Ministério da reconciliação
Proclamar Libertação – Volume 43
Prédica: 2 Coríntios 5.16-21
Leituras: Josué 5.9-12 e Lucas 15.1-3,11b-32
Autoria: Roberto Natal Baptista
Data Litúrgica: 4º. Domingo na Quaresma
Data da Pregação: 31 de março de 2019
1. Introdução
O período litúrgico para o texto-base deste comentário é a Quaresma. Esse momento do Ano Eclesiástico já foi deveras importante no cotidiano das pessoas. Atualmente, porém, ele parece estar em completo desuso e não fazendo parte do dia a dia da maioria das pessoas. Nós, igrejas cristãs, por outro lado, procuramos ser um contraponto nisso tudo e sempre falamos em tom enfático da importância de um período de reflexão, de oração, de solidariedade. De fato, podemos concordar que essas condutas deveriam fazer parte sempre, durante todo o ano, de nossas vidas. Por outro lado, também devemos aceder que é bom termos um momento em que podemos dizer que ali é o seu ponto alto, sua maior ênfase. Resumindo: de tudo que é importante, que a Quaresma nos empurre adiante no ano para “uma nova criatura” (2Co 5.17), seja eu e você, seja a própria igreja – ecclesia reformata semper reformanda est –, seja finalmente nosso país.
Há outra observação que faço antes de continuar. Existe a possibilidade de muitas delimitações da perícope em questão. Aliás, parece ser um desafio em quase toda a carta de 2 Coríntios. Vejam bem. Podemos encontrar várias possibilidades em Proclamar Libertação (PL). Se definirmos o bloco da seguinte maneira: 2 Coríntios 5.6-10,14-17 (nesse caso, apenas os versos 16 e 17 são contemplados), temos um comentário de Valdemar Gaede no PL 39. Parecido, temos também 2 Coríntios 5.14-17, PL 19, texto de Gerd Uwe Kliewer. Se optarmos por 2 Coríntios 5.14-21, com algumas variações, podemos encontrar três autores. No PL 1, Lindolfo Weingärtner; no PL 16, Gottfried Brakemeier; e, finalmente, no PL 28, Werner Brunken. Depois podemos encontrar algumas divisões de perícopes que invadem o capítulo 6. Temos, no PL 40, Ramona Weisheimer; e no PL 35, Cristina Scherer.
Depois dessa avaliação, os leitores e as leitoras percebem as possibilidades de utilizar, de “abusar” de tantos e importantes comentários e de importantes comentaristas de nossa publicação. E, ainda, podem se deleitar com textos desde o primeiro Proclamar Libertação, de 1976, até este meu comentário que faz parte da tríade de 2019, no 4º Domingo na Quaresma. Justifico que, atualmente, pela facilidade de consulta no portal Luteranos, não pretendo ser repetitivo aos demais comentários publicados. Recolho deles e de outras bibliografias o que considero importante para ênfases e pistas que gostaria de dar aos leitores e às leitoras que têm acesso ao meu texto.
O texto de Josué 5.9-12 faz parte da promessa de Páscoa ao povo libertado do Egito, com vistas agora a Canaã, a Terra Prometida. Em um contexto de Quaresma, podemos entendê-lo como perspectivas de vitórias pós-pascal, promessas divinas que nos animam a seguir adiante.
O texto do Evangelho de Lucas é a chamada parábola do filho pródigo, que descreve a relação de dois filhos com o pai: o mais novo, que se distancia e volta a reencontrar-se com ele depois de um mea-culpa; e o mais velho, que mesmo permanecendo junto dele, mostra seu distanciamento ao não querer aceitar de volta o irmão extraviado.
2. Exegese
Precisamos de algumas pistas para seguir adiante na interpretação do texto de 2 Coríntios 5.16-21. Pretendo olhar um pouco para as condições da cidade de Corinto na época, depois, alguns detalhes sobre a Segunda Carta aos Coríntios e, finalmente, perceber detalhes do texto de estudo.
Contexto de Corinto: No PL 40, Ramona Weisheimer esmiuçou a questão do contexto urbano e cosmopolita da cidade de Corinto. Júlio Cesar recuperou a destruída cidade em 44 a.C. E a partir daí, Corinto funcionou como uma cidade colônia romana. Para lá foram enviados diferentes povos. Possuindo dois portos importantes, a cidade funcionava como ligação entre Roma e Ásia. Uma aristocracia acabou surgindo em função do comércio e de fundições. Com muitos escravos, tornou-se um local de grandes distâncias socioeconômicas, poucos riquíssimos e muitos paupérrimos. Foi nesse contexto que Paulo, talvez no ano 50, chegou à cidade (veja Atos 18), ficando ali 18 meses. Pelo perfil de uma população de origens, culturas e religiões diversas, e de um judaísmo na diáspora, é possível compreender bem as dificuldades que Paulo tivera para esclarecer a sua posição do evangelho de Cristo.
A Carta aos Coríntios: A composição literária de 2 Coríntios não é tarefa fácil. Sabemos que Paulo escreveu outras cartas aos coríntios, cartas que se perderam. Vou seguir aqui, para o nosso interesse, uma explanação de José Comblin: “Paulo escreveu uma carta de apologia exortando os coríntios a reconciliar-se com ele: trata-se da carta de apologia de 2.14 – 7.4. No entanto, em 2Co 2.3,4,9 Paulo menciona a carta escrita em lágrimas. Essa não pode ser a carta de apologia de 2.14 – 7.4, pois esta última não tem o acento exasperado de uma carta escrita em lágrimas. Também não pode ser 2Co 10 – 13. Terá sido outra carta perdida. A carta em lágrimas foi o auge da crise. E Paulo soube que ela abalou profundamente a comunidade. Recapitulando, temos até agora as seguintes cartas: carta 1: a carta perdida. Carta 2: 1Co. Carta 3: a carta da apologia 2Co 2.14 – 7.4. Carta 4: a carta em lágrimas perdida” (Comblin, 1991, p. 16-17). Nosso texto, 2Co 5.16-21, faz parte no contexto maior da carta da apologia (2Co 2.14 – 7.4). Em sua terceira parte, Paulo clama os coríntios para que abracem o ministério da reconciliação – reconciliando-se com o próprio Paulo. Mas, afinal, qual foi a crise que afastou o apóstolo fundador da comunidade dos fiéis? Vejamos a seguir.
A crise parece ter começado com uma interrupção da coleta que era feita em Corinto para os pobres de Jerusalém. Paulo ensinava que os cristãos de Corinto tinham responsabilidades evidentes com o “berço do cristianismo” (Romanos 15.26-27). Até Paulo ter escrito 1 Coríntios 16.1-4, onde constam instruções para a coleta, tudo parecia caminhar em ordem. Porém, quando ele esteve em Éfeso, parece que alguém contestou sua autoridade e assumiu a liderança de um grupo que divergia do apóstolo (2.5-6). Paulo foi a Corinto e enfrentou o chefe da oposição. Esse o insultou e o desafiou abertamente. Segundo esse enfrentamento, Paulo fora acusado de não ter boas ligações com os discípulos em Jerusalém, e que ainda não fora um discípulo de Jesus em vida. Além disso, ele era contestado também por se sustentar através do trabalho de suas próprias mãos (Atos 18.3).
O texto de 2 Coríntios 5.16-21: Este texto faz parte do bloco que vai de 2.14 até 7.4. Nesse grande bloco temos a defesa do apostolado de Paulo, escrito por ele mesmo. Um grupo em Corinto exige de Paulo grandes sinais que o atestem como verdadeiro apóstolo de Cristo. Exigem demonstrações de poder (veja o capítulo 12). Em contrapartida, Paulo define seu ministério em Corinto como o da reconciliação.
Assim, vemos Paulo escrevendo com intensidade defendendo sua posição apostólica. Ele gerara a comunidade em função de sua primeira visita à cidade. Agora, nesta segunda carta, ele exorta seus discípulos para que não deem ouvido aos que o criticavam e desafiavam sua autoridade apostólica. Assim, esta segunda carta aos coríntios é, em sua maior ênfase, uma defesa do apostolado de Paulo.
Neste sentido, podemos entender o forte tema da reconciliação que aparece nossa perícope. Esse é o cerne da questão. Reconciliação exige uma nova mentalidade, uma nova criatura (5.17). Atitudes como confissão, reconhecimento de erros e perdão estão extremamente ligados ao tema da reconciliação.
Ao começarmos a leitura da nossa perícope, logo nos deparamos com a difícil interpretação de “segundo a carne”. Alguns autores imaginam tratar-se do conhecimento do Jesus terrestre. Porém, no contexto da nova criatura e da própria reconciliação, essa ênfase, provavelmente, deve referir-se ao contraste de uma atitude mental ultrapassada, do “velho homem”, atitude essa que é exacerbada pelos direitos pessoais e por uma atitude de não empatia, indiferença com o semelhante, para uma atitude renovada, da “nova criatura”, agora, uma atitude solidária e de valorização das outras pessoas, com amor e compreensão. Por isso o verso 17 complementa essa nova visão, esclarecendo o verso anterior.
Depois, nos versos 18 e 19, Paulo defende a seguinte proposta: inicialmente, Deus deu o primeiro passo. Ele estava em Cristo, reconciliando-se com o mundo – para usarmos a linguagem de Almeida. Mais que isso, Deus não estava atribuindo ou considerando os pecados deste mundo. Por isso afirmara um pouco antes que o perdão é uma atitude esperada quando exercermos a reconciliação. E, como se não bastasse sermos reconciliados e perdoados por Deus, nos resta abraçar a mesma prática com outras pessoas.
Assim, no verso 20, Paulo conclui que ele é instrumento de Deus em Corinto, para que haja a reconciliação das pessoas dali com o próprio Deus através de Cristo (verso 21), que se fez justiça por todos nós. Paulo chega a se intitular de “embaixador por Cristo”. Esse termo aparece em outros momentos da Bíblia, tanto no Primeiro como no Segundo Testamento. Vemos esse termo, por exemplo, nas parábolas de Lucas 14.32 e 19.14. Aqui, o sentido de uma pessoa que recebe uma delegação política para o diálogo e a busca pela paz. Em 2 Coríntios, o apóstolo se define como alguém que recebeu a tarefa de representante de Cristo para buscar a reconciliação entre as pessoas e Deus, o Deus anunciado por Paulo.
3. Prédica
Na prédica, podemos utilizar o verso 17 como a parte principal do nosso conteúdo. Assim, vamos enfatizar a nova criatura que todos precisamos buscar ser a cada dia. Está bem assim. Porém, se quisermos ser o mais fiel possível à mensagem da nossa perícope, não podemos falar de outra coisa que não seja a reconciliação. E, agora, o leitor e a leitora precisam buscar aspectos locais para realçar em sua prédica.
De maneira geral, esta seria a minha sugestão. Primeiramente, aproveitamos o conteúdo da nossa perícope para mostrar que Deus deu o primeiro passo na busca da reconciliação com o mundo. Lembremos que a ruptura se deu pela nossa atitude. Assim, Deus, o atingido pelas nossas indiferenças, vem ao nosso encontro. Segundo: temos que passar a ideia de que o ministério da reconciliação é tarefa de todas as pessoas cristãs. Não é algo que se espere somente de Paulo, ou de um religioso, por exemplo. Todos e todas somos chamados e chamadas a essa tarefa. Terceiro: temos que chamar a atenção que reconhecimento de erros, confissão e perdão são atitudes esperadas para quem exerce tal ministério. Não é possível reconciliar-se sem que esses aspectos também sejam fortemente presenciados.
Bibliografia
BRAKEMEIER, Gottfried. Sexta-Feira da Paixão: 2 Coríntios 5.(14b-18)19-21. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 1990. v. 16, p. 140-145. Disponível em: . Acesso em: 26 abr. 2018.
BRUNKEN, Werner. Sexta-Feira da Paixão: 2 Coríntios 5.(14b-18)19-21. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2002. v. 28, p. 153-158. Disponível em: . Acesso em: 26 abr. 2018.
COMBLIN, José. Segunda Epístola aos Coríntios. Petrópolis: Vozes; São Bernardo do Campo: Metodista; São Leopoldo: Sinodal, 1991. p. 52, 109.
GAEDE, Valdemar. A nova criação em Cristo: Auxílio homilético de 2 Coríntios 5.6-10,14-17. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2014. v. 39, p. 203-208. Disponível em: . Acesso em: 26 abr. 2018.
KLIEWER, Gerd Uwe. 5º Domingo após Pentecostes: 2 Coríntios 5.14-17. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 1993. v. XIX, p. 181-187. Disponível em: . Acesso em: 26 abr. 2018.
SCHERER, Cristina. Quarta-Feira de Cinzas: 2 Coríntios 5.20b – 6.10. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2010. v. 35, p. 120-126. Disponível em: . Acesso em: 26 abr. 2018.
WEINGÄRTNER, Lindolfo. Sexta-Feira Santa: 2 Coríntios 5.14-21. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 1983. v. I-III, p. 7-15. Disponível
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WEISHEIMER, Ramona. Sem nada, mas possuindo tudo. Auxílio homilético de 2 Coríntios 5.20b – 6.10. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal; EST, 2015. v. 40, p. 76-79. Disponível em: . Acesso em: 26 abr. 2018.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).