Prédica: 2 Coríntios 13.11-13
Leituras: Deuteronômio 4.32-34,39-40 e Mateus 28.16-20
Autor: Romeu Ruben Martini
Data Litúrgica: 1º. Domingo após Pentecostes – Santíssima Trindade
Data da Pregação: 02/06/1996
Proclamar Libertação – Volume: XXI
1. Introduzindo o Tema
1. O texto do Antigo Testamento: Trata-se da parte final da exortação à obediência feita por Moisés ao povo de Israel, por ocasião da posse da terra (4.14b). Depois de tudo que Deus fez em favor do povo de Israel, conduzindo-o à terra fértil, por meio de sinais e prodígios, Moisés admoesta o povo para que guarde os estatutos e mandamentos desse Deus, a fim de que o povo vá bem e prolongue seus dias na terra que o Senhor deu (4.40).
2. O Evangelho: Está inserido no bloco de Mt 26 a 28, que trata da paixão, morte e ressurreição de Jesus. A credibilidade da autoridade de Jesus não reside em alguma promessa eleitoreira, mas no testemunho da ressurreição: Ele não está aqui: ressuscitou. (28.6.) Este é o Jesus que tem autoridade para enviar os discípulos, mesmo que eles ainda duvidem (28.17).
3. O conflito de 2 Coríntios: O confronto entre Paulo e a comunidade se dá em torno da legitimidade da autoridade do apóstolo. A comunidade era feita de uma grande maioria de pobres e de um grupinho de pessoas de melhor condição (Comblin, p. 12). É o que se confirma em l Co 11.22: há os que têm casa, comida e bebida e há os que nada têm. Portanto, na comunidade cristã estão representadas as castas que compõem a sociedade de Corinto. Não obstante, o modelo de apóstolo e evangelizador (ibid.) de Paulo tem uma característica que o leva a ler, interpretar e anunciar o evangelho na ótica da fraqueza (2 Co 12.9-10), a partir do contexto de vida dos fracos: Ao entrar em Corinto, Paulo se dirigiu primeiro para o bairro em que residiam os artesãos que exerciam a mesma profissão de fabricantes de tendas (…). (Ibid.)
Esse caminho de Paulo é fundamental para a sua concepção de apóstolo e evangelizador. Ele é também o divisor entre Paulo e os outros evangelizadores (os que contestaram sua autoridade). Como assim? É que através da opção pelo trabalho manual, Paulo pratica sua convicção de que viver do trabalho é adotar uma condição de fraqueza, colocar-se na situação dos escravos. Enquanto isso, o apóstolo que não trabalha, reside na casa de um cristão mais rico, passa o tempo na praça pública passeando e discutindo, ou conversa com homens livres da alta sociedade que também não trabalham. Ou seja: a questão básica é verificar em que rede de relações Paulo e os outros apóstolos se situam (ibid, p. 21).
Por consequência, torna-se fácil compreender o critério teológico que fundamenta a ação de Paulo e a ação dos outros apóstolos. A teologia de Paulo está fundamentada no paradoxo do poder de Deus que se manifesta através e na fraqueza da atuação do apóstolo (ibid., p. 23). Os outros fundamentam sua ação nas cartas de apresentação e na auto-recomendação (2 Co 3.1).
4. A situação momentânea de Corinto: Paulo escreve antes de visitar a comunidade pela terceira vez (13.1). É um momento de crise extrema (ibid., p. 18). Essa crise irrompeu pela influência de líderes infiltrados na comunidade — que o apóstolo acusa de estarem mercadejando a palavra de Deus (2.17). A autoridade de Paulo é questionada (13.3). Ocorre um afastamento dos ensinametos fundamentais semeados pelo apóstolo por ocasião do processo de fundação da comunidade. Conseqüentemente, seus membros vivem agora numa situação deplorável: há entre eles contendas, invejas, iras, porfias, detrações, intrigas, orgulho e tumultos (12.20b). Diante disso, Paulo os convida para um exame de autocrítica. Ao invés de questionarem a autoridade do apóstolo, não conviria auto-examinarem-se para ver se de fato estão na fé (13.5)? Paulo não quer entrar na discussão proposta pelos líderes infiltrados: justificar-se pelos títulos e méritos. Se fosse por isso, ele também teria motivos para gloriar-se (12.1ss.). Se acaso quisesse gloriar-se, ele o faria na sua fraqueza (12.9). O que ele quer mesmo? Que a comunidade deixe as práticas que contrariam os princípios da fé. Que ela pare de praticar o mal e faça o bem (13.7), para que sua visita sirva para a edificação, e não para a destruição (13.10).
2. Olhando para a Perícope
V. 11: o uso de uma linguagem áspera (10.10) não impede que Paulo conclua sua carta com palavras que expressam seu carinho pela comunidade (irmãos) e apontam para o alvo da vida comunitária cristã: a alegria. Quanto ao mais, irmãos, alegrai-vos (tradução proposta por Wolff, p. 267). Paulo apresenta seu chamamento e admoestação não na forma de decreto. Ao contrário, ele reimpulsiona a comunidade com a alegria que provém do fato de ela conhecei a Cristo (ibid.). Além disso, o amor de Deus (vv. 1b,13) é destacado como ajuda na orientação para restabelecer um comportamento comunitário que a comunidade já experimentara. Essas últimas admoestações resumem o que a comunidade necessita em seu esfacelamento.
Katartizo: aperfeiçoai-vos (Almeida). Segundo Bauer, significa: refazer, colocar na situação em que já estava. Os cristãos de Corinto são chamados a se deixarem colocar por Deus, através de Paulo, na posição de comunidade cristã (Wolff, p. 267). Importa, desde logo, percebermos que toda a admoestação deste versículo é um contraponto ao que diz 12.20b.
Parakaleiste: consolai-vos (Almeida). Paulo pede que a comunidade faça algo por si mesma? Mas, nesse momento, ela está em condições de se auto-ajudar? Por isso, parece-nos mais apropriada uma tradução proposta por Wolff e Bauer. Para o primeiro, parakaleo seria deixar-se exortar, deixar-se advertir (p. 267); alguém de fora interfere. Para Bauer, o termo expressa receber consolo por palavras ou fazer modificação apropriada de uma situação (cf. também Mt 5.4; Lc 16.25).
Fronein: ser do mesmo parecer (Almeida). Para Bauer, trata-se do mesmo pensar, ser unânime. Conforme Wolff (p. 267), fronein é a postura humana determinada pela razão, vontade e sentimento e que é praticada segundo a medida da fé (Rm 12.3). Percebamos: não se trata da razão dominante do momento, por exemplo. Trata-se da razão que tem por critério a fé. Onde ela é assim experimentada, não haverá discórdia, mas convivência salutar, paz, correspondente ao shalom vétero-testamentário. Deus pode estar e está no meio da comunidade. Mas é por meio do que expressam katartizo, parakaleiste, fronein que o Deus do amor e da paz se torna manifesto na comunidade. Não havendo o que estes termos expressam, a comunidade terá erigido um paredão que impede a ação de Deus em seu meio.
V. 12: ósculo santo. É comum Paulo convidar as comunidades para tal prática (Rm 16.16; l Co 16.20). Originário da tradição judaica, esse gesto tinha seu lugar no encontro da comunidade (Bultmann, p. 253) e na celebração eucarística (Wolff, p. 26°). No contexto de Corinto, ele seria uma demonstração pública do restabelecimento da relação entre Paulo e a comunidade. Simultaneamente, porém, a prática do ósculo santo sinalizaria a retomada do aperfeiçoa-mento, do reconhecimento da exortação do apóstolo, da disposição de reconstruir a unidade da comunidade (v. 11). O ósculo santo seria a demonstração pública da disposição da comunidade de reverter o quadro de intrigas reinante.
Todos os santos vos saúdam. A comunidade de Corinto é recordada de sua pertença a um círculo maior de pessoas que optaram por viver a experiência cristã. Ela não está caminhando sozinha. O sentimento de pertença a um grupo maior, com experiências e dificuldades semelhantes, pode, naquele contexto, ser um critério que ajuda a distinguir entre o que é evangelho e o que não passa de imitação e ilusão.
V. 13: xáris (graça), ágape (amor), koinonia (comunhão). Três termos sobre os quais paira o risco do esvaziamento. Proponho uma análise mais acurada. Xáris pode ser benevolência, favor, misericórdia, mercê, clemência. O mais apropriado é olhar para o modo de ser e aluar do próprio Jesus, já que se trata da sua xáris, recordar seus gestos diante das crianças, dos doentes, das mulheres.
Ágape: recordemos o gesto extremo pelo qual Deus revelou seu amor por nós: deu o seu próprio Filho (Jo 3.16).
Koinonia: A palavra grega ‘koinonia’ é a palavra escolhida pelos primeiros cristãos para expressar a grande novidade que há entre todos os que acreditam no Senhor Jesus (Comblin, p. 25). Qual é essa novidade? Aí precisamos olhar At 2.42 (estamos no 1o Domingo depois de Pentecostes!): aquela comunidade assimilou a doutrina dos apóstolos, partilhou o pão, orou, de tal modo que reinou em seu meio a koinonia, a saber, um novo jeito de ser, de relacionamento mútuo, de comunhão, de fraternidade (o que nós temos dificuldade de compreender e até de descrever, pois é tão raro existir no cotidiano de nossas comunidades!). O objetivo que Paulo teve com a coleta também nos ajuda a entender o alvo da koinonia: a igualdade (8.13).
O v. 13 expressa o desejo de Paulo de que a comunidade experimente de forma renovada a graça, o amor e a comunhão do Espírito Santo. São esses os meios que poderão unir a comunidade, pois a comunhão com Deus implica a comunhão mútua dos membros. Daí torna-se relevante o com todos (Wolff, p. 269). O v. 13 deve ser entendido no seu todo. E ele reflete uma tensão: a recepção, aceitação da graça de Cristo e do amor de Deus fazem com que a comunhão do Espírito Santo seja real (Wendland, p. 259). A comunidade precisa parar de beber no poço de água lamacenta (12.20) e permitir que a graça de Jesus e o amor de Deus sejam articulados pela comunhão do Espírito Santo. Trata-se de não mais beber água morna na torneira para experimentar o gosto da água fresca da fonte.
3. Meditando no Tema
O conjunto dos textos propostos reflete a tensão que perpassa a experiência das pessoas que em algum momento foram seduzidas pelo Deus de Jesus. Por um lado, está sua incapacidade de viverem plenamente os princípios do Reino. Moisés necessita admoestar o povo. Os discípulos ainda duvidam. A confusão tomou conta da comunidade de Corinto. Por outro lado, permanece como uma constante o desafio de buscarem a edificação segundo os critérios que norteiam a vida em comunidade: a graça de Jesus, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo. No caso concreto de Corinto, esses critérios implicam a remoção da confusão reinante. Implicam a readmissão do irmão arrependido (2.5s.).
Ouso afirmar que essa tensão continua presente na experiência de nossas comunidades. Por um lado, ela se nos apresenta como elemento problemático. De que forma? Quando nós, obreiros/as, às vezes nos cansamos de saber das mesmas confusões (aquele tipo de encrenca que envolve os pratos da cozinha da Ordem Auxiliadora de Senhoras Evangélicas, p. ex.). Ao mesmo tempo, porém, a tensão acima referida é o regulador e estimulador nas situações de autojustificação da comunidade (quando se acha que nela o Reino já está presente em sua plenitude), bem como naquelas em que a comunidade não se diferencia limito de qualquer outra entidade ou associação. O texto deixa muito claro que, embora a plenitude do Reino ainda esteja por vir, a comunidade cristã está confrontada constantemente com o desafio de remover aquilo que bloqueia o amor, a graça e a comunhão (aí, sem dúvida, precisamos ser pragmáticos, apontando situações semelhantes às de 2 Co 12.20 que infestam nossa vida em comunidade).
A autoridade de Moisés, Jesus, Paulo está no poder de Deus que se revela na fraqueza que transforma. Está no poder que arrancou um povo do sofrimento e arrancou Jesus da morte. Está no poder que já se manifestou nas comunidades cristãs acompanhadas por Paulo. Por exemplo, a comunidade da Macedônia mostrou-se generosa com os mais pobres (8.1-2). Também a comunidade de Corinto admitira conhecer e seguir a voz de Jesus Cristo (8.9).
Da loucura da cruz (l Co 1.18,21: o poder que se revela na fraqueza) é preciso falar numa pregação sobre essa perícope. Afinal, é essa a essência que diferencia a ação apostólica de Paulo. É esse o divisor de águas entre Paulo, o tesouro que ele traz em vaso de barro (4.7) e os outros que se infiltraram em Corinto. Trata-se de resgatar para as nossas comunidades o pro nobis, aquilo que Deus fez por nós e do jeito como Ele o fez. Para essa tarefa dispomos do v. 13! Dali vêm toda a razão de ser da comunidade e a alegria da qual o apóstolo fala no v. 11.
O ósculo santo, hoje gesto da paz — proposto na liturgia do Culto Eucarístico —, pode ser uma forma de estimularmos concretamente nossa disposição de remover intrigas que impedem a presença do Espírito Santo em nosso meio. Uma coisa é falar de amor e paz. Outra coisa é falar e dar passos que articulem a paz e o amor em nosso meio de forma efetiva. Acho que nos nossos cultos falamos deles. Falta ajudar a comunidade a torná-los palpáveis. Nem só palavra é o amor…! E neste ponto é bom entender o seguinte: o gesto da paz, proposto na liturgia do Culto Eucarístico, não pressupõe a presença plena do amor e da paz e da comunhão do Espírito Santo. Isso será realidade na plenitude do Reino. O que se almeja pelo gesto é que a leitura, interpretação e boa nova do evangelho não permaneçam apenas teoria, mas se tornem efetivos, transformando situações.
4. Passos para a Pregação
Vejo duas portas de entrada para pregar sobre o texto:
1. Seguindo o esquema clássico: 1.1. contexto da perícope; 1.2. a mensagem da perícope; 1.3. a interpretação para nós hoje.
2. A partir da leitura do texto, 2.1. apresentar as razões que Paulo tem para convidar a comunidade à alegria (v. 11). Neste caso, a pregação iniciaria pela análise da essência do v. 13. A comunidade entenderia primeiro o que Deus fez cm Cristo e no Espírito Santo; 2.2. aí se falaria das implicações que esse pro nobis tem no contexto de Corinto; 2.3. o contexto da comunidade de hoje será, conseqüentemente, enfocado à luz do texto.
5. Subsídios Litúrgicos
1. Trata-se de um culto propício para a celebração da Eucaristia. Celebramos o Natal, passamos pela Páscoa e por Pentecostes. É possível perceber a essência do pro nobis? Na Eucaristia essa presença e atuação de Deus por nós tornam-se especialmente densas.
2. A possibilidade concreta de o evangelho atuar nesse culto vai depender em grande parte de uma boa saudação informal: é apresentar com jeito e carinho—numa frase objetiva—a essência da Palavra do domingo, logo na abertura.
3. Eu usaria a liturgia mais conhecida pela comunidade. Procuraria apenas um momento apropriado para experienciar o gesto da paz. No Culto Eucarístico há o momento previsto. Mas também ali dá para pensar na melhor forma de fazê-lo. Por exemplo: que tal dar um tempo para: a) as pessoas fazerem o gesto mútuo da paz, b) podendo procurar alguém com o qual se está disposto a buscar o restabelecimento de relações quebradas ou feridas (isso também se pode propor no culto sem Ceia!).
4. Por estarmos no tempo de Pentecostes, nesse culto seria especialmente propício cantar (inserindo breves comentários, dando espaço para meditação) hinos que falem da ação transformadora do Espírito Santo (p. ex. do cancioneiro O Povo Canta: Vem, Espírito de Deus, de R. Gaede).
6. Bibliografia
BAUER, Walter. Wörterbuch zum Neuen Testament. 5. ed. Berlin, Alfred Töpelmann, 1958.
BULTMANN, Rudolf. Der zweite Brief an die Korinther. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1976.
COMBLIN, José. Segunda Epístola aos Coríntios. Petrópolis, Vozes; São Leopoldo, Sinodal; São Bernardo do Campo, Metodista, 1991.
WENDLAND, Heinz-Dietrich. Die Briefe an die Korinther. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1972.
WOLFF, Christian. Der zweite Brief des Paulus an die Korinther. Berlin, Evangelische Verlagsanstalt, 1989. (THzNT).