A graça de Deus e o ministério da reconciliação
Proclamar Libertação – Volume 45
Prédica: 2 Coríntios 6.1-13
Leituras: Jó 38.1-11 e Marcos 4.35-41
Autoria: Erní Walter Seibert
Data Litúrgica: 4° Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 20/06/2021
1. Introdução
Este período do Ano Eclesiástico é dedicado ao ensino das verdades bíblicas não ligadas de forma particular a nenhum dos acontecimentos da história da salvação. É o longo período do ano comum, o qual é apenas interrompido por algumas festividades, como dias dedicados a personagens importantes (santos) e festas particulares do ano civil ou eclesiástico.
A leitura da epístola, nesta parte do Ano Eclesiástico, nem sempre está colocada para fazer harmonia com as leituras do evangelho e do Antigo Testamento. Esse é o caso do 4º Domingo após Pentecostes. A leitura é da Segunda Carta de Paulo aos Coríntios e ela faz parte de uma sequência de seis leituras, desde o começo até o final da carta. Quando uma sequência de leituras de uma epístola é colocada entre as perícopes, visa-se dar ao ouvinte uma visão panorâmica daquele livro bíblico. A ideia de ver a conexão entre os textos para extrair uma mensagem unificada fica em segundo plano. Isso não significa que não possa haver ligações entre as leituras.
Se não foi feita uma exposição do pano de fundo dessa carta quando começaram as pregações sobre 2 Coríntios, é bom fazer uma breve exposição no começo da prédica. Isso ajudará o ouvinte a contextualizar o texto da pregação.
2. Exegese
A Segunda Carta aos Coríntios é uma carta escrita em estilo bem pessoal. Na igreja de Corinto tinha surgido forte oposição ao ministério do apóstolo Paulo. A atuação dos judaizantes causou conflito e divisão na igreja. Os judaizantes queriam que os convertidos à fé cristã se submetessem a todas as leis cerimoniais judaicas. Atacavam o ministério de Paulo, dizendo que ele fazia muitas concessões aos convertidos, de forma a descaracterizar a verdadeira fé. Essa controvérsia, que foi muito grande na igreja primitiva, está como pano de fundo dessa carta. O período mais duro dessa crise, aparentemente, já tinha sido superado, mas ainda havia muita coisa para ser esclarecida. Paulo escreve como um pai, pedindo que todos voltem ao entendimento comum da fé.
O ministério da reconciliação é o assunto que Paulo está tratando no final do capítulo 5 (v. 18-21). Os primeiros dois versículos do capítulo 6 estão em conexão com o que vinha sendo dito. Deus nos reconciliou consigo em Cristo. Ele nos deu o ministério da reconciliação. Quando os embaixadores de Deus falam em seu nome é como se Deus falasse por intermédio deles. O ponto-chave da argumentação é que a reconciliação se dá completamente em Cristo. Não há necessidade de fazer nada ou de completar alguma coisa. Se alguém introduz alguma obra humana no ministério da reconciliação, ele faz com que as pessoas recebam a graça de Deus em vão.
Esse ministério da reconciliação Paulo exerceu junto aos coríntios. Ele anunciou a salvação conquistada por Jesus Cristo. E essa salvação é por graça. O apóstolo Paulo fez isso com toda a dedicação. Ele não poupou esforços para que esse anúncio fosse feito. Ele não poderia ser acusado de adulterar ou baratear a graça de Deus.
Os versículos 3 a 10 do capítulo 6 mostram como o apóstolo Paulo exerceu o ministério da reconciliação de forma dedicada. Cada item mencionado pelo apóstolo se refere a uma passagem de seu ministério. Podemos conferir:
• Nos recomendamos a nós mesmos como ministros de Cristo – 1Co 3.5; 2Co 11.23.
• […] na muita paciência, nas aflições, nas privações, nas angústias, nos açoites, nas prisões – Rm 12.9; Gl 5.22.
• […] nos tumultos, nos trabalhos, nas vigílias, nos jejuns – 2Co 11.27.
• […] na pureza, no saber, na paciência, na bondade, no Espírito Santo, no amor não fingido – Rm 12.9; Gl 5.22.
• […] na palavra da verdade, no poder de Deus; pelas armas da justiça – Rm 13.12; 2Co 10.4.
• […] tanto para atacar como para defender; por honra e por desonra, por infâmia e por boa fama; como enganadores e sendo verdadeiros; como desconhecidos e sendo bem-conhecidos; como se estivéssemos morrendo, mas eis que vivemos – 2Co 4.10.
• […] como castigados, porém não mortos; como entristecidos, porém sempre alegres; como pobres, mas enriquecendo a muitos; como nada tendo, mas possuindo tudo – 1Co 4.11-13.
O apóstolo Paulo, como podemos ver, utiliza uma linguagem poética de contrastes. Não havia nenhum mérito no que fazia, mesmo quando estava sob o mais cruel sofrimento. Tudo era devido à graça de Deus. E se ele tinha a graça de Deus, ele tinha tudo. Em várias passagens de suas epístolas, o apóstolo se vale de recurso semelhante. A intenção era deixar claro que em seu ministério a ênfase estava na graça de Deus e não nas suas obras ou na sua pessoa.
É nesse ponto que podemos fazer uma conexão com as leituras do dia. A leitura do Antigo Testamento, de Jó, está no final do livro. Os amigos de Jó, inútil e insensatamente, tentaram convencê-lo de que as dificuldades da vida que ele estava enfrentando eram castigo de Deus. Jó deveria reconhecer que havia feito algo contra Deus. Ele não havia vivido a vida de forma tão consagrada a de modo a merecer a graça de Deus. Depois de toda essa argumentação anterior, entra o texto de Jó 38. Deus fala a Jó de sua soberania e do seu poder. A graça de Deus também faz parte da soberania e do poder de Deus. Não entendemos a graça. Ela nos é dada por Deus na sabedoria dele. Não podemos acrescentar nada. Não podemos ter outra atitude diante de Deus que crer nele, confiar nele, saber que ele é Deus.
Essa lição também vem do evangelho, que conta como Jesus acalmou a tempestade. Os discípulos sentiram-se impotentes diante do fenômeno da natureza. Mas Jesus podia ajudá-los e ajudou. Assim também o apóstolo Paulo. Ele esteve em muitas dificuldades e nem por isso achou que tinha méritos. A graça de Deus bastava. Essa é a beleza do ministério da reconciliação.
O apelo final do texto da perícope, os versículos 11 a 13, tem um tom bem pessoal. Paulo abre seu coração. A situação naquela igreja já estava mais tranquila, porém ainda havia os que contestavam o ministério do apóstolo. Ele, com benevolência, chama a todos de filhos e apela para um gesto de boa vontade dos que estão em oposição a ele.
3. Meditação
O texto da epístola tem uma palavra muito útil para igrejas que têm problemas de divisões e grupos. Essa é uma característica humana verificada não apenas dentro da igreja, mas em toda a sociedade. No Brasil, nos últimos anos, vive-se uma radicalização política. Quem é de um lado tem dificuldades de reconhecer alguma virtude do lado oposto, seja qual for o lado oposto. As conversas para encontrar convergência, em muitos casos, levam a uma radicalização ainda maior. Em muitas famílias, o debate de problemas sociais foi eliminado para que não se crie uma situação de divisão familiar. O mesmo acontece também nas igrejas. Se isso é um problema na igreja em que vamos pregar, o que o texto pode nos ensinar com a ênfase no ministério da reconciliação?
Deus reconciliou o mundo consigo mesmo. Deus foi amoroso. Ele entregou até seu filho à morte. Ele quer seus filhos de volta, unidos. Se Deus estende o ministério da reconciliação, não deveríamos nós também praticar isso no nosso dia a dia entre os irmãos e as irmãs? As convicções políticas não são verdades eternas. São importantes, mas elas não substituem nem acrescentam nada ao amor de Deus em Cristo Jesus.
Por outro lado, o texto também nos ensina a ser humildes. O apóstolo Paulo, com toda a sua biografia, não achava que tinha algum mérito especial para receber a graça de Deus. Sempre que pensamos que Deus é gracioso conosco por algum mérito nosso, desmerecemos sua graça. Por outro lado, com a biografia do apóstolo Paulo, podemos ver o que a graça faz quando muda uma pessoa. Ela se dedica integralmente ao serviço daquele que lhe estende o manto da sua graça, a saber, Deus, nosso Pai celestial.
O texto da epístola também oferece oportunidade para a igreja examinar seu trabalho. A atividade desenvolvida pela igreja é uma atividade de cooperadores de Deus. Servimos a Deus. Não servimos a nós mesmos. Assim como Deus foi gracioso para conosco, transmitimos a graça para o nosso semelhante. O apóstolo sofreu na pele uma cobrança injusta dos membros da igreja para com o seu ministério. Eles queriam que Paulo, em sua pregação, não salientasse apenas a graça de Deus. Eles queriam que Paulo salientasse que os membros tinham algo a fazer para alcançar a graça de Deus. Sempre que as pessoas confiam em suas obras, ou elas desenvolvem uma falsa segurança ou hipocrisia. E é muito fácil cair nisso.
Uma tentação muito comum é criar pequenos rituais e acreditar que, se os cumprimos, Deus é gracioso conosco. Ajoelhar para orar é algo muito bonito. É uma atitude de humildade e submissão a Deus. Mas, se pensamos que por nos ajoelharmos vamos ser atendidos, estamos enganados. Desmerecemos a graça de Deus. Deus não é gracioso para conosco nem porque ajoelhamos, nem porque não ajoelhamos. Deus é gracioso para conosco porque ele é bom. Ele mostrou sua graça dando seu Filho Jesus para nos salvar. Outros podem acreditar que Deus será gracioso para com as pessoas se elas fizerem uma grande oferta para a igreja. Fazer ofertas para a igreja é importante e necessário para o bom andamento do trabalho da igreja. Mas se pensamos que por causa das nossas ofertas Deus será gracioso conosco, desonramos o que Cristo fez na cruz.
É na prática que começamos a entender o que Paulo queria dizer com expressões como “nada tendo” mas “possuindo tudo”, “pobres” e “enriquecendo a muitos”. Se olhamos para nós, não temos nada. Mas se olhamos para o que a graça de Deus faz por nós, nada nos falta. O foco está na graça de Deus. Se temos isso, temos tudo.
Uma outra palavra importante a salientar é a palavra “ministério”. No grego, essa palavra transliterada é diaconia. Diaconia é serviço. O que fazemos é serviço aos outros, não para nossa honra e glória. Não nos servimos, mas servimos a Deus e ao próximo. Quando a igreja vive a diaconia, o serviço, forma-se um novo ambiente, livre das divisões e disputas.
4. Imagens para a prédica
Dietrich Bonhoeffer, em seu livro “Discipulado”, usa a expressão graça barata em contraste ao que chama de graça preciosa. A graça de Deus manifesta em Cristo Jesus é uma graça preciosa. Podemos torná-la graça barata quando ela serve para que nós vivamos uma vida cristã relaxada, indiferente à vontade de Deus. Talvez esse problema que Bonhoeffer apontou na primeira metade do século passado continua existindo na igreja. Bonhoeffer, ao escrever o livro, tinha uma preocupação pastoral. Ele pensava nas pessoas que não vinham aos cultos, não participavam da ceia, viviam sua vida sem nenhuma preocupação aparente com a fé, e se justificavam dizendo que a salvação era por graça e que elas criam nisso. A salvação não era por obras. Será que esse problema continua existindo em nossos dias? Como o ministério da reconciliação, a partir do nosso texto, pode tratar disso.
Por outro lado, temos na igreja de nossos dias uma ênfase muito grande em obras que dizem movimentar a graça de Deus. Orações, ofertas, procissões e muitas outras atividades são apontadas como importantes para que Deus seja gracioso conosco. O que o ministério da reconciliação tem a ensinar para a igreja, para que ela aprenda a não receber em vão a graça de Deus?
Finalmente temos o problema das divisões e partidarismos dentro da igreja. As divisões se manifestam de muitas maneiras e por muitos motivos. Igrejas se dividem, líderes da igreja se acusam mutuamente, tudo isso, muitas vezes, deslustrando o ministério da reconciliação. O que esse ensino da perícope pode ajudar nessas situações?
5. Subsídios litúrgicos
Nas atividades de culto de nossas igrejas, sempre há um momento de confissão e absolvição. Na confissão, as pessoas e a igreja reconhecem o que fizeram contrário à santa vontade de Deus. O remédio para o pecado foi dado por Jesus Cristo com sua morte na cruz. A vitória sobre o pecado ficou evidente com a ressurreição. Não precisamos nem conseguimos pagar pelas nossas culpas. A graça de Deus em Cristo cobre multidão de pecados. Esse momento da liturgia resume de forma bem expressiva o ministério da reconciliação. Não há pena a ser paga por nós. Deus nos salva em Cristo. E essa graça impulsiona para uma nova vida de consagração.
Pessoas que experimentaram essa graça em sua vida passaram a servir ao Senhor. O próprio apóstolo Paulo é um exemplo disso. Ele confiava nas obras da lei até ter o encontro com Cristo, que modificou sua vida. Ao descobrir a maravilhosa graça de Deus, dedicou com ainda maior intensidade sua vida a serviço do Senhor. Não temeu dificuldades, fez tudo o que pode para divulgar a boa notícia da reconciliação.
Jó é outro exemplo clássico do que a graça de Deus faz na vida de uma pessoa. Ele não entendeu seu sofrimento. Mas ele continuou com Deus. E Deus o fez compreender que, mesmo perdendo tudo o que é material, não significa que perdemos a graça de Deus.
Existem em nossos hinários e livros de louvor muitos hinos sobre o tema da graça de Deus que podem ser explorados na liturgia do dia. As ofertas que são recolhidas no culto passam a ter um novo sentido a partir do entendimento do ministério da reconciliação.
Como a graça de Deus se revela no ministério da reconciliação?
1. Enfatizando a obra salvadora de Cristo
2. Dando novo sentido ao nosso viver consagrado
3. Ajudando-nos a viver unidos
Bibliografia
BÍBLIA DE ESTUDO NAA – Nova Almeida Atualizada. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2018.
BONHOFFER, Dietrich. Discipulado. 13. ed. São Leopoldo: Sinodal; EST.
HAUBECK, Wilfrid; SIEBENTHAL, Heinrich von. Nova Chave Linguística do Novo Testamento. São Paulo: Traguimim; Hagnos, 2009.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).