Proclamar Libertação – Volume 36
Prédica: 2 Reis 2.1-12
Leituras: Marcos 9.2-9 e 2 Coríntios 4.3-6
Autor: Gerson Correia de Lacerda
Data Litúrgica: Último Domingo após Epifania
Data da Pregação: 19/02/2012
1. Introdução
“Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas.” Essa expressão é repetida diversas vezes no Apocalipse. Aparece no final das cartas dirigidas às igrejas da Ásia. Ouvidos servem para ouvir. No entanto, há ouvidos moucos. Não ouvem. Por isso o texto de Deuteronômio 6.4, o Shemá Israel (Ouve, Israel), passou a ser um dos mais preciosos princípios da religião dos judeus: “Ouve, ó Israel: Iahweh nosso Deus é o único Senhor”. Tudo isso se aplica também à visão. Os olhos servem para ver. Contudo, há olhos que não veem. São olhos cegos. Sua cegueira impede as pessoas de ver as manifestações de Deus.
Isso é realidade principalmente em tempos em que ocorrem grandes tragédias. Frente às desgraças que assolam o nosso mundo, a pergunta mais frequente que as pessoas formulam é esta: “E Deus? Onde está Deus?”. O questionamento indica que seus olhos estão impedidos de enxergar onde Deus está e o que Deus está fazendo.
Os três textos bíblicos de hoje abordam exatamente essa questão. Ao escrever aos cristãos de Corinto, Paulo faz referência a indivíduos que não creem porque o evangelho lhes está escondido devido ao fato de que “o deus deste mundo conservou a mente deles na escuridão”. Nas trevas, eles são incapazes de “ver a luz que brilha sobre eles, a luz que vem da boa notícia a respeito da glória de Cristo, o qual nos mostra como Deus realmente é”. Por outro lado, o texto de Marcos apresenta a transfiguração de Jesus. Pedro, Tiago e João tiveram o privilégio de ser testemunhas dela. Foi uma epifania. Manifestou a glória de Deus na pessoa de Jesus de Nazaré. Os três discípulos que a contemplaram ficaram apavorados, sem saber o que dizer. Jesus proibiu que contassem o que tinham visto, “até que o Filho do Homem ressuscitasse”. Sem nada entender, os discípulos passaram a discutir entre si o que queria dizer essa ressurreição. Finalmente, o texto de 2 Reis apresenta o arrebatamento de Elias. Eliseu desejou ter “dupla porção do seu espírito”. Diante desse pedido, Elias respondeu que tal lhe seria concedido com uma condição: “Se me vires ao ser arrebatado da tua presença, isso te será concedido”. Para obter dupla porção do espírito de Elias, Eliseu teria de “ter olhos para ver” a manifestação do poder de Deus.
2. Exegese
1) Ciclo de Eliseu
A Bíblia de Jerusalém coloca a narrativa do arrebatamento de Elias no ciclo de Eliseu. De fato, ela serve para marcar a transição do ministério profético de Elias ao de Eliseu. Fohrer lembra que “a profecia não constitui um fenômeno unicamente israelita ou do javismo. Profetas apareceram em muitas religiões e culturas, incluindo aquelas do antigo Oriente Médio”. Todavia, os israelitas não se limitaram a reproduzir o tipo de profecia de sua época. Ao contrário, como afirma Fohrer, a profecia do Antigo Testamento “transformou aquilo que tomou por empréstimo e preservou em si algo de único e diferente”.
Ora, tal transformação não ocorreu de uma hora para outra. Houve uma transição. Elias e Eliseu representam exatamente esse período de transição do profetismo no Antigo Testamento. Elias atuou no Reino do Norte entre 874 e 852 a.C., sem vinculação a qualquer santuário e solitariamente. Era um profeta errante e não ligado a qualquer guilda profética. Enfrentou as pretensões do rei Acabe de se tornar um monarca absoluto. Defendeu, intransigentemente, a autoridade única de Iahweh tanto contra o rei como contra as divindades siro-palestinenses (genericamente designadas pelo termo “Baal”).
Diferentemente de Elias, Eliseu estava vinculado às guildas proféticas estabelecidas em localidades consideradas sagradas como Gilgal e Betel. A narrativa em que aparece acompanhando Elias até seu arrebatamento serve de introdução a seu ministério, bem como para legitimar a sua autoridade profética.
2) Gilgal, Betel, Jericó (2Rs 2.1, 2 e 4)
A narrativa do arrebatamento de Elias é precedida por uma peregrinação envolvendo essas três localidades. Gilgal não é aquela situada entre Jericó e o rio Jordão, mas a que estava cerca de oito milhas ao norte de Betel. Gilgal e Betel eram locais tradicionais de peregrinação, adoração e sacrifícios (Am 4.4). Nelas e em Jericó estavam estabelecidas guildas proféticas.
3) Não te deixarei (2Rs 2.2, 4, 6)
Tanto em Gilgal como em Betel e Jericó, Elias ordenou que Eliseu o deixasse sozinho. Em nenhuma dessas oportunidades, Eliseu foi obediente. Insistiu, com perseverança, em permanecer até o fim ao lado de Elias. Sua persistência serve para indicar sua profunda ligação com o profeta de Tisbé, com a finalidade de apontar para o fato de que era o verdadeiro continuador de seu ministério profético.
4) Irmãos profetas (2Rs 2.3, 5)
A Bíblia de Jerusalém refere-se aos “irmãos profetas” (2Rs 2.3, 5 e 7). A Tradução de Almeida (Revista e Atualizada) emprega “discípulos dos profetas”, e a Nova Tradução na Linguagem de Hoje usa “grupo de profetas”. Trata-se de comunidades de profetas existentes em determinadas localidades. Formavam confrarias ou guildas. Compartilhavam a mesma habitação (1Sm 19.23). Entravam em êxtase (1Sm 19.20-24). Enquanto Elias desenvolveu um ministério solitário, Eliseu cultivava relacionamentos com os “irmãos profetas”.
5) Manto sagrado (2Rs 2.8, 13)
Elias utilizou seu manto para dividir as águas do rio Jordão, reeditando o milagre realizado por Josué na entrada na Terra Prometida. Eliseu ficou com esse manto após o arrebatamento de Elias. Segundo crenças religiosas da época, vestes de pessoas revestidas de poder divino também ficavam embebidas de tal poder. Assim, a posse do manto por Eliseu atestava ser ele o sucessor do profeta de Tisbé.
6) Porção dobrada do espírito (2Rs 2.9)
O pedido de Eliseu de ter uma porção dobrada do espírito de Elias, longe de ser uma manifestação de ambição do discípulo que pretende superar seu mestre, deve ser entendido no contexto da lei hebraica, segundo a qual o filho mais velho tinha direito a uma porção dupla da herança paterna (Dt 21.17). A solicitação de Eliseu, pois, indica seu desejo de ser o sucessor do grande profeta Elias.
7) Carro e cavalos de fogo (2Rs 2.11)
O fogo aparece com frequência nas manifestações de Deus. É um elemento presente nas teofanias. Foi assim quando Deus se manifestou a Moisés na sarça que ardia sem se consumir, vocacionando-o a ser o libertador do povo escravo no Egito (Êx 3.1-6). Assim também no estabelecimento da aliança no Sinai (Êx 19.16-18) e em outros textos do Antigo Testamento
8) Carro e cavalaria de Israel (2Rs 2.12)
Essa designação foi atribuída a Eliseu pelo rei Joás (2Rs 13.12). O fato de aqui Eliseu utilizá-la dirigindo-se a Elias indica o poder divino de que dispunha o profeta, superior ao das tropas militares dos reis de Israel. Para Eliseu, Elias era o verdadeiro defensor de Israel, e não o aparato militar sob a chefia da autoridade política. Ao mesmo tempo, Eliseu aponta para sua dependência e filiação a Elias, chamando-o de “meu pai”.
3. Meditação
1) Deus se revela
De acordo com o conhecido texto de Hebreus, “antigamente, por meio dos profetas, Deus falou muitas vezes e de muitas maneiras aos nossos antepassados, mas nesses últimos tempos ele nos falou por meio do seu Filho” (Hb 1.1-2). Isso significa que Deus não se esconde nem se distancia do ser humano. Ao contrário, apesar de o ser humano afastar-se dele, Ele toma a iniciativa de vir a seu encontro e se revelar. Revela-se por meio das obras da criação (Sl 19), de atos históricos (Êx 20.1), dos profetas e de seu Filho Jesus Cristo. Assim foi com Elias, profeta que chegou sem aviso prévio e sem maiores explicações (1Rs 17). Ele foi instrumento da revelação divina, contrariando as pretensões absolutistas de Acabe e defendendo a adoração somente a Iahweh.
2) O deus deste mundo não deixa ver a luz que brilha
Essa expressão aparece no texto de 2 Coríntios 4.3-6. O “deus deste mundo” é uma referência a Satanás (Ef 2.2; Jo 12.31). Sua atuação consiste em conservar a “mente das pessoas na escuridão”, a fim de que não vejam a “luz que brilha sobre elas, a luz que vem da boa notícia a respeito da glória de Cristo, o qual nos mostra como Deus realmente é” (2Co 4.3). Foi assim no tempo de Elias. Seus atos poderosos serviam para revelar a vontade de Deus. Todavia, o profeta enfrentou tremenda oposição. Ele mesmo lamentou: “De todos os profetas de Deus, o Senhor, eu fui o único que sobrou, mas os profetas de Baal são quatrocentos e cinquenta” (1Rs 18.22). Chegou a sentir-se um fracassado, a fugir e a pedir a morte a Deus, dizendo-lhe: “O povo de Israel quebrou a sua aliança contigo, derrubou os teus altares e matou todos os teus profetas. Eu sou o único que sobrou, e eles estão querendo me matar” (1Rs 19.14). Elias, assim como Paulo ao proclamar o evangelho, anunciava a luz de Deus. Enfrentou, porém, oposição de toda sorte. O “deus deste mundo” sempre atuou e atua ainda hoje para impedir que vejam a “luz que brilha”.
3) Eliseu acompanhou aquele que anunciava a luz até o fim
A narrativa do arrebatamento de Elias serve de introdução ao ministério de Eliseu. Nela, destaca-se o apego de Eliseu a Elias. Em três oportunidades, Elias ordenou que Eliseu o deixasse. Nas três ocasiões, Eliseu permaneceu resoluto na sua decisão de não abandonar Elias. Tinha chegado o tempo de Elias sair de cena. Seu ministério de “revelação da luz que brilha” estava terminando. Era a hora da separação. Todavia, Eliseu demonstrou profundo apego a Elias. Não o abandonou até o final. Com isso demonstrou sua lealdade e apego ao profeta de Deus que o antecedeu. Demonstrou, também, o desejo de ser o seu sucessor, na continuidade do ministério que desenvolvera.
4) Olhos para ver
Elias foi obrigado a curvar-se diante da obstinação de Eliseu. No momento final, antes de ser arrebatado, autorizou-o a pedir o que quisesse. Eliseu respondeu dizendo que queria tão somente ser o seu sucessor direto com uma porção dupla de seu espírito. Foi nesse momento que Elias afirmou: “Pedes uma coisa difícil; todavia, se me vires ao ser arrebatado da tua presença, isso te será concedido; caso contrário, isso não te será dado” (2Rs 2.10). É muito interessante essa resposta. Alguém escreveu: “Se você tiver olhos para ver a carruagem do Senhor, então a sua prece será respondida”. Era isso o que tinha de ocorrer com Eliseu, se realmente desejasse ver o seu difícil pedido ser atendido: ele tinha de ter olhos para ver.
Esse episódio que encerra o ministério de Elias pode ser comparado a uma narrativa do ministério de Eliseu. Tudo aconteceu quando o rei da Síria estava em guerra contra Israel. Irado contra Eliseu, enviou uma grande tropa de soldados com cavalos e carros de guerra para prendê-lo. Um empregado de Eliseu viu-os e sentiu-se perdido. O profeta, porém, afirmou que as tropas que o defendiam eram mais numerosas do que as do rei da Síria. Parecia um absurdo. O empregado não via tropa alguma em defesa do profeta. Nesse momento, Eliseu orou dizendo: “Ó Senhor Deus, abre os olhos do meu empregado e deixa que ele veja!” (2Rs 6.17). Deus respondeu à oração de seu profeta. Os olhos do empregado abriram-se, e ele viu que, ao redor de Eliseu, o morro estava coberto de cavalos e carros de fogo. Eliseu teve olhos para ver. Contemplou a luz do Senhor no arrebatamento de Elias. Teve a mesma ventura de Pedro, Tiago e João, que também a viram no monte da transfiguração.
5) A luz do Senhor continua a brilhar
Nosso mundo está em trevas. Contudo, a luz do Senhor continua a brilhar. Temos de ter olhos para ver. Como povo do Senhor, em meio às vicissitudes da vida terrena, necessitamos de discernimento para ver onde Deus está atuando e o que Ele está realizando. O Senhor atua na história. Seu projeto de estabelecimento de seu reino está em andamento. Precisamos enxergar sua atuação e ser companheiros de Deus em sua obra.
4. Imagens para a prédica
1) Vou ficar contigo até o fim do jogo
“Elias tentava separar-se de Eliseu desde Gilgal… Mas Eliseu foi inflexível. Ele permaneceu ao lado do velho profeta. Num jogo de futebol, vemos os jogadores fazendo o que os técnicos chamam de ‘marcação homem a homem’. Consiste em que cada jogador da defesa fica ‘grudado’ a um jogador do time adversário, não dando espaço para o adversário deslocar-se livremente ou fazer alguma outra jogada. E isso do começo ao fim do jogo. Esse era Eliseu! Ele disse a Elias: ‘Estou na tua cola, meu amigo. Você não vai livrar-se de mim. Vou ficar aqui até o fim do jogo’… Precisamos de alguns Eliseus em nossa vida, não é? Eles nos dão força. Eles são figuras raras. São nossos amigos íntimos. São aqueles que estão conosco, em nosso favor, disponíveis…” (SWINDOLL, C. R. Elias – um homem de heroísmo e humildade. São Paulo: Mundo Cristão, 2001. p. 189).
2) Ver é muito complicado
“Do ponto de vista anatômico e fisiológico, a visão é o mais simples dos sentidos. Na sala de espera dos oftalmologistas, há aqueles pôsteres com cortes transversais do olho, em que a anatomia e a fisiologia são explicadas. Tudo se passa como numa câmara fotográfica. A luz vem de fora, atravessa uma lente e projeta a imagem no fundo do olho. Tendo olhos bons, todos veem igual. Veem igual? Veem nada. Ver é muito complicado. Não basta ter bons olhos para ver. ‘Não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores’, dizia Alberto Caieiro. Édipo tinha olhos perfeitos e não via nada. Tirésias era cego e era o único que via com clareza. William Blake, num curto aforismo, afirma: ‘A árvore que o tolo vê não é a mesma árvore que o sábio vê’… Quem explica é Bernardo Soares: ‘Não vemos o que vemos; vemos o que somos’. Naquilo que vemos estão escondidas as linhas do nosso próprio rosto. ‘Os olhos são as lâmpadas do corpo’, disse Jesus” (ALVES, R. CultoArte – Celebrando a Vida – Tempo Comum. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 57).
5. Subsídios litúrgicos
1) Tu és, Senhor
“Ó Jesus, tu és a luz, mas nós não te vemos. Tu és o caminho, mas nós não te seguimos. Tu és a verdade, mas nós não te buscamos. Tu és o nosso guia, mas nós não te obedecemos. Tu és o nosso Senhor, mas nós não te escutamos. Tu és o nosso Deus, mas nós não louvamos. Não nos repulses por causa de nosso pecado. Tem piedade e perdoa-nos, Senhor” (Oração medieval anônima).
2) Abre-nos os olhos
“Senhor, abre-nos os olhos, para que vejamos o que há para ver. Senhor, abre-nos os ouvidos, para que escutemos o que há para escutar. Senhor, abre-nos os lábios, para que digamos aquilo que há para ser dito. Senhor, abre-nos as mãos, para que mudemos aquilo que deve ser mudado. Senhor, abre-nos ao futuro e faz aparecer no mundo o teu reino!” (Lothar Zanetti).
3) Adoração e contrição
Introductio
Dirigente: (com o templo às escuras) No princípio, o Espírito pairava sobre o caos e Deus disse: ‘Haja luz!’ (acendem-se todas as luzes).
Congregação: E a luz se fez!
Dirigente: Entra, Senhor, nosso Deus, com tua luz, em todos os planos de nossa existência; entra em todas as nossas angústias e alegrias, em nossa esperança e paz; entra em nossa razão de viver; entra e, se quiseres, faze em nós tua morada.
Congregação: São teus a verdadeira luz, a alegria, o poder, a honra, a vitória; porque teu é tudo o que existe nos céus e na terra.
Contritio
Dirigente: Nem sempre compreendemos tua luz.
Congregação: Criamos outras luzes, que brilham e ofuscam na busca de poder, fama e riqueza.
Dirigente: Diante de tantas luzes que não iluminam, recorremos a ti.
Congregação: Querido Deus, acolhe nossos corações contritos e pequenos diante de tua luz!” (Inês de França Bento).
Bibliografia
FOHRER, G. História da Religião de Israel. São Paulo: Academia Cristã e Paulus, 2008.
GRAY, J. I and II Kings – A Commentary. Filadélfia: The Westminster Press, 1970.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).