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Prédica: Atos 6.1-7
Leituras: I Pedro 2.19-25 e João 10.1-10
Autor: Harald Malschitzky
Data Litúrgica: 4º Domingo da Páscoa
Data da Pregação: 25/04/1999
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
Tema:

1. Introdução

Uma pergunta intrigante quando se lê o texto pode ser mais ou menos esta: será que um incidente na distribuição de ajuda entre as viúvas teria sido motivo suficiente para se criarem novas funções na jovem Igreja? E mais, se tivesse sido somente isso, será que Lucas o teria mencionado em sua obra? O que há de tão importante por detrás do relato?

Por outro lado pode-se perguntar também se as informações que Lucas tinha eram somente estas ou se ele, ao relatar, tinha alguma razão para omitir as causas mais profundas do conflito.

Lendo-se o livro de Atos até mais adiante e lembrando o que Paulo relata em Gálatas sobre a quase disputa entre grupos e visões divergentes nas primeiras comunidades, pode-se deduzir que o verdadeiro conflito, que se manifestou em uma forma discriminatória de distribuição de alimentos, era a questão ainda não resolvida entre os cristãos hebreus e os helenistas, judeus que tinham vivido fora da Palestina e assimilado muitas coisas do seu contexto. Como a ala judaico-cristã tinha dificuldade de aceitar os demais como cristãos plenos, ela privilegiava as suas próprias viúvas em detrimento das demais. Há até quem afirme que em Jerusalém havia, por assim dizer, duas comunidades distintas, uma de judeus e outra de gregos (cf. Beyer, p. 44).

Por que Lucas não o relata assim? Ao que tudo indica, Lucas não escreveu para relatar os conflitos, mas para dizer como pessoas imbuídas do Espírito Santo resolveram os conflitos e como foram, assim, construindo a Igreja que — nada de novo! — não estava e não está pronta! O Livro de Atos (…) não tem a intenção de apresentar a marcha da missão, mas a linha mestra histórico-salvífica baseada na qual a Igreja se formou. (…) A forma da igreja primitiva não é normativa para todos os tempos para a formação da Igreja. (Goppelt, v. 2, p. 529.) Em suma: não importa o tamanho do conflito, mas importa a sua solução concreta. Desta forma, de tijolo em tijolo, se constrói e construirá a Igreja.

2. Detalhes do texto

O primeiro versículo caracteriza o problema, informando positivamente que o número de cristãos aumentava e dizendo do conflito que se estabelecera. Na verdade, o mais importante não é a questão se havia um só grupo em Jerusalém ou se havia mais. Certo é que todos se entendiam como seguidores de Cristo, em linguagem paulina, membros do mesmo corpo. Como jamais existiu uma comunidade em estado puro, não é de admirar que houvesse discriminação a partir da origem dos membros, coisa que ainda se encontra hoje em nossa Igreja. A murmuração ou reclamação dos discriminados é natural e sugere que havia liberdade para fazê-lo. Grupos conflitantes mais complicados do que é o caso de Atos vamos encontrar em Corinto (l Co l .10ss.). Independentemente das dimensões reais do problema, os apóstolos buscam uma solução.

Os doze convocam uma assembléia para, com a multidão dos discípulos, dar um passo novo, pois não lhes parecia razoável tirar do seu tempo, investido na pregação, para assumir também essa tarefa. Não há indícios de que eles se considerem superiores aos outros, criando uma hierarquia de tarefas. Muito pelo contrário, estão abrindo mão de fazerem tudo sozinhos e, com isso, estão limitando o seu próprio campo de ação e o seu poder na comunidade, embora tenham tido contato pessoal com Jesus. Neste momento entra uma prática nova, a saber, que a comunidade escolhe pessoas para determinadas tarefas. Devem ser pessoas idôneas e de fé. Elas receberão o encargo publicamente, com imposição de mãos e oração.

Assim como — conforme o diz o texto — os doze têm a seu encargo o ministério da pregação, os sete escolhidos (é interessante notar que todos os nomes são de origem grega!) são encarregados do ministério diaconal. Estamos diante de uma pura divisão de tarefas, nada mais. É por isso que se pode afirmar que aqui se registra o nascimento oficial da diaconia como encargo distinto ao lado do ministério da pregação. A escolha pela comunidade, por um lado, e a bênção com imposição de mãos e oração, por outro, deixam claro que aqui se trata de um ministério tão espiritual quanto o da pregação. Se é verdade que não só de pão viverá o homem (Mt 4.4), é verdade que também de pão viverá o homem. Finalmente vale lembrar que em nosso texto se fala em diaconia da palavra (pregação) e diaconia de mesa (neste caso se lê o verbo diakonein), a mesma raiz para duas tarefas distintas!

Apontar para o crescimento numérico e o fortalecimento dos cristãos é parte da obra de Lucas. É o crescimento que leva a uma divisão de tarefas; é a divisão de tarefas e o bom funcionamento (em sentido pleno) da comunidade que conferem credibilidade ao seu testemunho, tanto que mais pessoas acorrem, inclusive sacerdotes do templo.

3. A caminho da prédica

O ministério eclesiástico, por mais nobre que seja sua tarefa, é também uma questão de poder. No decorrer dos séculos o ministério da pregação muitas vezes foi confundido com poder autoritário e ditatorial. Isso vale tanto para grandes momentos e grandes figuras históricas quanto no varejo de párocos em paróquias.

A posição de poder dos 12 apóstolos não é colocada em dúvida pelo Novo Testamento. Assim como não se põe em dúvida o papel de líder de um Pedro, como o demonstrou, entre outros, o teólogo Oscar Cullmann em seu livro Pedro (São Paulo : ASTE, 1964). No entanto, em nosso texto se vê que é possível abrir mão de poder sem perder autoridade (algo parecido ocorre na longa discussão em torno da missão entre Paulo e Pedro [cf. At 15 e Gl 2]). Verdade que esse processo nem sempre é pacífico e tranquilo!

A divisão de tarefas — e de poder! — veio, por assim dizer, de fora. Uma tarefa mal feita e as reclamações decorrentes é que levam a buscar uma solução, escolhendo-se e instalando-se pessoas para a tarefa que hoje designamos como diaconal (para o NT também a pregação é diaconal — cf. acima!).

Importante é destacar que a divisão de tarefas e a instalação solene, em culto, das pessoas escolhidas não têm como objetivo congelar essas funções universalizando-as. O objetivo era sanar uma necessidade concreta. Se é correta a leitura segundo a qual Lucas quer destacar uma ação e não tanto uma nova estrutura ministerial, então a Igreja e as igrejas têm liberdade para agir e buscar soluções concretas de caso em caso, desde que tanto a pregação quanto o servir à mesa não sejam descuidados. Penso que é muito salutar ouvir paralelamente l Co 12.12-31.

E incluo aqui uma observação que se pôde e se pode fazer com facilidade: a atividade diaconal na Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), nas últimas três décadas, passou por mudanças profundas, num processo contínuo. Os desafios quase sempre vieram de fora, das necessidades concretas. Simplificando eu arriscaria dizer que o ministério diaconal foi de uma ênfase assistencialista muito forte para uma ênfase, por assim dizer, profética. E houve resistências, muitas delas vindas de pessoas encarregadas do ministério da pregação — sim, encarregadas, porque ninguém é dono de qualquer ministério. A seriedade no exercício dos ministérios e a coragem de dar passos novos fizeram com que a Igreja granjeasse credibilidade, mesmo que não se possa registrar um crescimento como o relatado em Atos.

4. Pistas para a prédica

l) Na comunidade cristã existem muitas tarefas. Se a pregação da Palavra, a difusão falada do evangelho, pode ser considerado o primeiro passo, isso não significa que ele seja o único ou superior aos demais.

2) À medida que novas tarefas são identificadas pela comunidade (ou por parte dela), será preciso procurar pessoas para assumi-las.

3) O texto de Atos mostra como a questão foi resolvida no seu tempo, com a escolha de pessoas que se ocupassem precipuamente de prover e distribuir alimento para as viúvas pobres.

4) Inserir um bom parágrafo para contar o que se faz hoje na Igreja no terreno da diaconia, apontando para desafios que não estão sendo atendidos.

5) Lembrar que o ministério é um só, mas que as funções, os papéis e as responsabilidades são distintas, o que pode significar até um empenho diferente, mas não implica nenhuma distinção hierárquica e/ou de poder (cf. l Co 12.12ss.).

6) A atuação conjunta das pessoas engajadas no ministério é que vai dar credibilidade ao testemunho da Igreja, em palavra e ação.

5. Subsídios litúrgicos

Convidar pessoas engajadas na diaconia (titulares ou não) para participar de cantos, orações e leituras bíblicas. Talvez alguém pudesse contar alguma coisa a respeito de sua atuação em uma área diaconal.

Usar como Salmo do dia (algumas comunidades recitam o Salmo do respectivo domingo) o Salmo 8. Entre os cantos poder-se-ia usar o Dá-nos olhos claros (Hinos do povo de Deus, n° 166).

A oração final poderia (em três ou quatro preces) lembrar e interceder por atividades distintas na área diaconal (p. ex. creches, grupos de mães, asilos, casas de formação diaconal). As preces podem ser intercaladas pelo Kyrie eleison.

Bibliografia

BEYER, Hermann Wolfgang. Die Apostelgeschichte. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1951. (Das Neue Testament Deutsch, 5).
GOPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento. São Leopoldo : Sinodal- Petrópolis : Vozes, 1988.
MONNINGER, Gerhard. Meditação sobre Atos 6.1-7. In: BORNHÄUSER, Hans et al. (Eds.). Neue Calwer Predigthilfen. Stuttgart : Calwer, 1984.
NORDSTOKKE, Kjell (Ed.) Diaconia: fé em ação. São Leopoldo : Sinodal, 1995.
VOIGT, Gottfried. Meditação sobre Atos 6.1-7. In: ID. Die neue Kreatur. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1977.

Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia