Prédica: Romanos 11.13-15,29-32
Leituras: Isaías 56.1,6-8 e Mateus 15.21-28
Autor: Uwe Wegner
Data Litúrgica: 13º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 22/08/1999
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
Tema:
1. O texto
Romanos 11.13-15,29-32 faz parte de um complexo maior que compreende os caps. 9-11 e trata da infidelidade de Israel e da misericórdia de Deus. A pergunta que move o apóstolo nesses três capítulos é: diante da incredulidade de Israel, poderá Deus ainda ser considerado fiel à sua promessa de libertar e salvar o seu povo? O cap. 11 responde: a incredulidade de Israel é temporária; quando chegar a plenitude dos gentios, todo o Israel será salvo (11.26). Conclusão: Deus é fiel à sua promessa!
Dentro dessa temática geral, os dois trechos do texto para este domingo poderiam ser assim intitulados:
11.13-15: O ministério aos gentios e a salvação de judeus;
11.29-32: Deus salva tanto judeus quanto gentios pela sua misericórdia.
Vv. 13-15: Nestes versículos, o apóstolo dirige-se diretamente aos gentios da comunidade. O que ele afirma aos mesmos é que o seu ministério aos gentios na verdade quer ser, simultaneamente, um ministério aos judeus. De que maneira? Paulo responde afirmando que com a conversão dos gentios ele procura provocar ciúmes nos judeus, na esperança de salvar alguns deles. O ciúme provocado pelo ministério de Paulo aos gentios pode ser explicado da seguinte maneira: os gentios reconhecem em Jesus o Messias (= Ungido) prome¬tido aos judeus e forniam o povo que o reverencia como seu Redentor. Nos gentios que aderem à fé cumpre-se, pois, a promessa outrora feita por Deus a Israel. Os cristãos passam a tomar parte das bênçãos do povo messiânico. Nesse sentido, podem provocar ciúmes em judeus e levá-los a uma conversão, a fim de não serem excluídos ou se excluírem da salvação oferecida.
Enquanto que no v. 14 o apóstolo vislumbra a possibilidade de provocar ciúmes e salvar alguns para a fé em Cristo, o v. 15 é escrito a partir de uma perspectiva mais abrangente. Agora se contrapõe a incredulidade dos judeus como povo à sua reintegração aos que crêem. Para o apóstolo, a rejeição do Messias pelo povo judeu foi providencial, uma vez que oportunizou o acesso dos pagãos à salvação. A rejeição de Cristo pelos judeus, no entanto, não é definitiva para Paulo. Ele acredita numa futura reintegração dos judeus ao povo messiânico. Esse evento representará uma novidade tão grandiosa que equivale à vida dentre os mortos. O sentido é que, como descrentes, os judeus podem ser comparados a mortos para a fé em Cristo. A passagem da incredulidade para a fé equivale à passagem de um estado de morte para outro de vida!
Vv. 29-32: Paulo perguntara em 3.3, referindo-se aos judeus: E daí? Se alguns não creram, a incredulidade deles virá desfazer a fidelidade de Deus? Agora, em 11.29, ele reitera sua convicção: Porque os dons e a vocação de Deus são irrevogáveis. O apóstolo não pode imaginar Deus sendo infiel às suas próprias promessas. A consequência é que os judeus, mesmo que temporariamente desobedientes, não podem ser rejeitados por Deus para sempre. A convicção de Paulo é, pois, que os mesmos serão salvos. O motivo dado é o mesmo que justificara a salvação dos gentios: Deus usa e usará de misericórdia para com todos!
Dados um pouco mais concretos sobre essa salvação reservada aos judeus encontram-se em 11.12,25. Paulo refere-se a uma salvação destinada à plenitude dos judeus (11.12), ou a todo o Israel, como se expressa em 11.25. Ambas as expressões significam a totalidade do povo eleito e sinalizam que a salvação de Deus não constitui uma grandeza meramente individual, mas sim corporativa e social, que, a partir da fé em Jesus, visa sanar e purificar tudo o que destrói a vivência da solidariedade entre a humanidade. Para Paulo, essa salvação só virá depois que haja entrado a plenitude dos gentios (11.25), através da vinda do Libertador de Sião (11.26). Os/as estudiosos/as costumam interpretar estas indicações como se referindo ao tempo da segunda vinda de Cristo.
Os vv. 29-32 afirmam o que, com outras palavras, já havia sido dito em 1.18-3.20, ou seja, que tanto judeus quanto gentios foram desobedientes, tendo sido agraciados com a misericórdia divina. Como, porém, a misericórdia de Deus é mediada através da fé e a maioria dos judeus permanece incrédula, o apóstolo afirma que a misericórdia de Deus para os judeus haverá de manifestar-se unicamente no futuro. Paulo não vê nisto nenhuma tragédia, mas crê que o próprio Deus aproveita a incredulidade momentânea dos judeus para uma finalidade positiva, qual seja, a de oportunizar aos gentios o acesso à salvação.
2. Meditação
O trecho oferece várias portas de entrada para o início de uma reflexão. Não precisamos nem podemos abrir todas. Limitamo-nos aos seguintes aspectos:
1. O mais surpreendente neste texto são o compromisso e a sensibilidade que Paulo mostra em relação ao povo judeu. Ele havia se tornado o apóstolo da gentilidade e a tarefa de pregar e divulgar o evangelho entre os outros povos representava para ele uma infinidade de desafios a enfrentar. Não havia por que ficar se preocupando com um povo que não queria aceitar Jesus como o Messias prometido por Deus. O momento era de olhar para a frente, para os novos desafios, para os novos povos da gentilidade. Por que chorar pelos que não haviam aderido à fé? Por que preocupar-se com eles?
Há em nós uma tendência muito forte de apagar raízes, desgrudar-nos do passado, cortar laços que não mais rendem o que esperamos. Em relação aos judeus, essa tendência é notória. Ela se mostra já pela discriminação que se faz dentro da Igreja em relação aos textos do Antigo Testamento. Nós esquecemos que a espiritualidade do AT era exatamente a que alimentava e fortificava também a fé de Jesus e das primeiras comunidades. O Deus que Jesus pregou e ensinou não era outro senão o Deus do povo escolhido de Israel, do povo da aliança do AT. A discriminação dos judeus mostra-se também pelo fato de ninguém sentir-se de uma ou outra forma ainda ligado a esse povo e sua religião. Em Porto Alegre e outras capitais do Brasil há sinagogas judaicas. Quem já se sentiu, como cristão, ligado a alguma delas?
Não foi bom que a Igreja e teologia dos primeiros séculos e de hoje tenham conseguido distanciar-nos de tal forma dos judeus. Paulo, por amor do evangelho, sabia tornar-se judeu para ganhar os judeus (l Co 9.20). O que sobrou da nossa relação com eles, na maioria dos casos, é uma enxurrada de preconceitos. Será que conseguiremos ver ainda nesse povo e em sua religião uma oliveira dentro da qual fomos enxertados e que, portanto, diante de Deus, somos famílias de raízes comuns na adoração a Deus e no amor ao próximo?
Muitas vezes, aquilo que acontece com os cristãos em relação aos judeus ocorre, a nível de comunidades, com a nossa religião em relação às outras religiões. Sobretudo as seitas têm uma forte tendência a estigmatizar e menosprezar pessoas não diretamente ligadas a elas tachando-as de perdidas e pertencentes a Satanás. Às vezes, dentro de uma mesma Igreja, podem existir grupos tão antagônicos que consideram os que pensam e agem de forma diferente deles como perdida e definitivamente afastados de Deus. Dentro do próprio judaísmo era exatamente assim que os fariseus consideravam pessoas que não conheciam e cumpriam todos os preceitos da lei. Em casos como estes, geralmente os sentimentos nutridos pelas pessoas que acham que estão com a religião correia têm pouco a ver com os de Paulo: quem se acha com a fé verdadeira é facilmente tentado a menosprezar e discriminar os outros, ou seja, a envaidecer-se com sua própria religiosidade. Segundo Rm 11.16-24, era exatamente isto que estava acontecendo com os gentios em Roma. Daí as palavras de alerta do apóstolo: Não te glories contra os ramos; não te ensoberbeças, mas teme (11.18,20)!
2. O povo judeu — um perdedor na fé — ganhou a sensibilidade do apóstolo. O que aqui é descrito na esfera da religião ocorre também em outros campos. Assim como na religião, também na política, sociedade, economia ou tecnologia não se costuma olhar muito para trás, para quem não conseguiu acompanhar, concorrer, atualizar-se e adequar-se com rapidez e firmeza. Os perdedores na economia e sociedade não são objeto de misericórdia. Quem perdeu, perdeu, e tem que ver como se ajeita sozinho depois da perda. Perdedores ou perdedoras dificilmente encontram pessoas sensibilizadas com sua situação.
3. Para o apóstolo, a chave de uma aproximação religiosa das pessoas está no acontecimento da misericórdia de Deus. Por que a experiência da misericórdia pode aproximar-nos, tornar-nos sensíveis uns aos outros, evitar que nos alegremos com a perdição do próximo? É que a misericórdia de Deus mostra que a condição de perdidos e perdidas é, na verdade, em maior ou menor escala, a condição de todos/as nós, é a condição na qual fomos achados e resgatados todos e todas pela mão carinhosa de Deus. Não há, portanto, motivos para ninguém sentir-se superior ou melhor do que outras pessoas. Paulo, na verdade, usa palavras um pouco diferentes. Ele não fala de perdição, e sim de desobediência. A desobediência provoca nosso afastamento de Deus, de sua criação e de suas criaturas e é característica de todas as pessoas. O interessante no texto é que Deus consegue instrumentalizar uma coisa ruim, que representa a desobediência de suas criaturas, para um propósito bom, que é a salvação de judeus e gentios. A desobediência une todas e todos numa mesma situação de intolerância, egoísmo e insensibilidade. A misericórdia representa a sensibilidade de Deus com essa miséria generalizada. Paulo nos mostra que pessoas, uma vez atingidas pela graça divina, não podem querer particularizá-la, mas devem respeitar o seu propósito e dimensão includentes e universais.
3. Prédica
A prédica poderia tematizar aspectos abordados na meditação. A título de sugestão, poderiam ser tratados os seguintes:
1) Os judeus como povo amado e povo das promessas de Deus
Objetivo: contrastar a imagem paulina dos judeus com aquela que nós costumamos fazer deles.
Seria bom
a) desfazer ideias do tipo os cristãos serão salvos, os judeus não serão (Paulo não concorda, pois Deus seria infiel às suas promessas), ou os cristãos são bons, os judeus são ruins (Paulo alerta os cristãos gentios contra a soberba, pois todos foram desobedientes perante Deus), e
b) fomentar ideias do tipo temos muito mais em comum com os judeus do que pensamos (o AT, os Dez Mandamentos, os ensinamentos dos profetas, dos apóstolos e do próprio Jesus são coisas que nos unem aos judeus; lembrar que os apóstolos e Jesus foram judeus) ou judeus e cristãos podem considerar-se irmãos e irmãs, pois confessam o mesmo Deus e recebem a mesma misericórdia divina. Destacar o fato de que, diante de Deus, os judeus têm o mesmo direito de anelar pelo Seu amor e perdão como os cristãos. Nós cristãos não lemos nenhum direito de assenhorear-nos do perdão divino;
c) destacar o fato de que Deus tem um plano salvífico especial para o povo judeu, reservado para o final dos tempos. Deus será fiel à sua promessa de redimir o seu povo escolhido.
2) O exemplo de Paulo: trabalhar para redimir os descrentes, não para condená-los
Objetivo: mostrar que a fé jamais pode ser motivo de orgulho discriminatório; ela dá, isto sim, ensejo para tornar os outros co-participantes da graça divina.
Paulo não vê os descrentes como casos perdidos. Não se afasta deles, orgulhoso de sua piedade e fé melhores. Ele os entende como oportunidade para divulgar adiante a mensagem do amor de Cristo, ciente, a um só tempo, de que seus êxitos serão limitados nessa tarefa, mas que Deus tem outros meios e recursos para levá-la a bom termo. Essa humildade missionária do apóstolo contrasta com a difamação e juízo que fazem certos pregadores sobre todos aqueles e aquelas que não pensam exatamente como eles e que não aderem à sua Igreja ou seita. Quem aponta com relativa facilidade para os outros como perdidos costuma esquecer-se do seu próprio estado diante de Deus.
3) A estratégia do apóstolo: converter convencendo, e não realizando pro¬selitismo barato
Em Rm 11.13s. Paulo afirma glorificar o seu ministério para ver se, de algum modo, consegue despertar ciúme nos do seu povo, para salvar alguns deles. A estratégia aqui é a da irradiação: a salvação genuína provoca, por si própria, uma atração tão forte que se torna irresistível para muitos. Essa estratégia levanta a pergunta: quão atrativa está sendo a nossa Igreja para pessoas de fora, de outras religiões ou sem religião alguma? Que força de irradiação têm a fé e o amor vividos em nossas comunidades? O pressuposto aqui é que uma fé e um amor autênticos convencem mais e melhor do que discursos e prédicas bem elaboradas.
Bibliografia
BARBAGLIO, G. As cartas de Paulo (II). São Paulo : Loyola, 1991.
BRUCE. F. F. Romanos : introdução e comentário. São Paulo : Vida Nova, 1979.
CRANFIELD, C. E. B. Carta aos Romanos. São Paulo : Paulinas, 1992.
PERROT, C. Epístola aos Romanos. São Paulo: Paulinas, 1993.
Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia