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Prédica: Romanos 6.1b-11
Leituras: Jeremias 28.5-9 e Mateus 10.34-42
Autor: Odemir Simon
Data Litúrgica: 6º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 04/07/1999
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
Tema:

Preliminares

Escrever para Proclamar Libertação, ao mesmo tempo em que é uma alegria, é também um grande desafio e uma responsabilidade enorme. Não consegui cumprir o primeiro prazo estabelecido. Agora é tarde demais, pensei. Lamentei. O telefone tocou: Estamos esperando a tua colaboração. Não teve outro jeito. Bíblia na mão e mãos à obra. Assim, em meio a muitas dúvidas, medos e perguntas surgiu este auxílio, que não quer ser mais que um simples auxílio.

A carta

Esta epístola é, sem dúvida, o escrito mais importante do Novo Testamento e o mais puro Evangelho, digno e merecedor de que o cristão não só o conheça de cor, palavra por palavra, mas também com ele se ocupe diariamente, na qualidade de pão diário para sua alma; pois ele jamais poderá ser lido ou contemplado em demasia. Com estas palavras Martim Lutero inicia o seu Prefácio à Epístola de São Paulo aos Romanos de 1522.

A Carta de Paulo aos Romanos ocupa lugar de destaque na história, doutrina e pregação da Igreja, especialmente da Igreja Luterana. Que Deus agora nos permita contemplarmos e estudarmos com proveito e devoção este evangelho e que o possamos anunciar com toda a sua pureza e poder transformador.

O contexto da carta

Por longo tempo, e ainda hoje, a Carta aos Romanos é lida por muitos como um tratado religioso, como a suma teológica do apóstolo dos gentios. Este conceito traz consigo a ideia de um escrito desvinculado da realidade conflituosa tão pulsante nos escritos paulinos. Mesmo que se aceite que o apóstolo não tenha conhecido pessoalmente a comunidade de Roma, suas viagens, seus contatos com diferentes grupos humanos e culturas, sua vivência pessoal e comunitária certamente o ajudaram a compreender a realidade dessa pequena comunidade na grande metrópole. O discurso teológico de Paulo em Romanos não é algo des-historizado, mas deve ser lido e compreendido dentro de seu contexto, ou seja: a situação sócio-econômica injusta do séc. l, em que o progresso promovia a exclusão da grande maioria da população. Exclusão é a chave de leitura que orienta o trabalho de Elza Tamez (Contra toda a condena, San José : DEI, 1991).

O texto

V. 1: A exposição feita por Paulo nos capítulos precedentes poderia produzir nos ouvintes uma compreensão errônea no que se refere à manifestação da graça. Paulo tem consciência desta possibilidade, por isso inicia com a pergunta: Permaneceremos no pecado, para que a graça seja ainda mais abundante?

V. 2: Uma interpretação tendenciosa é descartada com um enfático me genoito. Continuar a viver deliberadamente em pecado, para assim forçar a charis (graça) seria um absurdo, uma vez que o cristão está morto para o pecado.

V. 3: Pelo Batismo o crente toma parte na morte de Cristo. Aquele sobre o qual foi pronunciado o nome de Cristo participa da morte deste, encontra-se morto para o pecado. O Batismo insere a pessoa numa comunhão íntima com Cristo e, por extensão, com sua comunidade.

Vv. 4-5: A comunhão com Cristo, o estar unido a ele, é levada ao extremo; não só afirma-se que o crente foi batizado na morte de Cristo, mas também que ele foi sepultado com Cristo, pelo Batismo. Essa identificação ao extremo é necessária para que o crente possa, a exemplo de Cristo, ressurgir, ressuscitar. Paulo conscientemente evita esta expressão e prefere falar em kainoteti zoes. A vida do batizado experimenta uma transformação, mas a ressurreição permanece objeto da fé, é um elemento da esperança cristã.

V. 6: Paulo utiliza a terminologia do Batismo da comunidade primitiva, segundo a qual na cruz de Cristo foi crucificado o velho ser humano, o corpo do pecado foi destruído; assim estamos livres do pecado. Por isso Paulo pode dizer em Gl 2.19: estou crucificado com Cristo.

V. 7: Com a morte extingue-se o poder do pecado; trata-se de uma aplicação legal. Paulo cila aqui uma regra do direito judaico segundo a qual, após a morte da pessoa, o pecado perde seu senhorio sobre ela, que está, assim, livre do pecado.

V. 8: A consequência lógica do pensamento de Paulo é que se com Cristo morremos, cremos que também com ele viveremos.

Vv. 9-11: Assim como Cristo morreu para o pecado e vive para Deus, também os que foram batizados na morte de Cristo devem considerar-se mortos para o pecado, mas vivos para Deus. Aquele que foi batizado não vive mais sob o regime do nomos(lei) ou da hamartia (pecado), mas vive sob a charis (graça).

Resumindo

Viver deliberadamente em pecado para assim forçar a graça é uma ideia inconcebível, uma vez que por meio do Batismo o crente foi batizado na morte de Cristo; assim o cristão está morto para o pecado. Livre do poder do pecado e da morte, está em condições de viver na comunhão com Cristo e sua comunidade uma vida nova, transformada pela graça.

Meditando com o texto

O texto não oferece maiores dificuldades. O tema predominante na perícope é a graça de Deus e o Batismo, a partir do qual o cristão passa a viver em comunhão íntima com Cristo. O Batismo simboliza a morte para o pecado; através dele nos tornamos participantes da vida, morte e ressurreição de Cristo. Assim Lutero explica o proveito do Batismo no Catecismo Menor: Opera a remissão dos pecados, livra da morte e do diabo, e dá a salvação eterna a quantos crêem, conforme rezam as palavras e promessas de Deus.

Agora, a afirmação de que pelo Batismo o cristão encontra-se morto para o pecado não é tão simples e pacífica. Se é certo que com o Batismo se morre para o pecado, também é verdade que este busca seduzir o crente ao longo de seus dias. O cristão, na realidade, vive numa permanente tensão. Paulo experimentou em sua própria existência essa tensão; basta ouvi-lo dizer: Nem mesmo compreendo meu próprio modo de agir, pois não faço o que prefiro, e, sim, o que detesto. Lutero o formulou assim: simul justus et peccator. Essa tensão fica bem clara quando o reformador trata do Batismo no Catecismo Maior. Ouçamos suas palavras:

Por último, cumpre se saiba o que significa o Batismo e por que Deus ordena precisamente tal signo e cerimônia externa para este sacramento, pelo qual primeiro somos recebidos na cristandade. A obra, porém, ou a cerimônia externa consiste em sermos submersos na água, que nos cobre inteiramente, e depois sermos tirados novamente. Essas duas partes, submergir na água e voltar a emergir, indicam o poder e efeito do Batismo, os quais outra coisa não são que a mortificação do velho homem, e, depois, a ressurreição do novo homem. Ambas devem continuar a suceder em nós ao longo de toda a nossa vida, por forma que a vida cristã outra coisa não é que diário batismo, começado uma vê/ e sempre continuado (…).

Nestas palavras de Lutero entra em cena um elemento fundamental, a penitência, o arrependimento diário, até que o velho ser humano seja totalmente vencido, para que possa surgir o novo ser humano, de modo que se cumpram as sentenças bíblicas de 2 Co 5.17; Ef 4.24; Cl 3.10.

Na manifestação de Lutero percebemos o grande poder da cerimônia ou obra externa, no que se refere à simbologia. Fato é que a prática do Batismo por aspersão ocasionou grande perda em termos de simbologia. Aliás, Lutero optou pelo Batismo por imersão justamente devido à simbologia, e esta foi a prática da Igreja até o séc. 18. Hoje a memória desta prática, em nossa Igreja, se perdeu quase que totalmente.

Devemos também afastar a ideia errônea, propagada por algumas igrejas, segundo a qual o Batismo seria um acontecimento quase que mágico, através do qual a pessoa deixa de ser pecadora e é colocada em outra esfera.

Pensando na prédica

O texto oferece ao/à pregador/a a oportunidade de refletir com a comunidade sobre o Batismo e sua prática em nossa Igreja. Lutero diversas vezes admoestou os pregadores a pregarem repetidamente sobre os mandamentos e os sacramentos. Também nós faremos bem em não negligenciarmos esta admoestação do reformador.

O preparo da pregação poderia incluir a abordagem do tema Batismo em diferentes grupos da comunidade, como presbitério, grupo de mulheres (OASE), de jovens (JE), confirmandos, etc. No presbitério a discussão poderia ser motivada pela leitura da carta pastoral Valorizando o Batismo, ou a partir do caderno Nossa fé — nossa vida. Com os confirmandos, naturalmente a discussão poderia ser iniciada com o estudo do Batismo a partir do Catecismo Menor. Os resultados dessas abordagens certamente oferecerão ao/à pregador/a elementos importantes com vistas à pregação. Pode-se pensar numa forma de envolver confirmandos/as na celebração e pregação. A abordagem certamente tornar-se-á muito mais significativa se a comunidade tiver a alegria de celebrar neste domingo o Sacramento do Santo Batismo.

Outra possibilidade seria apoiar a pregação em algumas perguntas, a partir das quais o/a pregador/a buscaria auxiliar seus ouvintes a compreender e perceber as implicações práticas e vivenciais do Batismo. Perguntas simples, como: o que significa ser balizado? O que, concretamente, significa morrer para o pecado? O que significa andar em novidade de vida?

A pregação não deveria deixar de enfatizar a necessidade do combate diário contra o pecado, para assim diminuir sua influência em nossa existência. A prédica deve também consolar e confortar aquelas pessoas que sinceramente esforçam-se por viver uma vida nova, que querem andar em novidade de vida, mas que são confrontadas com a realidade do pecado em sua vida e em suas ações. Por outro lado, ela também deve deixar claro que Batismo é compromisso e vida transformada.

As leituras

Os textos que acompanham nossa perícope não sugerem uma sintonia clara com a mesma. Pessoalmente acredito que não deveríamos forçar uma interpretação, pois mesmo que o pastor ou a pastora seja capaz de perceber a sintonia entre as passagens, certamente esta permanecerá sendo de difícil recepção para o ouvinte. Se houver a celebração do Santo Batismo, o evangelho pode ser a conhecida passagem de Mateus.

Subsídios litúrgicos

Confissão de pecados: Poderoso e eterno Deus, humildemente nos colocamos em Tua presença para confessarmos a nossa culpa e o nosso pecado. Pelo Batismo nos chamaste para uma vida nova em Cristo, uma vida dedicada a Ti. Confessamos que muitas vezes não vivemos de modo digno da vocação para a qual nos chamaste. Perdoa-nos se nos entregamos à servidão do pecado, mesmo estando mortos para ele. Livra-nos do poder do pecado e da morte. Conserva-nos em Tua comunhão e em Tua graça. Perdoa-nos e salva-nos. Tem piedade de nós, Senhor.

Proclamação da graça: Todos somos filhos e filhas de Deus mediante a fé em Cristo Jesus, pois todos os que foram batizados em Cristo se revestiram de Cristo. (Gl 3.26s.)

Intróito: Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais de novo a jugo de escravidão. (Gl 5.1.)

Coleta: Misericordioso Deus e Pai. Louvamos-te pelo dom do Santo Batismo, pelo qual nos unes a Cristo e Sua Igreja. Ajuda-nos a vivermos diariamente o nosso Batismo e que não menosprezemos este grande presente. Guia-nos e ilumina-nos para que vivamos uma vida nova a Ti consagrada, para Tua honra e Teu louvor eternos. Mediante Jesus Cristo, que contigo e o Espírito Santo vive e reina de eternidade a eternidade. Amém.

Oração de intercessão: Levantar entre os presentes assuntos e motivos para louvor e intercessão.

Sugestão de leitura

Existem dois auxílios sobre nossa perícope em Proclamar Libertação: vol. V, p. 51 ss.; e vol. XI, p. 278ss. Sugiro também a leitura do Prefácio à Epístola de São Paulo aos Romanos, de Martim LUTERO, in: ID., Pelo evangelho de Cristo, São Leopoldo : Sinodal; Porto Alegre : Concórdia, 1984, p. 179-92.

Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia