Sem nada, mas possuindo tudo!
Proclamar Libertação – Volume 40
Prédica: 2 Coríntios 5.20b-6.10
Leituras: Joel 2.1-2, 12-17
Autoria: Ramona Weisheimer
Data Litúrgica: Quarta-Feira de Cinzas
Data da Pregação: 10/02/2016
1. Introdução
Quarta-feira de Cinzas é início da Quaresma. Tempo de aquietar-se, de meditar, de arrepender-se. Utiliza-se a mesma cor litúrgica do Advento, quando se esperava e preparava o coração para o Senhor, que vem feito criança, que nasce entre nós e para dentro da nossa realidade. Preparamo-nos de novo, acompanhamos o Senhor de novo. Mas agora acompanhamos os passos finais do Senhor, que assume sua missão até as últimas consequências. Estamos com ele? Ou preferimos fazer o “enterro dos ossos” e tantos carnavais depois da hora, sem tempo de nos aquietar, sem tempo de parar e olhar para o coração, para a própria existência, para a vida? Aquietar-se pode ser um ato de coragem, até um “ser diferente” num mundo que cobra cada vez mais correria e emoção como critério de aceitação.
O texto proposto já foi tratado com outras delimitações (2Co 5.(14b-18) 19-21, em PL 16 e 18; 6.1-10, em PL 7), mas nesta delimitação apenas no PL 35. Os textos das leituras bíblicas ajudam-nos na reflexão. O texto do Evangelho de Mateus 6.1-6,16-21 faz parte do Sermão do Monte. Trata do serviço ao próximo, da oração e do jejum sem hipocrisia (Deus vê mesmo que não seja manchete nos jornais…) e do juntar riquezas onde importa, pois “onde estiverem as suas riquezas, aí estará o coração de vocês” (v. 21).
O texto do profeta Joel 2.1-2,12-17 chama ao arrependimento e a reconciliar-se com Deus. Eram tempos de crise – seca e praga de gafanhotos –, e todos são chamados a procurar o Senhor de todo o coração. Pois ele é bondoso e misericordioso, é paciente e muito amoroso (v. 13).
2. Exegese
2.1 – Corinto
A cidade grega de Corinto foi destruída em 146 a.C., e os sobreviventes foram dispersos. Em 44 a.C., Júlio César decretou a fundação de uma colônia romana no local, mas, no lugar de veteranos de seus exércitos, mandou para lá uma população cosmopolita – da Síria, do Egito, judeus, talvez cartagineses –, composta principalmente de ex-escravos, os libertini. Foi sede da província senatorial da Acaia com um procônsul eleito a cada ano pelo Senado. Lucius Junius Gallio, com quem Paulo teve contato, esteve lá de julho de 51 a junho de 52. Perto de Corinto estavam dois importantes portos: Lechaion, no mar Adriático, e Cencreia, no mar Egeu. Assim, Corinto era o caminho mais seguro para o comércio entre a Itália e a Ásia. A língua falada era o grego, sendo o latim reservado para assuntos ofi ciais. Era ainda a sede dos “Jogos Ístmicos”, que, de dois em dois anos, reuniam representantes de todos os recantos da cultura grega. Além disso, era o centro da indústria de bronze, possuía muitas fundições e ofi cinas de artesanato. Aristocratas donos de terras, comerciantes, armadores, donos de ofi cinas, artesãos especializados, escravos. Uma cidade próspera, com “alguns milhares” de habitantes, com suas culturas e religiões, onde os ricos eram muito ricos, e os pobres, muito pobres.
Para lá foi Paulo provavelmente em 50. Conforme Atos, começou a evangelizar pela sinagoga. J. Comblin, porém, percebe nesse começo uma visão tradicional que responde ao esquema teológico de Lucas. Paulo teria, conforme Lucas, sido expulso pelos judeus, mas permanecia apóstolo de judeus e gentios. Atentando para a importância de Áquila e Priscila, Comblin prefere ver Paulo entrando primeiro pelo bairro dos artesãos, fazedores de tendas, não pela sinagoga ou pela praça pública, onde se exibiam os oradores e vendedores de doutrinas, em geral sustentados pelos ricos, que tinham tempo para estar nas praças. Agindo diferente, Paulo teria criado um novo modelo de apostolado e de evangelização, que levou a controvérsias e deu motivo para cartas endereçadas à comunidade.
Aquela que chamamos de Segunda Carta aos Coríntios é, provavelmente, a compilação de cinco cartas, aliás bem distintas. A compilação teria sido feita em meados do século II. Os fragmentos seriam os seguintes: 1.1-2.13 e 7.5-16 – carta de reconciliação; 2.14-7.4 – carta de apologia (a que mais nos interessa neste momento); 8 e 9, duas cartas sobre a coleta para os pobres; 10-13, carta de loucura.
A Segunda Carta aos Coríntios pressupõe uma crise, e o assunto fundamental da carta é a legitimidade do apostolado: quem é o verdadeiro missionário e quais os critérios para discernir o verdadeiro do falso apóstolo? Para Paulo, o verdadeiro apóstolo gloria-se não no que ele faz, mas no que Deus faz através dele; gloria-se na fraqueza, não na força. Daí, conforme Comblin, já faz parte da própria proposta de missão de Paulo trabalhar com as próprias mãos, enxergando o trabalho não como os intelectuais o enxergam e com os nossos conceitos modernos, mas a partir da ótica dos trabalhadores: como sofrimento, provação, cansaço. Abandonar-se nas mãos de Deus, aproximar-se do Cristo que “era rico e se fez pobre” (8.9). Em vez do gloriar-se, fraqueza; em vez de ser servido, servir.
2.2 – Aproximando do texto
Paulo explicou sua visão de apostolado, refutando a de seus adversários, e agora lança um apelo aos coríntios para que se reconciliem com ele, reconheçam seu ministério, tomem o partido dele, pois se haviam deixado seduzir por belas ideias e prestígios. A doutrina de reconciliação com Deus era, provavelmente, parte da catequese das comunidades, anterior a Paulo. Assim, Deus é quem vem ao encontro, sem esperar nada dos seres humanos. Muda a relação (de inimigos em amigos). Deus reconcilia-se conosco através de Cristo, único mediador. Paulo, aqui, será o embaixador que fala “em nome de” Cristo (5.20b – NVI: “por amor” a Cristo; NTLH e BJ: “em nome” de Cristo; no grego: hyper – em prol de, no lugar de). Então reconciliar-se com Deus é reconciliar-se com Paulo também.
5.21 muda um pouco a argumentação, deixando bem claro o papel de Cristo nessa reconciliação com Deus (NVI, BJ: “aquele” que não tinha pecado…; NTLH: “em Cristo”). Essa troca, o sem pecado feito pecado e (ou “para que”) os pecadores tratados como justos, é recorrente em Paulo (cf. Gl 3.13; Rm 8.3). Cristo morre em favor do pecador.
6.1 retorna ao que vinha sendo dito sobre ser Paulo o embaixador, “companheiro de trabalho no serviço de Deus”, sempre usando o plural para referir-se a si. Dirige aos coríntios o apelo do próprio Deus à reconciliação. Eles receberam o dom gratuito de Deus, receberam o batismo, então não lancem tudo fora.
6.2 traz outra vez o chamado (escutem!) com argumentação (cf. Is 49.8). NVI e BJ traduzem “no tempo favorável”; NVI acrescenta ainda “por excelência”; NTLH traduz por “tempo de mostrar minha bondade”, tanto em Isaías como aqui.
De 6.3-10 temos uma apologia do ministério de Paulo. No v. 3, há uma pequena variação nas traduções: NVI, BJ parecem dar mais ênfase ao ministério, com pequena variação (“caia em descrédito” ou “seja sujeito à censura”), enquanto NTLH traduz “para não atrapalhar ninguém”. Paulo não se vangloria, mas se justifica diante da comunidade: como bom servidor não quer dar nenhuma margem a escândalo ou defeito.
6.4 vai discorrendo sobre o que seria uma “código do apóstolo verdadeiro”. Sem cartas de recomendação ou prestígio, o que o recomenda é apenas o seu serviço. E aí segue uma lista de características, a começar pela paciência (“perseverança” e “fortaleza” são parte do significado da palavra grega traduzida aqui por “paciência”), referida em nove momentos, em séries de três: as aflições, os sofrimentos e as dificuldades (Comblin vê nesses a evocação das provações do fim do mundo).
6.5 mais duas séries: chicoteados, presos e agredidos; e trabalhado demais, ficado sem dormir e sem comer – provações que Paulo sentiu na carne; basta olhar Atos dos Apóstolos e lembrar que devia trabalhar à noite para evangelizar de dia, e talvez nem sempre tivesse o suficiente que comer.
Em 6.6, depois das provações, as virtudes. Virtudes próprias, mas que todos os apóstolos deveriam ter: pureza e conhecimento; paciência e bondade, que são formas de irradiação do amor de Deus; Espírito Santo (parece um pouco estranho aqui, pois o Espírito Santo é a fonte de todas as virtudes; NVI e NTLH “no” ou “por meio do” Espírito Santo, e BJ “por um espírito santo” – minúsculo e indefi nido, enquanto N-A, en pneumati agiō minúsculo, na mesma enumeração) e amor verdadeiro (mesmo para com os adversários).
6.7 primeiro conclui a lista: mensagem da verdade – que não se desvirtuou do evangelho da cruz – pelo poder de Deus, único poder com o qual o apóstolo deve contar. Concluídas as virtudes, vêm umas imagens militares, tão ao gosto de Paulo: armas que se usam na mão direita e na esquerda, portanto ofensivas e defensivas.
Em 6.8-10 Paulo conclui sua apologia com sete antíteses, que retomam as acusações que foram feitas contra ele em seu apostolado: elogiados e caluniados; alguns nos insultam, outros falam bem; tratados como mentirosos, mas falamos a verdade; tratados como desconhecidos, mesmo sendo bem conhecidos; como se estivéssemos mortos (ou moribundos), estando vivos, como vocês podem ver; castigados – e talvez alguns explicassem seus sofrimentos como castigo de Deus que o rejeita – mas não mortos – o que mostra que Deus não o castiga realmente; tristeza pelas provações e alegria que vem de Deus; pobre, que enriquece outros (escolheu essa maneira de evangelizar); não tendo nada, mas possuindo tudo – pobre como uma pessoa que não tem nada, mas tem tudo, porque tem o dom de Deus.
3. Meditação
Estive lendo o belo texto que a colega Cristina Scherer escreveu para o PL 35 sobre esses mesmos versículos. Ela trouxe textos muito interessantes, palavras de Lutero sobre o compromisso “pesado e perigoso” que é o ministério; a contradição gritante do teólogo da glória, “que ignora o Deus oculto nos sofrimentos… por isso prefere as obras aos sofrimentos, a glória à cruz, o poder à debilidade, a sabedoria à tolice”; aquilo que as comunidades esperam do pregador e como, enfim, ele deve ser. Aliás, a figura do pastor transgênico – com genes de Sílvio Santos, Faustão e Roberto Carlos – pareceu-me perfeita. Lutero lembra ainda que é preciso “ter boa aparência para ser amado pelas mocinhas e senhoritas”. Pois é!… Teologia da cruz e teologia da glória, Cristo ao lado dos pobres e/ou perfilado aos ricos; aquilo precisa ser dito e show da fé, com isso se debateu Paulo, e Lutero, e nós também! E continua sendo um compromisso “pesado e perigoso”. Mas que eu não trocaria por nada.
A edição de nº 2373 de 17/05/2015 da revista IstoÉ – com todas as críticas que se possa fazer à revista – sob o título “O Santo de esquerda” falou sobre a beatificação de Dom Oscar Romero, arcebispo de San Salvador, assassinado em 1980. Falou sobre a Teologia da Libertação, conforme eles, “corrente que interpretava o evangelho à luz das questões sociais”, e a dificuldade de teólogos europeus de entender a realidade latino-americana, que deu razão ao surgimento dessa. Sem entrar nos méritos da questão, é bom ouvir da realidade do povo sofrido entrando em cena. Mas, olhando ao meu redor, agora nem preciso estar numa cosmopolita e multicultural Corinto para ver um entusiasmo gritante pela glória em detrimento da cruz. Como dizia um imponente outdoor na entrada da ponte entre Várzea Grande e Cuiabá (MT) há alguns anos: “missionário fulano de tal há 20 anos fazendo milagres” – em letras bem grandes – “em nome de Cristo” – embaixo, bem pequenininho, quase não dava para ler…
Deus convida-nos à reconciliação por Cristo, com Cristo, em Cristo. Talvez precisamos chorar como Paulo, escrever loucuras, defender o que precisa ser defendido, marcar posição, orgulhar-nos não daquilo que nós fazemos, mas do que Deus faz através de nós.
4. Imagens para a prédica
É Quarta-feira de Cinzas, início da Quaresma, início do ciclo da Páscoa. É tempo de refl exão e quietude – embora os “bailinhos” não tenham tempo para parar. Quem sabe se leva um pouquinho de cinza e mostra-a no início da pregação. Cinzas não se parecem muito com glória, bem mais com fim e arrependimento. Às vezes, a gente também se sente meio cinza, nadando contra a corrente. Mas a cinza tem lá as suas utilidades, e a Bíblia relata vários momentos em que pessoas vestiam-se com panos de saco e cobriam-se de cinzas como sinal de arrependimento e mudança de vida. Paulo fala de reconciliação com Deus; Mateus, de humildade; e Joel, de arrepender-se. Os textos relacionam-se muito bem e são um belo exemplo para a prédica.
5. Subsídios litúrgicos
Retomar as cinzas, convidando as pessoas a vir, em duplas, até o altar – ou mesa auxiliar –, sujar o dedo na cinza e fazer o sinal da cruz no pulso uma na outra, desejando a paz de Cristo.
Do que a fé é capaz?
A fé em Cristo não transforma minha comida simples em iguarias,
mas ela me leva a compartilhar o pouco que eu tenho com os pobres.
A fé em Cristo não transforma minha cabana simples num palacete de luxo,
mas ela me ajuda a ser feliz em minha cabana.
A fé em Cristo não circunda minha cabeça com nenhuma auréola,
mas ela me ergue e me purifi ca cada vez que eu caio.
A fé em Cristo não me garante uma vida de cem anos,
mas ela me encoraja a viver uma vida que dia a dia se torna útil a outros.
A fé em Cristo não me eleva agora ao lugar onde vivem os anjos,
mas ela traz Cristo ao meu coração.
A fé em Cristo não me faz ser orgulhoso por poder crer.
Antes me torna humilde para receber a sua graça.
A fé em Cristo não me resguarda do morrer,
mas ela me dá a certeza da ressurreição e a comunhão dos santos.
(Johnson Gnanabaranam)
Bibliografia
COMBLIN, José. Segunda Epístola aos Coríntios. Petrópolis: Vozes, Sinodal, Metodista, 1991.
LOHSE, Eduard. Introdução ao Novo Testamento. 4. ed. São Leopoldo: Sinodal, 1985.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).