Ver com outros olhos
Proclamar Libertação – Volume 44
Prédica: 2 Pedro 1.16-21
Leituras: Êxodo 24.12-18 e Mateus 17.1-9
Autoria: Marcos Antonio Rodrigues
Data Litúrgica: Último Domingo após Epifania
Data da Pregação: 23/02/2020
1. Introdução
O Último Domingo após Epifania convida-nos a contemplar a glória de Deus revelada em Jesus. Sons e luzes mais fortes do que nossos ouvidos e olhos podem suportar, acontecimentos que fogem da normalidade, são sempre hiperlativos e metáforas para a voz de Deus a nos orientar (Êx 24.12-18). Epifanias abrem as portas do coração humano para acolher sonhos, futuros e esperanças que revelam o coração de Deus. É o amor que sai do coração de Deus e se instala no coração humano, tornando a humanidade mais capaz de ver e compreender aquilo que antes estava oculto.
Moisés, Elias, Josué, Jesus, Pedro, Tiago, João e outros homens e mulheres que testemunharam a força do amor serão nossos guias. Suas experiências com Deus são luzes que podem iluminar de maneira nova nossas velhas, escuras e obscuras perspectivas e expectativas sobre Deus e seu amor (2Pe 1.16-21). Seus testemunhos, que perpassam os textos deste domingo, são a estrela da manhã, anunciando que as noites escuras da alma estão terminando e que o novo dia já vai raiar.
Epifania é também peregrinação! É caminhada solidária de Deus conosco! Ela nos convida a escalar montes para chegar a alturas mais próximas de Deus. Ela nos convida a descer aos vales escuros para poder adentrar na profundidade da alma humana (Mt 17.1-9). Uma jornada digna de místicos, pais e doutores da igreja. Não se trata apenas de entender o mistério do amor! Trata-se, com urgência, de viver e ser radicalmente o amor que anunciamos.
2. Exegese
Não há dúvidas de que a Segunda Carta de Pedro é o escrito mais recente do Novo Testamento. Portanto o testemunho mais distante de Jesus e seus acontecimentos que temos no cânone. Sua inclusão no cânone deu-se apenas no final do século IV, nos Concílios de Hipona e Cartago. E isso talvez seja tudo o que possamos afirmar com propriedade a respeito dessa carta. Pairam dúvidas sobre sua origem, autoria e época. Além disto, ela é acusada de falta de profundidade teológica e de pobreza cristológica.
Quanto a essas dúvidas, a maioria dos comentaristas afirma que o estilo sofisticado do grego utilizado difere muito do estilo usado na Primeira Carta de Pedro, apontando com mais intensidade para a Carta de Judas. Pesa ainda a quase total ausência de referências ao Antigo Testamento, algo abundante na Primeira Carta de Pedro. Por fim, temos o argumento de que a pesquisa científica indica que os problemas levantados na Segunda Carta de Pedro foram sentidos e vividos pela igreja somente a partir do século II. Sem muita precisão cronológica, podemos, então, situá-la nas primeiras décadas do segundo século.
Um tempo muito longo! Ele não nos confere precisão cronológica, mas nos indica profusão. As ideias aqui abordadas estiveram presentes na vida das comunidades cristãs por um logo tempo. Isso, por si só, é um indício da importância dos pensamentos lavrados nessa carta para os primeiros séculos do cristianismo. Especialistas não conseguiram muito mais do que situá-la entre Roma e toda a Ásia Menor. Isso é quase todo o mundo conhecido de então. Embora isso dificulte a localização de sua origem, sugere que cópias dessa carta teriam circulado pelas comunidades desde Roma até a Ásia Menor, o que, sem dúvidas, ajudou no fortalecimento da identidade cristã. Some-se a esses elementos o fato de a carta não ser endereçada a nenhuma comunidade específica.
Quanto à sua autoria, a hipótese mais plausível é a de que seu autor seja um pastor de comunidade, que ao final de seu ministério encontra-se preocupado com a influência de grupos gnósticos (falsos mestres). Eles colocavam em dúvida a divindade de Jesus, questionando se ele seria realmente filho de Deus. A divindade e a humanidade de Cristo estavam em jogo. Como era comum naquela época, seu autor usou o nome do apóstolo Pedro para dar credibilidade e legitimidade a seus postulados sobre a fé cristã. Pela fé, colocou-se como testemunha ocular dos acontecimentos que, em sua opinião, comprovam que Jesus é o filho de Deus. Enxergou com os olhos da fé aquilo que seus olhos não puderam contemplar pessoalmente. Viu a verdade de Deus naquilo que outros olhos viram.
Nos primeiros séculos, não havia uma única interpretação possível a respeito de Jesus. O fato de possuirmos quatro evangelhos guardados no cânone, e não apenas um, comprova essa diversidade inicial do cristianismo. Durante quase quatro séculos, o cristianismo foi plural. Só a partir daí a ortodoxia se estabeleceu como um pensamento majoritário a respeito dos fundamentos da fé cristã. Não tanto pelo seu conteúdo, mas por oferecer a fé herdada pelos ensinamentos dos apóstolos como critério, a Segunda Carta de Pedro contribuiu com propriedade para o estabelecimento dos valores e ideias que mais tarde foram considerados apropriados para a fé cristã. Nossa carta explicita o combate aberto contra as outras possibilidades de compreensão de Deus, Jesus e do ser humano, que vinham da religiosidade do mundo romano.
Trata-se de uma mensagem escrita numa época em que a fé em Jesus precisava ser validada diante de outros pensamentos e ideias a respeito de Deus. O contato diário com as religiões de mistério e seus cultos, bem como com as influências do pensamento gnóstico obrigou os cristãos a formularem seu próprio conjunto de significantes, pensamentos e valores a respeito de Jesus. Não foi apenas um tempo de profundos questionamentos. Foi acima de tudo um tempo de profundas afirmações baseadas na fé naquilo que os olhos de seguidores de Jesus, que precederam o autor, viram e na experiência pessoal das comunidades com o Cristo Ressuscitado.
No centro desse debate estava a discussão sobre a verdadeira essência de Deus, de Jesus e do ser humano. Nossa carta nos vincula diretamente com as questões que construíram e ajudaram a definir a identidade teológica cristã. Foi do embate entre as muitas e diferentes interpretações de Jesus e seus ensinamentos que se constituiu a identidade daquilo que hoje conhecemos como cristianismo. Por trás das palavras de nossa carta está a experiência de fé de muitos e diferentes tipos de cristianismo que buscaram interpretar sua experiência com o legado de Jesus.
Nossa perícope, 2 Pedro 1.16-21, discute a autoridade dos ensinamentos recebidos a respeito de Jesus. Esses ensinamentos afirmam que Jesus é o filho de Deus. Como prova disso, o autor assegura que os acontecimentos ocorridos no alto do monte (transfiguração) e voz de Deus a afirmar que Jesus é seu filho amado são provas irrefutáveis da sua divindade. Essa é a verdade a respeito de Jesus. Ele é o Filho de Deus!
Embora, como a pesquisa indicou, o autor pudesse estar cronologicamente e, bem provável, geograficamente distante do ocorrido, ele considera que os ensinamentos que recebeu vieram por meio do próprio Jesus Cristo. Pelo poder de Deus (1.3) os olhos de Pedro são agora os olhos do autor. Pelo poder de Deus o monte sagrado está onde as pessoas ouvirem a voz dos ensinamentos dos apóstolos e crerem que ela revela a verdade a respeito de Jesus.
3. Meditação
Epifania é um convite para orientar nossa fé a partir dos olhares que nos precederam e testemunharam a revelação de Deus em Jesus. Epifania é um convite para reorientar o que aprendemos das interpretações dos que nos precederam a partir de nossas experiências e testemunhos acerca do significado de Jesus para a realidade de nossos dias. Permitir que o passado nos ilumine como a estrela da manhã indica um novo dia pronto para raiar. Permitir que o presente ilumine o passado como o dia revela o que a noite escondeu. Dialética? Não só! Amor, compaixão, solidariedade, perdão? Com toda certeza! Essas são as luzes que iluminam e revelam o rosto de Deus em tempos passados e presentes.
Um olhar panorâmico sobre os textos escolhidos para este domingo nos indica uma convergência significativa em direção à identidade e ao significado da existência de Jesus de Nazaré e o Cristo da fé para a vida e o pensamento cristão de todos os tempos. Em cima dos montes, em meio a luzes e trovões, Deus e Jesus se revelam. Por um lado, os discípulos viram no rosto de Jesus os rostos dos pais de sua fé. Por outro, as primeiras comunidades buscaram na experiência dos discípulos e apóstolos razão e sentido para sua fé em Jesus. Simplificando, a pergunta central é: quem é Jesus para os cristãos ao longo da história?
No entanto, não está em jogo apenas a resposta frente ao questionamento. Ela pode e precisa ser plural. Para muito além das respostas, está em jogo a motivação usada na escolha de fundamentos que constituem cada resposta. Tempo de epifania não é apenas o tempo da revelação. É também o tempo de permitir que outros olhares nos revelem e ajudem a encontrar outros rostos de Deus, revelados em Jesus, os quais nós não temos observado por causa de nossas limitações, incapacidades e indiferenças. É tempo de acolher aquilo que foi revelado a outras pessoas em outros tempos e lugares. É tempo de permitir que essa revelação faça sentido em nossas vidas.
O autor de nosso texto propõe que por trás de nosso olhar esteja sempre o olhar daqueles que viram e sentiram Jesus como Filho de Deus. Da experiência dos apóstolos aprendemos que Jesus é o filho amado de Deus. Essa revelação foi diversa. Os rostos de Elias, Moisés e Jesus se mesclaram. A voz de Deus, ouvida em meio aos trovões, confirmou essa mistura reveladora. Essa é a primeira imagem. A segunda imagem deve ter as cores de nossa realidade e experiências de fé. Ela precisa perguntar sobre a relevância e a importância desse Jesus para nossa vida, para nosso tempo, para nosso mundo, para nossas necessidades. Nosso tempo, sociedade, cultura (e nós mesmos) ainda sentem a necessidade de um filho de Deus que se revele? Ou já somos nosso próprio Deus, autorrevelado no espelho de nosso narcisismo?
O autor do texto da Segunda Carta de Pedro, que preferiu esquecer seu próprio nome, nos aponta algo essencial para os dias atuais: a capacidade de ver com os olhos do outro. Ver com os olhos daquele que não pensa, não age, não responde ou vive como eu. Tornar sua a visão do outro. Incorporá-la ao seu jeito de crer, viver e ser. Não ter mais um nome próprio, chamar-se e reconhecer-se de outras formas. Reinventar-se! Neste sentido, epifania não revela apenas o rosto de Deus. Ela revela também o rosto de quem procura o olhar de Deus no espelho de sua Palavra.
4. Imagens para a prédica
Nossos textos são cheios de recursos! Sons, imagens, lugares, montes, pessoas, luzes, trovões, voz dos céus, estrelas da manhã, noites que findam, dias que chegam podem nos oferecer caminhos dinâmicos para a pregação neste domingo de Epifania. Sugiro explorar essas possibilidades com carinho e ousadia.
Convidar a comunidade a relembrar os lugares e montes sagrados da Bíblia. Lembrar que Deus gosta de se revelar de forma e em lugares especiais. Lembrar a sarça ardente, o monte Sinai, o deserto e outros lugares onde Deus se revelou ao seu povo. O texto da pregação nos convida, pela fé, a enxergar aquilo que nossos olhos não puderam e não podem ver. Confiar nas testemunhas que nos contaram por meio da Bíblia que Jesus é o filho amado de Deus. Lembrar que os discípulos foram testemunhas de algo fora do comum. Algo que revelou o amor de Deus por seu filho Jesus e o estendeu a toda a humanidade. Afirmar que agora, Deus escolheu este lugar, este templo, esta igreja, esta comunidade para se revelar a nós.
Aquela velha imagem do avestruz que enterra sua cabeça para não ver o perigo e assim acredita estar salvo pode nos desafiar a falar da maneira como cremos ou descremos das coisas, inclusive daquilo que nos foi revelado na Bíblia. Também podemos utilizar aquelas imagens que, dependendo do ponto de vista, podem nos fazer ver coisas diferentes, todas nítidas e reais, mas que, a princípio, não conseguimos discernir.
5. Subsídios litúrgicos
Penso que nossos textos nos remetem à nossa confissão de pecados. Ela pode partir daquilo que preferimos não ver, omitir, esquecer. Podemos nos perguntar se somos como Tomé, que precisa ver e tocar para crer. Ou se somos capazes de acreditar naquilo que nossos sentidos não captam. Aquilo que aprendemos de nossos pais, padrinhos e da vida em comunidade ainda é norteador de nossas decisões e prioridades? Com que olhar olhamos a realidade que nos cerca?
Contudo, nossos textos nos levam também para a confissão de fé. Ela pode ser uma resposta amorosa ao que nos foi revelado por Deus: Jesus é o seu filho amado, que deu sua vida em resgate por nós. Somos livres para o amor. Não somos mais escravos do pecado. Nossa confissão de fé pode partir das imagens que temos de Jesus. Aquilo que nossos olhos já conseguem vislumbrar.
O anúncio da graça pode ser um convite para enxergarmos a nós mesmos com os olhos de Deus. Somos amados e amadas por ele. Ser visto, notado com amor é libertador e capaz de transformar nossa visão de nós mesmos. Deus vê nossa aflição, a dor da viúva, o sofrimento do seu povo, vem ao nosso encontro para nos libertar da morte e do pecado.
Bibliografia
VOIGT, Gottfried. Die lebendigen Steine. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1973. p. 118-125. (Homiletische Auslegung der Predigttexte, Reihe VI).
CROSSAN, J. D. O Nascimento do Cristianismo: O que aconteceu nos anos que se seguiram à execução de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2004.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).