Prédica: João 20.19-23
Leituras: Joel 2.28-29 e Atos 2.1-21
Autor: Romeu Ruben Martini
Data Litúrgica: Domingo de Pentecostes
Data da Pregação: 23/05/1999
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
Tema: Pentecostes
1. Preliminares
O Evangelho de João reflete a vida dos cristãos até o final do séc. l. Por detrás do texto está o contexto da vida difícil dos cristãos, da violência que o mundo (14.27) continuou a praticar contra as pessoas que aderiram ao movimento de Jesus.
Em termos de contexto da perícope, parece significativo observar que: (a) antes dela encontra-se o relato da ressurreição, que dá ênfase ao fato histórico. Jesus realmente ressuscitou! Maria Madalena testemunhou isto (vv. 11-18); (b) depois da perícope, apesar do testemunho de Maria e da alegria dos discípulos (v. 20) — quando estes finalmente captaram o que lhes parecia ser tão difícil compreender (v. 9) —, ainda houve quem tivesse dúvidas a respeito da veracidade dos fatos (vv. 24-25). Talvez seja esta uma das constantes tensões que caracteriza a vida da Igreja. Sua presença e atuação se dão entre um fato crível, testemunhado, e as dúvidas, incertezas, perguntas que permanecem, que, em última análise, tornam o objeto da fé da Igreja um mistério, impossível de ser decifrado pela capacidade racional do ser humano.
2. Análise do texto
V. 19: Os discípulos estão reunidos no dia da ressurreição de Jesus. Certamente tem-se aqui um indicador da importância que os cristãos deram a este dia: era o dia da sua reunião.
Mais que reunidos, os discípulos estão trancados, com medo. Isto reflete o contexto de hostilidades em que viviam os primeiros cristãos (Jo 7.13; 9.22; 19.38 falam do receio que os cristãos tinham dos judeus).
Mas é para dentro dessa situação que Jesus aparece. Ele vem no meio dessa situação (v. 19b). Cumpre-se, desse modo, o que Jesus tinha prometido: Não vos deixarei órfãos (14.18).
Como na despedida (14.27), antes de ser morto, também no reencontro Jesus saúda os discípulos com o voto da paz. Se entre os judeus Paz seja convosco era uma saudação habitual, no reencontro com os discípulos ela se torna uma saudação pascal, carregada de um sentido muito próprio: (…) é um bem espiritual, um dom interior, que também se deve deixar sentir externamente (Schnackenburg, p. 399).
V. 20: Os sinais da violência praticada pelo mundo (em João, mundo pode referir-se à humanidade, mas, com maior frequência, ao sistema social injusto que se opõe à ação de vida trazida por Jesus — Bortolini, p. 9) são mostrados por Jesus. Ele os carrega em seu corpo. Os discípulos certificam-se. À sua frente realmente está o Filho de Deus, o crucificado, agora ressurreto. No ressurreto eles reencontram o Jesus com o qual tinham convivido. Vêem o Senhor. Assim, cumpriu-se outra promessa (14.19). E isto os alegrou. Também nisto foi reafirmado o que Jesus havia dito (16.20,22,24). E eles precisavam desse encontro para recobrar a alegria perdida.
V. 21: À luz da paz que só Deus pode dar (14.27), Jesus aponta a tarefa que cabe aos discípulos. Eles são enviados. Tanta coisa significativa se passara: crucificação, ressurreição, medo, dispersão e, agora, o reencontro. O tempo passa, as coisas mudam, mas a tarefa permanece a mesma: urge ir ao mundo, sair das quatro paredes. Jesus vai voltar ao Pai, de onde veio (16.28). Agora a tarefa é dos discípulos, noutros termos, da Igreja. (Para João, os discípulos representam a toda a comunidade dos fiéis [Schnackenburg, p. 401]. Como nos caps. 13-16 de João, os mathetai [discípulos] representam a comunidade [Bultmann, p. 537].) Jesus retorna ao Pai, mas a tarefa posta pelo Pai precisa conti¬nuar, agora pela ação dos discípulos (= Igreja).
V. 22: A tarefa é delegada aos discípulos. Eles são enviados. Mas o envio e a tarefa não dependem da boa vontade deles. Eles são enviados sob o impulso, o apoio, a verdade (14.17) do Espírito Santo. Os discípulos (reitere-se: a comunidade cristã!) recebem a dádiva do Espírito Santo, bem assim como Jesus prometera anteriormente (14.16).
O dom do Espírito é dado pelo ato (recebei: o ato de dar) e o sinal (o sopro). Assim como o Antigo Testamento descreve a dádiva da vida (Gn 2.7; l Rs 17.21; Ez 37.9), Jesus concede aos discípulos o Espírito que ele próprio possui, havendo, assim, uma participação [se. dos discípulos] na vida do ressuscitado, de sorte que o Espírito constitui o vínculo entre Jesus e os discípulos ou a comunidade (Schnackenburg, p. 403).
V. 23: Neste texto a ênfase da ação dos discípulos é posta na tarefa e no poder de perdoar pecados.
“Para o Evangelho de João, pecado é dar adesão à ordem social injusta que levou Jesus à morte e continua eliminando vidas. Em outras palavras, tarefa da comunidade é mostrar, pela palavra e pela ação, que quem se fechou ao projeto de Deus permanece cm seu pecado (cf. 9,41). A nova criação, portanto, é a luta pela justiça, permitindo que todos tenham acesso à vida “[Jo 10.10]. (Bortolini, p. 195.)
Não se consegue definir a forma pela qual a comunidade joanina pensou que se obteria a remissão dos pecados (se pelo Batismo, pela confissão dos pecados, pela oração, pela intercessão). Certo é que para o evangelista a remissão sempre se realiza pelo sangue de Jesus (l Jo l .7) e no seio da comunidade. A remissão é outorgada na comunidade. A ela cabe perdoar ou reter o perdão. Em todo caso, o desejo de estar livre do pecado e de manter-se puro na comunidade existiu desde o começo da Igreja (Schnackenburg, p. 405).
3. Meditação
Passou-se o período da Quaresma e Páscoa. Vale lembrar que antes disso houve os ciclos de Advento e Epifania. Foram-se períodos do calendário litúrgico que têm um enorme poder mobilizador das pessoas. Passaram-se as grandes festas cristãs. E agora? Será preciso esperar até dezembro para mobilizar as comunidades?
É Pentecostes. Ouso afirmar que, se o significado de Pentecostes mobilizasse a Igreja tanto quanto acontece nos ciclos natalino e pascal, certamente a presença da Igreja no mundo seria outra. No mínimo ela teria mais fôlego para levar a sério o envio que recebeu de Deus e para encarar sua missão no mundo. Por quê?
No caso de João, o autor (ou autores) bem poderia ter entendido e relatado que Jesus deu o Consolador, ao invés de afirmar que ele o prometeu (14.16). João bem que poderia ter entendido que Jesus deixara tudo previamente encaminhado: preparara os discípulos para o acontecimento da Sexta-Feira Santa (16.20a); dera (e não que daria) a eles o Consolador e… pronto, agora tudo estava preparado. Ele poderia enfrentar a cruz, ressuscitar e voltar (diretamente) ao Pai. Mas não é isto que João entende e anuncia.
Jesus re-aparece, depois da ressurreição e — somente agora — concede aos discípulos o Espírito Santo. Não foi suficiente para os discípulos (= a Igreja) saber (20.18) que o Mestre ressuscitara. O medo perdurou! Era necessário rever o Cristo e receber a força do Espírito Santo.
A Igreja (a) crê que Jesus ressuscitou (por isto ela é bem-aventurada [20.29]) e, enquanto grupo de gente balizada, (b) é movida pelo poder (não do pastor ou do presbitério) do Espírito Santo (c) em busca da paz, a paz que Cristo já concedeu, tarefa que (d) necessariamente passa pelo perdão de pecados, vale dizer, pela reconciliação.
O texto levanta questões candentes. Por exemplo, será que os cristãos como as pessoas da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (1ECLB) realmente levam a sério o testemunho bíblico acerca da presença e atuação do Espírito Santo? Nós obreiros e obreiras estamos convencidos disso? Seria um absurdo dizer que não há sinais da presença do Espírito Santo em nossa Igreja. Porém entendo ser urgente ajudarmos nossas comunidades (onde nós mesmos estamos inseridos!) a sentirem a presença desse Espírito através de sinais visíveis. Creio que é insuficiente sempre ter que recorrer a exemplos como o de D. Bonhoeffer quando queremos ilustrar o que acontece quando o Espírito Santo atua.
Agora, é muito provável que um dos obstáculos reiteradamente colocado e mantido para bloquear a ação do Espírito Santo seja a dificuldade cristã de superar conflitos, encrencas, polêmicas, desavenças, rancores resultantes do pecado. Claro, em cada culto cantamos: Tem piedade de nós, Senhor. O acento na celebração da Ceia do Senhor também continua sendo (erroneamente) o tema do pecado. Mas basta cantar o pedido de perdão? É suficiente reduzir a Ceia do Senhor a este tema? Cadê os gestos de vida nova? Cadê as consequências de uma verdadeira metanoia (conversão, arrependimento)?
A comunidade cristã recebeu de Jesus a incumbência de não só falar de perdão, mas de perdoar e reter, isto é, de anunciar a graça, mas também de denunciar, onde preciso for, a hipocrisia das pessoas que insistem em repetir o pecado ou de apenas querer o perdão de Deus, evitando o restabelecimento de relações entre pessoas. Lutero, por exemplo, pediu que os pastores negassem a participação na Ceia do Senhor aos usurários caso não mudassem de atitude. Noutros termos, a tarefa da comunidade e sua missão têm por alvo o (r)estabelecimento da paz, do shalom: a unidade da criação e a unidade entre as criaturas de Deus, com bem-estar, saúde, partilha dos bens da maravilhosa criação de Deus; o que pertence àquilo que dignifica cada pessoa. Cabe à comunidade (especialmente a ela) a tarefa de semear sinais dessa paz.
4. Subsídios litúrgicos
O tema está posto. O desafio está em dar vida à mensagem do texto. Uma forma de ajudar a comunidade a experimentar a vida que o Espírito Santo concede poderia ser esta: deixar o local de culto bem fechado, abafado. A comunidade se reúne do lado de fora. Entra. Depois de sentir e cheirar o peso da coisa mofa, com pouca vida, o ambiente poderia ser arejado. Dali por diante o tema pode ser aprofundado.
O que é paz? As comunidades conhecem as (muitas) situações de rancor, oriundas de ofensas, encrencas. Com elas, dá para demonstrar que não existe paz de fato apenas pela ausência de brigas ou conflitos explícitos. Os amargores com suas dores pela ofensa sofrida precisam ser removidos, se é que se quer experimentar a paz. Afinal, duas pessoas podem deixar de brigar. Podem até dar-se as mãos (fazendo as pazes). Mas isto não é garantia de que vão conseguir se encarar, se abraçar, recomeçar. Neste caso, não há paz. Em vista disto, está mais tio que na hora de articular — especialmente no culto, particularmente, no Culto Eucarístico —, gestos, atitudes, passos concretos que sinalizem o rompimento de barreiras, o início de uma caminhada que supere o que impede a paz.
Trabalhar no culto a relação entre presença, força do Espírito Santo e gesto da paz. Articular formas que estimulem a disposição de, com a ajuda do Espírito Santo, superar conflitos ou abrir caminhos para a sua superação. Valorizar a dimensão da força renovadora do vento e do ar, que reanima a criança desmaiada; que é imprescindível para quem sofre de asma; que — bem oxigenado — alimenta as chamas do fogo.
Fazer uso de hinos e canções que falem da presença renovadora e vivificadora do Espírito Santo (p. ex., do cancioneiro O povo canta, p. 206-211).
5. Bibliografia
BORTOLINI, José. Como ler o Evangelho de João. São Paulo : Paulinas, 1994.
BULTMANN, Rudolf. Das Evangelium des Johannes. 11. ed. Göttingen : Vandenhoeck & Ruprecht, 1950. (Kritisch-exegetischer Kommentar über das Neue Testament).
SCHNACKENBURG, Rudolf. El Evangelio según San Juan : versión y comentário III. Barcelona : Herder, 1980.
Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia