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Prédica: Romanos 12.1-8
Leituras: Jeremias 15.15-21 e Mateus 16.21-26
Autor: Renatus Porath
Data Litúrgica: 15º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 05/09/1999
Proclamar Libertação – Volume: XXIV
Tema:

Sem corpo não há vida ou: A fé, o corpo e o corpo de Cristo

1. O texto e seu contexto

1.1. A fé requer o corpo

A exortação no cap. 12 nasce da necessidade: a fé precisa tomar corpo. Não basta que se exponha teoricamente o agir salvífico de Deus e todas as suas consequências, como Paulo o fez nos 11 primeiros capítulos de sua Carta aos Romanos. É necessário que a compaixão de Deus deixe de ser apenas doutrina e se torne realidade, que possibilite novas perspectivas de vida para o indivíduo e crie condições para a vida em comunidade.

A parte da parênese (Rm 12-16) não é um apêndice, cheio de imperativos, ordens e desejos que o apóstolo dirige à comunidade de Roma no ano de 56 d.C.; ela é parte constitutiva da mensagem salvífica. Atrás do exortar apostólico está o Deus que reúne em si a severidade e a doçura. A severidade de quem sabe que sua oferta precisa ser aceita para que desenvolva uma nova mentalidade, um novo discurso e uma nova ação. A exortação nada acrescenta ao que Deus já fez, como se ela se dirigisse à comunidade para que responda fazendo a sua parte. Deus manifestou sua misericórdia, prestou socorro a judeus, gregos e bárbaros, isto é, a toda a humanidade, carente de salvação (Rm 1.16-17). Em Jesus Cristo essa ação de salvamento se materializou definitivamente. Através da exortação, indivíduo e comunidade tornam-se alvos de imperativos que expressam um misto de convite cordial e de ordem intransferível. Da aceitação desse convite e do cumprimento dessa ordem dependem tanto o ser cristão/ã quanto o ser Igreja na realidade histórica.

Quando Paulo expõe o significado do Batismo em Rm 6, já não o faz de uma forma distanciada, através de um discurso doutrinário, mas envolve se através de um nós, que une remetente e comunidade destinatária, e compromete os/as cristãos/ãs de Roma, através de imperativos que caracterizam a parênese, para que se concretizem os efeitos libertadores de quem foi batizado (Rm 6.11-14). A parênese conecta fé com realidade, amarra as pessoas, alvos da misericórdia de Deus, às condições corporais e sociais e, especialmente, prende os/as batizados/as à realidade comunitária da Igreja em Roma. O apóstolo precisa dessa comunidade, em especial para a missão com a qual ele se sabe comprometido; quer envolver a comunidade da capital do Império na missão que vá além dos muros e chegue até a Espanha, a última fronteira do Ocidente conhecida até então (Rm 15.28).

Antes disso, ele quer levar a coleta, levantada nas comunidades da Macedônia e Acaia, para os necessitados da comunidade de Jerusalém. Ser recebido pela comunidade judaico-cristã de Jerusalém com aquela coleta representará sinal de unidade entre cristãos gentílicos fora da Palestina e a comunidade judaico-cristã de Jerusalém. O apóstolo quer a comunidade de Roma engajada nessa construção da unidade juntamente com as demais comunidades na Macedônia e na Acaia, e pede aos/às cristãos/ãs de Roma que lutem com ele nas orações por esta causa (Rm 15.30-33).

Apesar dos elogios que faz à comunidade de Roma e sua fé (Rm l .8), a parênese revela que não estamos diante de uma comunidade ideal. Mesmo como comunidade que está aprendendo a olhar para além dos seus muros, ela deve continuar olhando para suas próprias fileiras e encarnar o evangelho da misericórdia de Deus no seu próprio corpo eclesial. Pouco antes de Paulo escrever sua carta, o imperador Nero revogara em 54 d.C. o edito de expulsão dos judeus de Roma de 49 d.C.. É muito provável que também judaico-cristãos tinham sido banidos de Roma, e agora puderam voltar. Por alguns anos a comunidade cristã de Roma era formada, em sua maioria, de cristãos/ãs gentílicos/as, não atingidos/as pela expulsão. Com o retorno dos anteriormente exilados, as tensões entre a forte comunidade gentílico-cristã e os/as judaico-cristãos/ãs (= fracos?; Rm 14.1) voltaram a se manifestar (cf. Rm 14-15). Priscila e Áqüila, expulsos de Roma em 49 d.C. por Cláudio, devem ter sido beneficiados pelo edito e puderam retornar de Éfeso (Rm 16.3; cf. Wilckens, vol. I, p. 53).

A exortação paulina parece pressupor essas tensões que surgiram com a integração dos retornados judaico-cristãos na comunidade preponderantemente gentílico-cristã, além dos conflitos que devem ter renascido com a reorganização de sinagogas em Roma. A carta se dirige, especialmente, aos/às fortes gentílico-cristãos/ãs de Roma (Rm 14.1; 15.1), reafirmando a base sobre a qual está construída a existência a partir da fé em Jesus Cristo, tanto a deles/as quanto a dos/as judaico-cristãos/ãs. Não se descolar dessa base é a única insistência de Paulo em sua exortação. A partir deste movimento de volta para a base nasce o específico, o novo que caracteriza a existência cristã do indivíduo e da comunidade.

Nada de oferendas adequadas na ocasião apropriada, que mantêm a relação bondosa de Deus com os seres humanos, é exigido. A comunidade cristã está livre desses rituais que deve ter conhecido, à sua volta, na agitada disputa religiosa do capital do Império. A comunidade também está livre da lei ritual da sinagoga. O único sacrifício que Deus exige é a própria pessoa do ofertante por inteiro, em sua corporeidade, em sua vinculação com o tempo e o espaço, com sua inserção na sociedade e, em especial, na comunidade cristã. O corpo é importante para que nele se viva essa nova relação com Deus. Essa existência corporal não pode ser deixada para trás como irrelevante ou até descartável, preferindo a busca do contato com as esferas celestiais. O corpo com todas as suas necessidades dentro das condições sociais e históricas é a esfera de concretização da misericórdia de Deus. Em especial os membros que se refugiam individualisticamente com suas experiências extáticas para uma suposta intimidade com Deus precisam ser puxados de novo para dentro da existência corporal. O culto autêntico (racional) abarca toda a realidade do corpo com suas múltiplas relações no cotidiano.

1.2. A inconformidade que nasce da fé

A realidade não é simplesmente confirmada, mas é avaliada de maneira crítica. A comunidade não se retira do seu meio, mas, como ela confessa um Senhor que se tornou corpo/pessoa, também o seu seguir a Jesus Cristo precisa se materializar nesta mesma esfera. Cristãos e cristãs visualizarão o novo compromisso não mais com o deus deste século, mas com o Deus de Jesus Cristo e sua vontade. Paulo não se satisfaz com que cristãos/ãs se exponham ao senhorio de Jesus Cristo, experimentando o sim misericordioso de Deus apenas na interioridade espiritual. O sim incondicional de Deus não só marca sua relação com o indivíduo, mas toda a história entre Deus e a realidade humana está sob o triunfo de sua misericórdia. Essa novidade do reinado da misericórdia, inaugurado no evento da cruz e ressurreição de Jesus Cristo, deve determinar o nosso pensar, nosso agir, para que aconteça a vontade de Deus. Em um contexto e uma sociedade marcados pela vontade dos mais fortes sobre os fracos, pelo triunfo da discórdia sobre a misericórdia, as pessoas comprometidas com a nova realidade da misericórdia de Deus para com o mundo são conclamadas a assumirem uma postura e uma prática que correspondam a essa perspectiva.

À comunidade cristã cabe provar e decidir o que corresponde à boa, agradável e perfeita vontade de Deus e o que não. O conteúdo dessa vontade de Deus não é novo. O que sempre valeu no mundo, que tanto pode estar formulado no decálogo judaico, ou escrito na consciência humana, ou ainda ser encontrado em códigos de ética de outras culturas, deve definir que postura e ação são exigidas. O novo do comportamento cristão não são valores cristãos, mas o novo é o ponto de partida e o ponto de chegada da caminhada cristã. O ponto de partida para Ioda e qualquer ação é saber-se acolhido por Deus, apesar de contradições em nós mesmos e de contrariedades que possamos encontrar no caminho. Antes de tudo e depois de tudo vivemos da graça, isto é, antes de qualquer postura e ação, por melhor ou pior que sejam, vivemos a partir do que Deus tem feito por nós.

1.3. A fé nos torna membros uns dos outros

Pode parecer que a exortação se contentaria com a resposta pessoal, com a entrega total de corpo e vida, com a mente renovada, comprometida com a prática da vontade de Deus. Em Rm 12.3-8, porém, a exortação não deixa dúvidas. A fé se expressa sempre na vida comunitária. A Igreja é o espaço, o movimento, a comunidade reunida na qual e através da qual o domínio de Cristo com sua ação salvífica adquire forma. Paulo precisa da comunidade de Roma como um todo e não apenas de alguns de seus membros mais destacados para seus planos de busca pela unidade e de concretização da missão no Ocidente.

A exortação puxa de novo o evangelho da misericórdia de Deus para dentro das relações internas da comunidade. Mesmo que a comunidade assuma algumas características da organização de outras associações civis ou religiosas das cidades do Império, ela não precisa mais repetir os mesmos vícios, tais como o domínio de fortes sobre fracos, de eruditos sobre iletrados, de livres sobre escravos, de nobres sobre humildes, de homens sobre mulheres, de ricos sobre pobres. A não-conformidade com este século tem que concretizar-se em novas relações. A tentação de reproduzir a hierarquia, a desigualdade, a autopromoção e a discriminação não deixa de invadir o espaço onde se reúnem os/as que confessam: Kyrios é Jesus! A acolhida carinhosa de Deus não se limita a nós como indivíduos com nossos corpos, mas ela nos une uns aos outros, construindo novas relações de acolhida mútua (Rm 15.5,7). A superioridade de uns sobre outros — das pessoas com os carismas da palavra se sobrepondo às portadoras de carismas da ação diaconal — é negação do Deus que manifestou sua misericórdia a nós e nos fez participantes do corpo de Cristo.

Os diferentes dons, as diversas funções na comunidade estão aí para a ajuda mútua, para construir relações que nasçam da gratuidade do que Deus fez por nós e redundem na unidade do louvor de todos os membros (Rm 15.6,9). Os carismas da palavra (profecia, ensino e exortação) tendem a exercer poder sobre os demais, mas ninguém representa o corpo como um todo. Na história do exercício do ministério eclesiástico muitas vezes esqueceu-se esta simples descoberta: somos um só corpo em Cristo, e membros uns dos outros (v. 5). Responsabilidades diferentes na comunidade não significam mais ou menos privilégios, direitos e poderes, mas são formas diferentes de se ajudar mutuamente a viver e testemunhar a operação de salvamento realizada por Deus em Jesus Cristo. A medida da fé que Deus repartiu a cada um (v. 3) são essas diferentes formas de ajuda e de serviço mútuo. A distribuição dessas medidas de fé nada altera na condição de igualdade de todos/as serem membros do mesmo corpo, servos e servas do mesmo Senhor, filhos e filhas do mesmo Pai (Rm 15.5-6).

A enumeração do dons nos vv. 3-8 não é completa nem o pretende ser. O lema da glossolalia (cf. l Co 12.28) é evitado propositalmente? O dom de presidir aparece quase no fim da lista (v. 8). Será uma inversão intencional? Observe-se que a diaconia é mencionada logo duas ou até três vezes. Uma vez encerrando a enumeração (v. 8), falando da alegria de quem presta ajuda a necessitados. Após o carisma da profecia, há uma referência ao ministério (v. 7a, diakonia no grego), que também pode estar apontando para o que hoje chamamos de ministério diaconal (cf. Rm 16.1; 2 Co 8.4; 9.1). Também o carisma de presidir tanto pode referir-se à liderança da comunidade (l Ts 5.12-13) quanto designar a tarefa de cuidar de los miembros de la comunidad que no pueden proveer a su próprio sustento (Rm 16.2; cf. U. Wilckens, vol. II, p. 351).

Os carismas da palavra e da ação não podem rivalizar entre si ou até disputar poder entre si. Aos carismas da palavra cabe atualizar a necessidade da misericórdia de Deus (profecia), ensinar o alcance libertador da ação de salvamento em Jesus Cristo e exortar para que corpo e vida estejam envolvidos pela novidade e comprometidos com a prática da boa vontade de Deus. Os carismas da ação cuidarão para que a proclamação da acolhida carinhosa de Deus em Jesus Cristo não seja negada no seio da própria comunidade (Rm 15.7) e na relação que esta tem com a sociedade em que está inserida. Quem se sabe incondicionalmente acolhido por Deus torna-se liberto para a prática do amor, para a acolhida de quem precisa de ajuda. Sem os carismas que estimulam a prática do amor, a comunidade cristã não conseguirá visualizar a novidade da aceitação incondicional de Deus que, simultaneamente, constrói relações de acolhida mútua.

2. A caminho da prédica

A dimensão do corpo foi destacada como mediação indispensável tanto para a compreensão da existência cristã pessoal quanto da concretização comunitária da fé. Corpo na visão bíblica designa a nós, homem e mulher, com nossas potencialidades, nossas fraquezas, nossas forças para produzir e destruir, amar e odiar. Não temos um corpo, somos corpo indivisível. Precisamos de corpos para interagir. Esse corpo tem dignidade e exige o esforço conjunto da sociedade para preservá-la, e que, especialmente, as necessidades dos concidadãos mais fracos sejam supridas.

A prédica poderia iniciar relembrando essa visão óbvia de que não há vida humana sem corpo. O que significa, agora: a fé requer nossos corpos? A fé não terá atingido seu alvo se ela não abarcar todo o corpo com suas múltiplas dimensões e relações. A exortação é um misto de convite cordial e de cobrança exigente para que os corpos/as pessoas, outrora requisitados por Deus no Batismo, sejam trazidos de volta. Exortar é puxar de volta para a vida em liberdade quem se recolheu de novo no aperto da cela, apesar de o presídio estar com as portas escancaradas. Exortação não é discurso que incita a arrombar grades trancadas. É convite para viver conseqüentemente a nova condição. É chamamento para culto de agradecimento pelo que Deus fez. A busca e a prática da vontade de Deus no cotidiano nascem dessa nova postura de gratidão, mas dela nasce também a inconformidade com uma vida medíocre e limitada de quem não abraçou a oferta de liberdade concedida por Deus em Jesus Cristo.

A segunda dimensão da exortação/prédica destacará que a fé sempre despertará espírito de corpo (vv. 3-8). Também a comunidade não se constrói, em primeiro lugar, a partir de apelos à criatividade na organização e programação; comunidade é concretização da fé que restaura relações, recria amizades aparentemente impossíveis, supera divisões e classes. Isso tem algo a ver com nossas comunidades com seus ministérios, presbitérios e demais membros batizados? A partir do centro do evangelho da misericórdia de Deus somos convidados a rever a vida em comunidade. O que significa ser membros uns dos outros? Comunidade é grupo de ajuda mútua para que a misericórdia de Deus determine corpo e vida. Os carismas da palavra e da ação são formas de ajudar e não de exercer poder ou de justificar classes ou ordens hierárquicas. Somos membros do mesmo corpo, servos/as do mesmo Senhor, filhos/as do mesmo Deus.

3. Subsídios litúrgicos

Leituras bíblicas:

Sugerem-se as seguintes introduções às leituras para amarrá-las com a prédica:

a) Jr 15.15-21: Estar a serviço de Deus no mundo implica sofrimento, mas Deus garante socorro. O lamento do profeta Jeremias não fica sem resposta.

b) Mt 16.21-26: Quem segue a Jesus Cristo participa de alegrias e tristezas, de ganhos e perdas juntamente com seu Senhor.

Oração do dia: Deus de toda a paciência e de todo o consolo! Estamos aqui porque tu tens palavras de vida definitiva para nós e para qualquer pessoa humana. Dá que tua palavra seja anunciada com clareza, que enxerguemos onde te negamos no nosso dia-a-dia; que ela nos conquiste de volta para li e desperte os dons necessários para que tua Igreja se fortifique e novamente se coloque a teu serviço no mundo. Por Jesus Cristo, que contigo e com teu Espírito Santo vive e reina pelos séculos dos séculos. Amém.

Oração Final: Deus e Pai, cheio de compaixão por nós, como pessoas, a ponto de assumires nossa condição em Jesus Cristo. Tu sabes quantas vezes achamos ter o poder total sobre nossos corpos; vivemos preocupados com nosso bem estar, fazendo distinções, discriminações, acomodando-nos a este mundo fragmentado. Oferecemos nossos corpos, nossas vidas por inteiro, para que tu faças o melhor de nossas relações. Dá-nos teu Espírito para que sirvamos a ti e busquemos constantemente a tua vontade. Renova a tua Igreja, e começa com nossa comunidade. Protege os que são perseguidos; guarda os povos de guerra, fome e miséria. Ajuda a todos os que trabalham pela paz e promovem a justiça social. Ampara nossos doentes e as pessoas marcadas por medo e ansiedade. Fica conosco para que aprendamos a articular, a uma só voz, o louvor a ti e a tua operação de salvamento, levada a efeito através de Jesus Cristo, em prol do mundo. Amém.

Bibliografia

ADAM, Martin. Auxilio homilético sobre Rm 12.1-3(4-8). In: DOMAY, Erhard, NITSCHKE, Horst (Coords.). Gottesdienstpraxis. Gütersloh : Gütersloher, 1981. vol. I, p. 88-94.
LUBKOLL, Hans-Georg. Auxilio homilético sobre Rm 12.1-8. In: DOMAY, Erhard, NITSCHKE, Horst (Coords.). Gottesdienstpraxis. Gütersloh : Gütersloher, 1979. vol. I/1, p. 86-90.
BORNKAMM, Günther. Paulus. 2. ed. Stuttgart/Berlin : Kohlhammer, 1969.
WILCKENS, Ulrich. La Carta a los Romanos. Salamanca : Sígueme, 1989. vol. 1. (Biblioteca de estúdios bíblicos, 61; trad. do alemão Der Brief an die Römer, vol. I, 1978).
—. La Carta a los Romanos. Salamanca : Sígueme, 1992. vol. II. (Biblioteca de estúdios bíblicos, 62; trad. do alemão Der Brief an die Römer, vol. II, 1978, e vol. III, 1982).

Proclamar Libertação 24
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia