Proclamar Libertação – Volume 38
Prédica: 2 Pedro 1.16-21
Leituras: Êxodo 24.12-18 e Mateus 17.1-9
Autor: Eloir Enio Weber
Data Litúrgica: Último Domingo após Epifania
Data da Pregação: 02/03/2014
1. Introdução
Deus se revela. Revela a sua vontade. Manifesta o seu amor. Nós o percebemos pela espiritualidade que é alimentada por meio das mais diversas passagens bíblicas que dão testemunho dele.
No auge do Antigo Testamento, Ele se mostrou como um Deus que age [Eu sou o que sou], que ouve o clamor, sente a miséria [misericórdia], intervém na história e liberta o povo escravo no Egito. Durante a passagem pelo deserto, ele dá ao povo os mandamentos, que têm como papel fundamental assegurar a liberdade de todas as pessoas na nova terra. O texto do Antigo Testamento, Êxodo 24.12-18, uma das leituras de hoje, relata o encontro de Deus com Moisés no monte Sinai para efetuar a entrega das tábuas dos mandamentos. Nesse gesto, Deus revela-se
como aquele que quer não só conceder a liberdade, mas assegurá-la.
No auge da Bíblia, para nós cristãos, Deus revela o seu rosto amoroso em Jesus Cristo. Ele, de forma definitiva, age, liberta, perdoa e salva. Vai até as últimas consequências na cruz. Toma o nosso lugar. Faz a “troca maravilhosa” conosco. O texto do evangelho deste domingo (Mateus 17.1-9) é o texto da transfiguração. Assim como no livro do Êxodo, novamente a revelação acontece no alto de um monte para pessoas restritas (antes só para Moisés – agora para Pedro, Tiago e João). Nessa manifestação, percebe-se a revelação da glória de Deus em Cristo e de seu papel no futuro Reino.
No texto de pregação (2Pe 1.16-21), o autor recorre à experiência da transfiguração de Jesus para falar da veracidade da mensagem que ele transmite. Ser testemunha ocular garante a mensagem e dá credibilidade a ela. A pregação da palavra de Deus nessa tarefa revela-se por meio do falar de “pessoas santas movidas pelo Espírito Santo” – é como uma luz que indica o caminho enquanto o dia (reino de Deus) ainda não está pleno entre nós.
Assim estão postos os textos para este último domingo após Epifania. Deus revela-se para e através de personagens dos textos bíblicos. Ele quer fazê-lo também através de ti, celebrante de culto deste domingo. Deus te abençoe nessa tarefa!
2. Exegese
2.1 – O livro
Não há condições de datar esse escrito de forma definitiva. A segunda Carta de Pedro talvez seja o último escrito, em termos cronológicos, do Novo Testamento. Caso essa afirmação seja verdadeira, então dificilmente a autoria pode ser atribuída a Pedro, o apóstolo (mesmo que, textualmente, essa seja a afirmação no início da carta). A carta foi escrita provavelmente na época em que a igreja passava para a fase pós-apostólica. Até o final do primeiro século, os cristãos viviam da experiência com o Cristo terreno e da espera pela parusia imediata. A partir dali, as comunidades passaram a receber forte pressão de diversas doutrinas – especialmente do gnosticismo. A carta é uma resposta a essa situação. Ela quer também estimular os desencorajados e denunciar com veemência as doutrinas estranhas à fé.
2.2 – O texto
O texto em questão defende com ardor a veracidade do testemunho anunciado à comunidade – a fé que unicamente aponta para o Cristo, revelado como Senhor e Salvador. O autor faz apologia de sua teologia e escreve que a fé na vinda de nosso Senhor Jesus Cristo é baseada em uma experiência pessoal. Nesse contexto, a vinda da qual o autor fala no versículo 16 refere-se precisamente à segunda vinda de Cristo em glória. Esse argumento opõe-se àquilo que os gnósticos acreditavam. Pode-se afirmar que a vinda está relacionada à volta de Cristo, porque o autor faz logo em seguida a menção da experiência vivida na transfiguração. A visão está relacionada com a glória que acompanhará o Cristo na parusia. A transfiguração foi uma visão preliminar daquilo que há de vir. O autor ressalta o senhorio ao destacar o título completo: “nosso Senhor Jesus Cristo”.
Na medida em que defende a sua teologia, o autor condena a forma como os gnósticos promovem o seu “fazer teológico”, usando para isso a terminologia “fábulas engenhosamente inventadas”. Pelo contrário, o autor se diz “testemunha ocular da majestade de Cristo”. Essa afirmação tem a intenção de opor-se diretamente aos “mitos” dos gnósticos, criados por sua sabedoria humana pervertida. Para o verdadeiro apóstolo, não há nenhuma necessidade de imaginar situações; basta descrever a sua experiência, vivida em companhia do Senhor Jesus Cristo. A majestade de Cristo é uma realidade vista com seus próprios olhos e sentida com seus próprios sentidos. Essa experiência é uma antecipação da majestade e da glória futuras. O esplendor visível é o fermento da esperança que surge do convívio e da intimidade com Cristo. A fé assimila essa experiência e transforma-a em testemunho.
Cristo recebeu honra e glória quando, pela glória excelsa, se ouviu a voz de Deus Pai. A transfiguração dentro da teologia cristã é vista tradicionalmente como prefiguração do Reino e de sua glória, tendo Cristo como rei. A ênfase aqui está no testemunho, na visão, na credibilidade da fé cristã diante de doutrinas estranhas infiltradas no seio da comunidade. O autor descreve, com poucas variantes, a palavra proferida pela voz de Deus na transfiguração: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo”. A mesma frase foi dita também no contexto do batismo de Jesus Cristo. A autenticidade da doutrina da parusia é comprovada na audição da voz de Deus, enquanto a glória era manifestada e refletida em Cristo. Para o autor, ouvir a voz de Deus é beber da própria fonte. Não há como menosprezar essa experiência. Não dá para ignorar ou diminuir esse fato. Assim como Moisés ouviu a voz de Deus, ao receber os Dez Mandamentos no monte santo, os discípulos, em outro monte santo, ouviram a voz dele quando presenciaram a prefiguração da parusia.
A referência à palavra profética é uma alusão direta ao Antigo Testamento, mas é bem provável que o autor quisesse dizer que ela é confirmada e continuada no Novo Testamento. A palavra profética (e apostólica) é confirmada pela voz e pela visão que é trazida à lembrança nesse texto. É necessário que a comunidade assimile essa mensagem. Assim como a luz resplandeceu do corpo de Cristo, a fé nessas palavras é uma “candeia que brilha em lugar tenebroso, até que o dia clareie e a estrela d’alva nasça no coração” das pessoas de fé. A comunidade precisa ouvir e assimilar (“fazeis bem em atendê-la”) essa palavra, pois é a que traz a salvação àqueles que a compreendem e acolhem. Essa sim deve ser seguida, não a mensagem dos gnósticos.
O presente mundo com suas tramas e fábulas mirabolantes é visto como um lugar tenebroso, escuro. É necessário que a luz da Palavra, aquela que iluminou a partir de Cristo, se faça presente, indicando caminhos. Enquanto a noite perdura, a candeia deve iluminar. Mas o dia já vem. A luz da estrela da manhã logo há de aparecer. Avizinha-se a alvorada para a criação. É uma referência à parusia, à volta de Cristo em glória, poder e majestade. Enquanto é noite, há espaço para o pecado humano agir, que se vale das trevas em que está mergulhado o mundo. A noite é o tempo do sono (a despreocupação espiritual), de todos os tipos de excesso. O amanhecer é tido como o tempo de vigilância e retorno de Cristo, enquanto o dia é visto como tempo de ação, convívio e busca.
As profecias não são frutos da imaginação humana. Nem são projeções da vontade humana. As profecias são verdadeira palavra de Deus, voz de Deus, manifesta, especialmente, em Jesus Cristo. Não palavras humanas, mas testemunho de fé a partir de uma experiência com Cristo.
O Espírito Santo é o agente impulsionador. Nele está a origem dos impulsos, do desejo de escrever a respeito daquilo que é imagem viva na lembrança daquele que vivenciou uma experiência de fé na presença de Cristo no monte santo: viu a luz, ouviu a voz. O Antigo e o Novo Testamentos permanecem juntos, e ambos manifestam-se contrariamente às inovações dos falsos mestres.
3. Meditação
Mundo plural. Sociedade multicor. Talvez sejam conceitos que se aplicam bem ao que vimos até aqui. O cristianismo logo começou a se deparar com essa realidade. Até porque ele próprio começou, a partir da espiritualidade judaica, uma forma diferente de ler a relação de Deus com seu povo e entre os seres humanos.
O cristianismo por si só é um movimento multicolor. Quando começou a se expandir para o mundo “pagão”, de forma definitiva ele se defrontou com essa realidade em uma sociedade greco-romana. No segundo século, provável contexto histórico no qual está situado o nosso texto, essas expressões de pluralidade se evidenciaram. O cristianismo precisou adequar-se muitas vezes, sem, no entanto, perder a sua essência. O cristianismo desenvolveu-se num contexto urbano, portanto plural.
Conviver e estabelecer-se em um mundo plural é um desafio. Na realidade atual, não muito diferente do que no tempo bíblico, é necessário traduzir a mensagem do evangelho para dentro da realidade multicolor da cidade. A cidade tem encantos. Atrai. Ela é lugar de seres humanos com seus pecados, limitações, chagas e angústias. Aliás, a cidade tende a ressaltar o que há de mais humano, ou seja, o individualismo e a busca por espaço e sobrevivência a qualquer custo. O pecado pode ser vivenciado de forma mais livre, porque a vida é menos controlada. Migrar para a cidade é viver de forma emancipada. A cidade concentra mais o pecado porque concentra pessoas. Na realidade, a cidade pode multiplicar o pecado, constituir uma imagem do mal, mas não se pode esquecer que também representa o reino de Deus. A cidade é, portanto, a síntese do pecado e a síntese da nova criação de Deus.
Para dentro dessa realidade, a mensagem bíblica necessita ser clara. O Novo Testamento ressalta que, apesar da cidade ser espaço de pecadores, o reino de Deus é prefigurado de forma plena numa Nova Jerusalém, oferecida por Deus, que desce do céu. A cidade, portanto, não está alheia ao reino de Deus, pois esse se realiza nos e pelos seres humanos.
Na cidade, as pessoas não aceitam o argumento da autoridade e, muito menos, a imposição. Não basta ditar as regras de uma religiosidade. As pessoas não se submetem. Elas precisam convencer-se (não ser convencidas) pessoalmente. A religiosidade não pode ser resumida a uma recitação de verdades absolutas e regras a serem seguidas. As pessoas precisam de conceitos balizadores, ferramentas e uma espiritualidade que as auxilie na busca por caminhos, processos, métodos que façam sentido para sua vida e seu dia a dia.
A igreja precisa falar para adultos. Passou o tempo em que os membros deviam ser tratados como crianças na fé de forma permanente. A igreja precisa ser capaz de provocar uma verdadeira e constante conversão nos adultos. Caso contrário, ela verá seus membros afastarem-se dela sem drama e com toda a tranquilidade. A igreja que na cidade se fecha em si e vive de seu passado glorioso será eliminada da cidade. Na cidade, nada é estável. A igreja precisa estar em constante estado de missão – e a cidade é, por excelência, espaço de missão.
Até os membros de famílias tradicionais deixam de participar se a sua fé não se renova sem cessar. Havia um tempo em que a igreja se preocupava em manter seus membros e famílias. Hoje, em contexto urbano, ninguém segura ninguém dentro de uma igreja. É necessário renovar sem cessar as adesões, fazer novos membros, cuidar da fidelidade dos membros mais antigos e convencer-se de que ninguém mais bebe de uma única fonte religiosa.
Então vale tudo nesse contexto? Não! Não podemos “vender a nossa alma”. Temos uma teologia. Temos um compromisso com a ética evangélica. Temos um jeito de ser igreja de Jesus Cristo. Temos uma essência da qual não podemos abrir mão sob o risco de perder o nosso lugar, o nosso perfil e a seriedade com a qual tratamos a espiritualidade cristã.
O texto de 2 Pedro já nos indica caminhos. Não podemos abrir mão da centralidade de Cristo. A teologia da cruz tem seu eco para dentro das necessidades humanas na atualidade. Ela não está esgotada. Pelo contrário, as pessoas têm sede e necessitam analisar suas cargas e chagas da vida através do prisma do sacrifício de Cristo. Elas, diferente do que nas últimas décadas, não querem mais um Deus “super-herói”. A vida já as surrou demais, e elas já aderiram a uma religiosidade da glória que não conseguiu dar respostas – até porque não enriqueceram de forma mágica, os seus familiares não foram curados da noite para o dia com um milagre mirabolante.
Temos o nosso jeito de viver comunidade como sociedade de contraste. Precisamos exercitar com bastante ênfase o acolhimento, mostrar interesse em ouvir. Dizer com coragem que não temos respostas prontas para tudo, mas que queremos ser parceiros de luta e de caminhada. Exercitar a oração, a leitura bíblica, a reflexão. Traduzir a nossa riquíssima visão de ser humano, cunhada por nosso reformador: somos simultaneamente justos e pecadores. As pessoas já foram por demais acusadas de não ter fé, por não conseguir estancar o mal em sua vida. A descoberta de que somos justos e pecadores é uma libertação da necessidade e da cobrança pela perfeição que há no mundo pentecostal. A visão de que não estamos dominados pelo diabo por não conseguir nos libertar por conta própria do pecado, como prega o neopentecostalismo, é uma mensagem que precisa ser revelada ao mundo.
Temos muito espaço. Não estamos sós. Sejamos nós, como igreja de Cristo, “como uma candeia que brilha em lugar tenebroso, até que o dia clareie e a estrela da alva nasça” (2 Pedro 1.19).
4. Imagens para a prédica
Compartilho uma pequena estória cujo autor desconheço:
Conta-se que um rabino foi perguntado por seus discípulos: “Como se pode saber quando amanheceu o dia e acabou a noite?”.
O rabino devolveu a pergunta aos discípulos. Um deles arriscou: “É quando podemos distinguir com clareza entre uma vaca e um cavalo”.
Tendo ficado em silêncio o mestre, outro discípulo disse: “É quando sabemos discernir se a fruta é uma maçã ou uma pera”.
Como ninguém mais falou, calmamente o rabino disse: “Terminou a noite e amanheceu um novo dia quando reconheço no outro um irmão”.
5. Subsídios litúrgicos
Sugiro preparar o lugar da celebração com fotos (recortes de rostos) de diversas pessoas. Podem ser fotos de pessoas da própria comunidade ou recortes de imagens em revistas.
Em algum momento adequado na celebração, convidar as pessoas para olhar com atenção as imagens. Perceber diferenças. Semelhanças.
Espalhar, também, pedaços de papel com afirmações teológicas escritas*. Convidar algumas pessoas para pegar um papel e ler a frase. Fazer uma análise teológica se dá ou não dá para concordar com aquilo.
O objetivo dessa dinâmica é estimular a comunidade a perceber que somos diferentes. Podemos pensar diferente em inúmeros aspectos. Mas há algumas verdades das quais não podemos abrir mão e outras com as quais não podemos concordar. Nem tudo o que ouvimos em termos de afirmações teológicas é correto. Nesse ponto, trazer o texto bíblico de 2 Pedro para dentro da reflexão. O apóstolo ensina-nos a resistir e a argumentar. Essa deveria ser a temática da celebração.
* Exemplos de frases com as quais podemos concordar e outras com as quais não devemos concordar. Analisar, conversar e explicar o porquê de concordar ou não:
“Somos pessoas pecadoras, mas pela graça de Deus somos perdoadas”;
“A pessoa que tem fé não peca mais”;
“A salvação é obra exclusiva de Deus em nós”;
“Se nos esforçarmos muito, chegaremos ao céu pelas nossas capacidades”;
“O sofrimento em nossa vida é castigo por causa da nossa falta de fé”;
“Não há sofrimento humano com o qual Deus não se comisere ou que ele desconheça”.
Bibliografia
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado versículo por versículo. V. 6. 4. ed. São Paulo: Milenium Distribuidora Cultural, 1983.
COMBLIN, José. Viver na Cidade – Pistas para a Pastoral Urbana. 2. ed. São Paulo: Paulus, 1996.
SAVIANO, Brigitte. Pastoral nas Megacidades – Um Desafi o para a Igreja da América Latina. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).