do povo judeu à vivência da fé cristã. Em At 4.1 a hierarquia se opõe aos apóstolos. Em 6.12 o povo se coloca do lados dos incrédulos para apedrejar Estêvão e em 12.3 o relato é generalizado aos judeus.

4. Mensagem

Certamente esse texto possui potencial para muitas prédicas dominicais. Escolher ou encolher pode ser uma opção do/a pregador/a. Como já sugeri, devemos tomar a questão fundamental dos primeiros ouvintes como também uma questão de nosso tempo: Que faremos, irmãos? Deus ratificou a Nova Aliança em Cristo. Por fé em Cristo, a salvação se abre para toda a humanidade. Pela presença do Espírito de Cristo, na vida comunitária, é criada a Igreja que testemunhará com poder e coragem novos tempos para a fraternidade e solidariedade social.

A resposta de Jerusalém passa, pois, por arrependimento, Batismo, ensino cristão, vida comunitária, Eucaristia, oração, diaconia e louvor. Como chega isso a nós após 2 mil anos de Igreja cristã? Como está isso em relação à nossa comunidade? Com uma história de 30 ou 50 anos de vida paroquial, na cidade grande ou na área rural, como se apresenta a nossa resposta ao ato pascal?

Penso que a história de cada comunidade e de sua atuação em grupos, de seu culto a Deus e de sua solidariedade social é que deve ser lembrada neste 3° domingo pós-pascal. Do texto recebemos pistas e temas para o exame de consciência comunitária. Também entre nós Deus vem abençoando com sua riqueza espiritual, vem transformando vidas e convidando pessoas, sem distinção racial ou social, a participarem de sua Igreja? O sustento da paróquia, dos programas e dos serviços nela prestados são também sinais e prodígios de Deus e contam com a simpatia de nossos membros fiéis e do povo de nossa cidade/país. Ceder contribuições mensais também é socializar bens, dividir encargos comunitários só será possível onde pessoas forem libertas do seu egoísmo particular. Precisamos valorizar e ter mais auto-estima pelo que já se fez e pelo vem se fazendo em nossas pequenas comunidades protestantes.

Uma segunda leitura de At 2.42-47, no fim da prédica, seria de grande impacto. Penso que vai calar mais fundo na alma dos ouvintes o que aconteceu de forma maravilhosa em Jerusalém.

5. A pregação de Atos 2

A maioria das bibliotecas pastorais receberam o livro de Peter Härtling intitulado Textspuren (n° 6), em que, na p. 117, encontrei algo importante para o exame de nosso texto. Traduzo, sem ater-me ao aspecto literal, o decálogo de Joachim Schmidt:

1. Pregar na força do Espírito nem sempre significa levar ouvintes ao delírio ou ao espanto entusiástico.

2. Não devemos provocar nos outros a impressão de que tenhamos talvez tomado uns tragos a mais ou que necessariamente precisemos em razão desse texto ser mais carismáticos.

3. Vejam como Pedro é sóbrio e racional (luterano!) em sua prédica. Quem aparece é o Espírito e não o Pedro carismático.

4. Ao pregar tenhamos sempre presente a força dos sonhos que o evangelho de Cristo semeou em Jerusalém.

5. Também no Brasil e na Igreja cristã estamos comprometidos na culpa pelo holocausto dos judeus. Cuidado com o anti-semitismo em nossas pregações!

6. Aprendamos a lição de Pedro: pregar é provocar perguntas e inquietações nos ouvintes! Evitemos a pregação na qual ouvintes não são levados a fazer nenhuma pergunta e nenhum questionamento pessoal ou social.

7. Uma boa prédica, pois, faz convites: a primeira prédica pós-pascal terminou num diálogo com ouvintes. Isso deveria perturbar-nos e mexer muito mais com nossa forma de pregar.

8. A pregação de Pedro não foi um ato cerebral. É dito: compungiu-se-lhes o coração (v. 37). Não tenhamos medo de dizer a nossos ouvintes que a fé tem a ver com o coração. O mesmo vale para nós, pregadores/as do evangelho!

9. Preguemos aos nossos ouvintes, mas não esqueçamos dos que estão longe de nossos bancos (v. 39). Nossa pregação deve ser urbi et orbi. Não sejamos tão curtos nem nos apequenemos demais com nossa prédica!

10. Preguemos cheios de Espírito. Não poupemos o nosso carisma. Deixemos a paz de Deus superar todas as racionalidades.

6. Subsídios litúrgicos

Em se tratando de uma pregação que envolve a pergunta Que faremos irmãos?, sugiro que a liturgia seja partilhada com os/as que estão fazendo a vida comunitária andar. As orações, os cantos e responsórios deveriam refletir a força e a fraqueza da comunidade.

Bibliografia

WEBER, Bertoldo. Meditação sobre Atos 2.41a,42-47. In: Proclamar Libertação São Leopoldo : Sinodal, 1985. v. XI, p. 284-290.
WEISER, Alfons. Ökumenischer Taschenbuchkommentar zum neuen Testament 5/1. Würzburg, 1981.

Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia