Prédica: 2 Coríntios 4.13-18
Leituras: Gênesis 3.1-19 (20-24) e Marcos 3.20-35
Autor: Romeu Ruben Martini
Data Litúrgica: 3º. Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 12/06/1994
Proclamar Libertação – Volume: XIX
1. Aspectos gerais na relação entre Paulo e Corinto
O jeito de Paulo aterrissar em Corinto determinou, em grande parte, o seu modelo de apostolado. Sendo uma cidade movida por intenso comércio, havia por lá todo tipo imaginável de profissões, categorias sociais, expressões religiosas. Como Paulo era artesão, que fabricava tendas, ele enveredou pela rua dos que tinham a mesma ocupação.
É importante que Paulo tenha entrado na cidade pela rua dos trabalhadores, não pela sinagoga, nem pela praça pública em que se exibiam os oradores e vendedores de doutrinas. Paulo queria, desse modo, criar um modelo de apóstolo e evangelizador, modelo que ia diferenciá-lo de outros apóstolos e dar origem a terríveis controvérsias — quase toda a matéria de 2 Co (Comblin, p. 12).
2. A sequência dos fatos
2.1. Nos blocos 2.14-7.4 e 10,1-13,10, Paulo denuncia a presença, na comunidade de Corinto, de opositores que lhe faziam concorrência, contestavam sua autoridade e haviam conseguido a adesão de fiéis que renegavam a fé original. Quem são esses opositores? a) Apelavam para a posse de cartas de recomendação (3.1); b) Dedicavam-se à missão cristã, propagando o evangelho. Mas Paulo os compara aos maus filósofos. O objetivo de sua obra tem fins utilitaristas e personalistas (2.17); c) Gloriam-se a si próprios (5.12); d) Retomam a tradição do AT, sobretudo a lei de Deus (3.4-18) (Barbaglio, p. 381).
2.2. Paulo faz uma visita, para em diálogo tratar de sua defesa. Não é possível. Ele se retira.
2.3. Então Paulo escreve sua apologia: 2.14-7.4.
2.4. Paulo envia Tito com este objetivo: que o culpado dos distúrbios seja afastado da direção da comunidade e que os coríntios se submetam à autoridade do apóstolo.
2.5. Tito volta e traz boas notícias (7.6-16).
2.6. Paulo escreve a carta de reconciliação (1.1-2.13).
3. A argumentação e os critérios do apóstolo
Para a comunidade de Corinto há muitas semelhanças (aparentemente) entre Paulo e esses outros apóstolos. Paulo, entretanto, procura apontar para as diferenças. Além das arroladas acima em 2. l. a-d, a leitura de 2 Co revela aspectos que caracterizam a distância que separa Paulo daqueles pregadores: ele próprio não recorre a exibições carismáticas espetaculares. Dispensa carta de apresentação. Não aceita ser mantido pela comunidade (critério profundo). Sua pregação ancora-se na teologia da cruz. É por isso que ele evidencia, na apologia, como específico de sua pessoa e do seu ministério, as marcas do sofrimento de Cristo (4.8-11). O tesouro trazido por ele vem em vasos de barro (4.7), e não através de pessoas que andam com astúcia, adulterando a Palavra de Deus (4.2).
Apresentavam-se como agentes sobre-humanamente transfigurados, cuja personalidade extraordinária garantia a mensagem pregada. A Igreja terminava por ser um rebanho dominado por chefes autoritários e tirânicos (Barbaglio, p. 391).
Não obstante sua crítica aos apóstolos intrusos, a linguagem de Paulo, nesse primeiro bloco, é marcada pela esperança de que a causa da comunidade não está perdida (7.1-4). Ele está convencido de que pode vencer a batalha e superar as incertezas e hesitações de sua comunidade (idem, p. 384). Paulo enfatiza que o Espírito está presente não para fazer coisas extraordinárias, que chamam a atenção, mas para criar homens novos, que tenham a capacidade de amar (4.15) — (Tonucci, p. 113). Bortolini (pp. 18-19), à luz da argumentação de Paulo, destaca as consequên¬cias da deturpação do evangelho, feita pelos falsos agentes de pastoral.
1) Falsificam a palavra de Deus (4.2). O Evangelho não é mais força que liberta para a vida, mas … pretexto … para manter privilégios de dominar o povo.
2) Impedem a comunidade de manter uma atitude crítica: Tudo o que eles luziam era o certo, o justo e o definitivo.
3) Os falsos agentes… reproduziam o poder estabelecido. Fazem brilhar a sua luz, e não a luz do evangelho. (Em 11.3 Paulo compara esses falsos agentes à serpente que seduziu Eva.)
4. Interpretando os critérios de Paulo
Dois aspectos sobressaem:
1) O que se quer: obreiro/a que fala bem, tem boa aparência, saiba circular futre todas as categorias sociais? Comunidade que pague as contas, que tenha um hora templo e amplo salão de festas? Ou se busca uma comunidade que seja criada pelo Espírito Santo? O mesmo Espírito que ungiu Jesus (Lc 4). O alvo não pode ser o/a obreiro/a e a estrutura, mas a comunidade no sentido literal da palavra.
2) Para Deus poder revelar seu poder, é preciso que o apóstolo seja fraco (= humilde, a serviço). Evidentemente, não defendemos a ideia de que os/as obreiros/as de hoje construam, em princípio, tendas para ganhar seu sustento. Mesmo assim, faria bem uma autocrítica em torno da segurança que, em média, se almeja ou na qual se é inserido no pastorado/nos campos de trabalho. Ou será que todas as garantias que se recebe em nada influenciam no trato que se dá à causa do evangelho?
Um exemplo concreto: a insegurança e os sofrimentos que Paulo evoca como critérios para o apostolado fiel não são um desafio para o ensaio de pastorados alternativos aos estruturados via Paróquias e Comunidades?Por que será que na IECLB não se arrisca (sic!) mais nas situações de periferia? Nas situações em que não se pode e nem se deve (em princípio) esperar o retorno de contribuição financeira?
Vale destacar e meditar sobre o que diz Comblin quanto ao sentido da opção que Paulo fez pelo trabalho manual para ganhar o seu pão: Na mente de Paulo, viver do trabalho é adotar uma condição de fraqueza, colocar-se na situação dos escravos. Pois
o apóstolo que não trabalha reside na casa de um cristão rico… O apóstolo que não trabalha se situa numa rede de relações de homens ricos. O apóstolo que trabalha se situa no meio de homens fracos, trabalhadores como ele. Na teologia paulina, essa opção pelos pobres é o critério mais fundamental da legitimidade do apóstolo (pp. 21-22)
5. Olhando para o texto… através de três observações
5.1. Estamos no 3° Domingo após Pentecostes. Festejamos a presença renova da do Espírito Santo, esse que também sustentou o apóstolo.
5.2. Os w. 7-12, anteriores ao nosso texto, descrevem o drama vivido pelo apóstolo agraciado. É à luz deles que se precisa olhar para o que segue.
5.3. A perícope permite enfocar o tema da IECLB para o biénio 93/94: fé (v. 13); esperança (v. 14); amor (v. 15).
V. 13: No confronto dos caminhos propostos por Paulo e de seus oponentes — caminho da fraqueza e caminho da glória — o recurso exclusivo para suportar a tensão é a fé. O apóstolo não tem nada mais, mas também nada menos que a fé (Comblin, p. 21). E quem crê fala do que crê.
V. 14: Traz à memória o poder de Deus, poder que se revelou na fraqueza extrema da morte. E é aí que reside a esperança sustentada na fé. A ressurreição total ainda é esperança (Comblin, p. 23).
V. 15: Por amor — não pela glória do apóstolo. Torne abundantes as ações de graças — é amor que produz efeito. Quem acredita, seguindo Cristo morto e ressuscitado, entra no mundo novo, querido por Deus. Dá as costas ao mundo velho, organizado pela mentira, violência e morte. Começa a participar do mundo novo, que está sendo construído por Jesus ressuscitado, na verdade, liberdade e amor (Tonucci, p. 113).
V. 16: Se corrompa — é a constatação de que nossa carne é passageira, como a roupa que gasta. O apóstolo está consciente de que sua fé inabalável não o mantém imune às humilhações e provações. No que é visível, aparente, todo brilho vai diminuindo. Mas, na capacidade de entender e querer, há avanços. Cresce a confiança de que o mortal é absorvido pela vida. A partir do sofrimento, suas convicções ganham força e consistência cada vez maiores (Bortolini, pp. 20-21).
V. 17: Manifestam-se na vivência apostólica (e comunitária) os paradoxos que o próprio Cristo experimentou. O ressuscitado é aquele que foi morto. O morto ressuscitará. É, pois, necessário manter a relação entre o ressuscitado (v. 14), as ações de graça (v. 15) e as tribulações (v. 17).
V. 18: Por isso o convite para que a comunidade saiba discernir. Isto é: diante da pregação dos intrusos — gente fina, bem vestida, bem alimentada —, que dava despesas para a comunidade, que fazia milagres, muitos da comunidade não vêem sentido em ouvir a pregação de um mortal como Paulo. Mais: diante da pregação e possibilidade de glória imediata, palpável, qual o sentido da tribulação, da cruz? O apóstolo é doido. Paulo, porém, insiste e anima a crer no poder do Cristo ressuscitado.
6. Meditando o assunto
No caso particular das/os pastoras/es (avaliem-se outros obreiros/as), é indiscutível o risco que a estrutura paroquial representa para a causa do evangelho. Exemplo concreto: em média, somos oriundos de famílias pobres. Nosso estudo é privilegiadamente financiado. No ato da instalação, recebemos a casa, o carro, telefone, salário (com abono em muitos casos) e o poder que antes não tínhamos. É claro que tudo isso pode (?) e deveria ser colocado a serviço do evangelho. Mas, sejamos sinceros/as: essas garantias nos colocam sobre o mesmo pináculo tentador que Jesus pisou (Mt 4). Às vezes e em parte, queremos pisar esse pináculo. Outras vezes e noutra parte, setores da comunidade nos querem ver naquela posição. Esta é a constante tentação que nos persegue. O que nos sustenta?
Nas comunidades, as expectativas para com o evangelho e os obreiros/as são diversas, divergentes e conflitantes. Por um lado, a semente da Boa Notícia está em nossas comunidades. E essa ninguém mais conseguirá matar, pois é regada pelo Espírito. Mas há muita expectativa ingénua, deturpada, mesquinha. Oh, Senhor, ampara-nos nessas constantes tentações. Amém.
Finalmente, que comunidades os obreiros/as querem ajudar a regar e que comunidades elas próprias desejam ser? Em dia com as cotas? Com infra-estrutura suficiente e cômoda? Que brilha ao lado de outras entidades?
É evidente que não se quer simplesmente negar a função de tudo isso… Mas necessário se faz que tudo esteja a serviço do evangelho, que tudo isso promova vida, que essa comunidade seja constituída de gente que foi batizada e por isso morreu para o pecado e ressurge para viver a justiça (Catecismo Menor). A perícope ajuda a refletir nessa realidade:
Qual é a fé que professamos? No exemplo de Paulo, que fé o levou a falar e fazer o quê?
Qual é nossa esperança? No exemplo de Paulo, qual é a esperança que o sustentava nas tribulações e sofrimentos?
Qual é o amor que nos move, que nos relaciona? Nosso relacionamento espelha o amor? No caso de Paulo, qual o alvo de uma comunidade movida pelo amor?
E hoje somos comunidade para quê? O que nos diferencia do clube? Há marcas de sofrimento, que é fruto da fidelidade ao evangelho, ou está tudo em paz? Lembremos: o sofrimento… não o procuramos. Ele nos encontra à medida que trilhamos o caminho da fidelidade ao evangelho.
Finalmente: os vv. 16-18 destacam o eterno paradoxo da vida cristã. E, na verdade, é esse o paradoxo que move a história e sustenta a Igreja de Jesus Cristo.
7. Sugestão para estudo ou pregação
7.1. Qual foi o conflito central na comunidade de Corinto? Paulo, sua aparência, seu método de evangelizar, seu alvo? Os outros, sua aparência, seu método, seu alvo?
7.2. Critérios de discernimento do que é dito e feito em nome do evangelho (critérios que a carta oferece).
7.3. Como Paulo se sentia? (Vv. 7-12.)
7.4. O que o sustenta? Que impulsos a perícope traz para a comunidade?
7.5. Dá para terminar com perguntas:
— O que é que nos sustenta como comunidade?
— O que a comunidade espera hoje de seus/suas pregadores/as?
— Qual é o método que hoje se prefere?
— Qual o alvo que a comunidade tem?
8. Subsídios litúrgicos
1. Intróito: Sl 116.1-6(7-9).
2. Confissão dos pecados: Deus Eterno! Nos passos da nossa existência, somos constantemente acompanhados por acontecimentos que nos apavoram, nos humilham, nos machucam. Perdoa nossa fé ainda fraca, que exatamente nessas horas nos afasta de ti, faz aumentar nossas dúvidas. Perdoa-nos por não confiarmos mais no berro do salmista: Salva-me, ó Deus. Tem piedade de nós, Senhor.
3. Absolvição: Celebrações do Povo de Deus, p. 123, Sl 133 — com uma palavra motivadora.
4. Intercessões: O ideal seria que todo o culto ou ao menos as intercessões brotassem (de um grupo) da comunidade, após um estudo do texto.
Sugestões de intercessão: Pela luz da Palavra, para que ilumine os conflitos na comunidade; pela comunidade, para que trabalhe esses conflitos e não os esconda sob o tapete; por mais vontade para olharmos nos olhos do outro, para, motivados pelo amor, criarmos comunidade mais autêntica; por uma visão mais aberta e crítica, a fim de fazer com que o motivo dos nossos cultos e demais atividades sejam os frutos do amor.
9. Bibliografia
BARBAGLIO, Giuseppe. As cartas de Paulo (I). SP, Loyola, 1980.
BORTOLINI, José. Como ler a segunda carta aos coríntios. O agente de pastoral e o poder. SP, Paulinas, 1992.
COMBLIN, José. Segunda epístola aos coríntios. Série: Comentário bíblico NT. Petrópolis, Vozes, 1991.
TONUCCI, Paulo. Das comunidades de ontem às comunidades de hoje. SP, Paulinas, 1990.