Proclamar Libertação – Volume 37
Prédica: 2 Timóteo 2.8-15
Leituras: 2 Reis 5.1-3, 7-15c e Lucas 17.11-19
Autor: Norberto da Cunha Garin
Data Litúrgica: 21º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 13/10/2013
1. Introdução
O texto da prédica deste domingo invoca a proximidade entre o apóstolo Paulo e Timóteo, um de seus principais auxiliares na obra evangélica. Ele já o havia advertido de que não deveria envergonhar-se pelo fato de seu amigo e companheiro estar preso em Roma, como também não deveria se envergonhar do evangelho que pregava. Mais do que não se envergonhar, o apóstolo reivindica sua solidariedade nos sofrimentos que vem enfrentando na capital do Império. Certamente, a notícia do constrangimento de Timóteo já havia chegado a seus ouvidos (1.7), pois o termo que ele utiliza nessa advertência é muito forte e tem o sentido de inibir uma ação que já estava em andamento (1.8).
O objetivo da epístola é animar o filho na fé a ir a seu encontro, para que o apóstolo lhe passe as últimas orientações pessoalmente. Ele está sentindo que seus dias estão se abreviando e confia em Timóteo para continuar a tarefa. É provável que a epístola tenha sido escrita em 67, pouco antes de sua execução. O texto contempla palavras de advertência e de estímulo, além de elencar conteúdo teológico que deveria ser recordado/recomendado por Timóteo na liderança da igreja. Entretanto, essas orientações parecem referir-se a um período no qual a igreja já havia se desenvolvido bem além da execução de Paulo. Podemos encontrar fragmentos de credos (2.8) que denotam uma sistematização teológica posterior.
É difícil sustentar que Paulo tenha sido o autor direto dessa epístola. Há diversas contradições de linguagem e cronológicas que dificultam a sustentação da autoria paulina. É possível que partes de escritos paulinos tenham sido editados tardiamente por algum de seus discípulos e enviados à igreja como sendo de Paulo. Entretanto, para efeito deste auxílio, vamos tratar o autor da epístola pela alcunha de apóstolo, pois há fortes indícios de que porções desse escrito tenham sido do apóstolo Paulo antes do martírio.
2. Exegese
V. 8 – Lembra-te de Jesus: o apóstolo estimula seu filho a recordar Jesus Cristo, e o acento está sobre o verbo com o significado de trazer à memória; ressuscitado de entre os mortos: não se refere a um evento do passado, mas a uma ação contínua, ou seja, ele não apenas ressuscitou, mas continua vivo e com a capacidade de atribuir vida; da linhagem de Davi: a intencionalidade do texto faz frente às heresias que se faziam presentes no interior da igreja nessa época, especialmente o gnosticismo, que negava a humanidade de Cristo; segundo o meu evangelho: retoma a pregação do apóstolo, mencionada em diferentes momentos (Rm 2.16; Gl 1.11; 2Co 4.3).
V. 9 – Pelo qual estou sofrendo: identifica as inúmeras dificuldades e privações que o apóstolo está passando, muito distintas daquelas da primeira prisão domiciliar (At 28.16); como malfeitor: apesar de ter sido preso pela prática da pregação do evangelho, estava sendo julgado como um criminoso; o termo é
legalmente empregado para indiciar traidores e assassinos, equivalentes aos crucificados ao lado de Jesus; contudo, a palavra de Deus não está algemada: indica que as algemas postas em seus pulsos não se aplicam ao evangelho, e para essa liberdade o apóstolo convoca Timóteo. Essa é a porta pela qual a palavra deverá ganhar o mundo; essas algemas não devem inibir a pregação (2 Co 1.5-7). As algemas são uma maneira diferente de se referir à prisão, mas também apontam para as heresias que tentavam afastar as pessoas simples do acesso ao evangelho. Embora em outra circunstância, o apóstolo faz uma analogia entre as algemas que prendem seus pulsos e a porta que se abre para o evangelho (Gl 4.3). Esse versículo e o seguinte remetem a sofrimentos que poderiam se referir a uma segunda prisão em Roma, não registrada por Atos, em que também não aparece a sua execução; permanece a dúvida: Paulo teria saído ileso de um primeiro encarceramento e preso novamente por acusação de Nero? Não se sabe, mas há essa possibilidade quando solicita a Filemom que prepare uma pousada para ele (Fm 22).
V. 10 – Tudo suporto por causa dos eleitos: o apóstolo está disposto a sofrer pacientemente, porque tem um motivo sublime, por aqueles que foram escolhidos por Cristo; para que também eles obtenham a salvação: a conjugação do verbo denota uma propositura, algo a ser alcançado, obtido; que está em Cristo Jesus com eterna glória: imergir nos sofrimentos de Cristo equivale a ter parte com ele e participar já da sua glória eterna; supõe-se que a parte final deste versículo integrava cânticos da igreja que o apóstolo retoma para memória do filho. É necessário que Timóteo entenda que o sacrifício pelo qual o apóstolo está passando faz parte de seu sofrimento vicário: ele se oferece para que os cristãos tenham a vida. Dessa mesma forma desafia Timóteo a sofrer pelo evangelho, utilizando, inclusive, a mesma palavra em 4.5.
V. 11-12 – Fiel é a palavra: reafirmação da confiança da igreja sobre o evangelho do apóstolo; se já morremos com ele: trata-se de uma condicional que já pressupõe como realidade; de fato, ao abraçar o evangelho, a pessoa já morreu com Cristo; também viveremos com ele: a condicional é a mesma e, portanto, repete-se a certeza da participação na vida dele; é possível supor que esse versículo seja a continuidade do canto eclesiástico, embora prenhe de doutrina paulina (Rm 6.3-11); as condicionais repetem-se até o final da perícope: se perseverarmos, também com ele reinaremos; se o negarmos, ele, por sua vez, nos negará: essa terminologia tratando de negação é característica da redação de Lucas (Lc 9.23; 12.9), seu secretário particular durante a prisão (4.11).
V. 13 – Se somos infiéis, ele permanece fiel: aqui acontece a antítese entre a infidelidade humana e a fidelidade divina manifesta em Jesus Cristo; o tema da fidelidade remete à confiança/impossibilidade de confiança; pois de maneira nenhuma pode negar-se a si mesmo: o tema da negação é retomado como argumento para sustentar a fidelidade de Cristo.
É visível que esses três versículos não fazem parte da peça inicial, que admoestava Timóteo no sentido de ir ao encontro do apóstolo; cresce a suspeita de que se trata de um cântico da igreja nascente, mas que contém teologia paulina; isso já aparece em outras partes do texto paulino (1Tm 1.17; 3.16; 6.15b-16).
V. 14 – Recomenda estas cousas: traduzir o verbo hypomimnesko por “recomendar” não parece corresponder ao sentido original do texto; melhor seria recordar com o significado de relembrar; dá testemunho solene: corresponde a confiar solenemente alguma coisa a alguém; para que evitem contenda de palavras: o sentido é para que se evite guerra de palavras, que se interrompa algo que vem acontecendo e até se proíba esse tipo de ação; refere-se a um tipo de heresia que consistia em fazer longos debates sobre temas do evangelho, sem, contudo, qualquer proveito para a obra de Jesus Cristo; que para nada aproveitam, exceto para a subversão dos ouvintes: tem o sentido de perverter, desmoralizar.
A recordação, no sentido de lembrar-se mesmo, estar ciente, é o tema principal da epístola; as coisas que ele deveria recordar (ou recomendar) seriam as expressões do canto eclesiástico acima citado; essas contendas não serviam para nada e prestavam um desserviço ao evangelho enquanto ele estava prestes a se tornar mais um mártir da causa; a intencionalidade do texto é para que Timóteo tenha não apenas o sacrifício de Cristo Jesus, mas também a teologia expressa no cântico da igreja, presente diante de si.
V. 15 – Procura apresentar-te: tem a noção de persistente, de zelo e carrega a intencionalidade de se colocar à disposição; a Deus aprovado: alguém que alcança uma aprovação depois de prestar uma prova, de ser examinado; como obreiro: alguém que trabalha; que não tem de que se envergonhar: onde não se encontram motivos para constrangimento; que maneja bem a palavra da verdade: como quem traça um caminho reto, sem torturas, sem curvas.
Essa ideia de apresentar-se ou oferecer-se (na versão Almeida Revista e Atualizada) é característica do apóstolo e faz um contraponto entre o oferecimento de si para o pecado e o apresentar-se a si para Deus. Tem o sentido da transformação operada por Cristo Jesus (Rm 6.13; 16; 19; 12.1; Cl 1.22); o manejar bem significa ter pleno zelo pela palavra, sem desviar-se, a fim de que o caminho seja reto, sem curvas.
3. Meditação
Em todos os tempos, a vaidade tende a empanar o objeto da narrativa, no caso, da pregação. Com facilidade nos empolgamos com as técnicas homiléticas e esquecemos o centro de nossa fala: Jesus Cristo e esse ressuscitado/ressuscitando. Entretanto, a advertência do apóstolo é oportuna. Não se trata de pregar um Cristo ressuscitado no passado, preso à história. Muito mais importante do que isso é fazê-lo ressuscitado em nossa realidade concreta. Seu voltar à vida não pode ficar sepultado numa construção concretada pela narrativa evangélica, mas aparecer libertado/libertando no cotidiano das pessoas e das comunidades.
O preço dessa nova vida custou não apenas o sacrifício do Cordeiro de Deus, mas também de uma plêiade de mártires cujos corpos mutilados e destruídos escreveram os fundamentos dessa nova vida. O apóstolo fazia parte dessa plêiade que, além de amargar as algemas da prisão, podia antever seu fim violento. Agora mesmo, quantos estão entregando suas vidas para que a libertação construída pelo sangue de Cristo continue a ser um sinal de novos horizontes onde a exclusão e a miséria são realidades para homens e mulheres. Libertar essa Palavra, na forma de denúncia e anúncio, é um ato de solidariedade, assim como o apóstolo esperava de seu jovem discípulo.
Suportar as perseguições e agruras de nosso tempo é testemunho de fé para que outras pessoas, percebendo a nossa entrega, creiam naquele que a todos liberta por sua obra e pela mensagem que desacomoda e incomoda. Perceber que alguém continua no caminho reto, quando quase todos ao redor se curvam diante da corrupção, é um inferno para quem já entregou sua alma à perdição. Suportar o tempo presente é uma demonstração do poder de Cristo em meio à podridão dos conchavos alcoviteiros.
A fidelidade de Cristo sempre se manifestou e manifestará toda vez que um de seus discípulos disser não à tentação das facilidades do mundo contemporâneo. Mesmo não pensando em recompensas quando cumpre o seu papel, ao fiel está garantida a certeza do reino de Deus, que se estabelece no novo mundo, na comunidade que partilha e no coração do cristão.
Finalmente, a persistência de quem permanece vinculado a Cristo permite manejar, com competência, a mensagem dele que, traçando um caminho reto e seguro, vai rasgando a trajetória de imoralidade que se estende diante dos que abraçaram a fé. Enquanto as corjas safadas escondem a face diante das câmeras de TV, o fiel ergue sua fronte porque faz parte da glória de ter permanecido em Cristo, a despeito de todas as vicissitudes.
4. Imagens para a prédica
Montar um painel com imagens e notícias de movimentos sociais nos quais a comunidade se encontra envolvida. Caso ainda não seja essa a realidade, que seja um painel-denúncia que possa mexer com a consciência da comunidade, desafiando-a ao envolvimento nas lutas sociais. O tom da homilia poderiam ser o envolvimento e a repercussão social do evangelho.
Outra possibilidade seria um painel com fotos e notícias de pessoas comprovadamente envolvidas em escândalos de corrupção como alerta à consciência da comunidade sobre a necessidade de manter um caminho reto (aprovado), a despeito do lamaçal de falcatruas que se multiplicam na atualidade. A homilia
poderia contrapor a facilidade com que as pessoas aderem a práticas prejudiciais à sociedade e a postura do cristão(ã), que assume e se mantém fiel à ética evangélica.
Uma terceira opção seria montar um pequeno “tapete” com fotos e textos sobre os mártires da fé, iniciando com Jesus Cristo. Não necessitaria se ater apenas aos mártires, mas incluir também os reformadores até chegar às lideranças da comunidade que foram responsáveis pelo estabelecimento do evangelho naquele local, tantas vezes com sacrifício e até com perseguições. A homilia poderia enfocar o preço do evangelho, que custou a vida e o sacrifício de tantos irmãos e irmãs, santos de Deus.
5. Subsídios litúrgicos
Oração de adoração:
Ó Senhor, nosso Deus, nós te bendizemos pelo que tu és e por todas as tuas obras. O universo fala do poder e da sabedoria das tuas mãos; a nossa vida fala da tua misericórdia, da tua graça, do teu amor. Nós te agradecemos por nos teres chamado para ser o teu povo; nós te agradecemos por tua igreja. Graças te rendemos por todas as tuas obras. Aceita a nossa adoração, que te fazemos em espírito e em verdade. Oramos em nome de Jesus Cristo, nosso Senhor. Amém (RAMOS, 2006, p. 79).
Invocação:
Do fundo de nossos desencontros, nós te buscamos, ó Deus. Em ti encontramos paz, porque tu és a nossa paz; em ti encontramos amor, porque tu és o Deus de amor; em ti encontramos a vida, porque tu és a nossa vida. Nós te adoramos e suplicamos: liberta-nos das distâncias de nós mesmos, das distâncias do nosso irmão, das distâncias da nossa irmã, da distância do nosso Salvador. Tem misericórdia de nós. Perdoa-nos.
Permite-nos o reencontro da tua face na face do nosso irmão, da tua face na face da nossa irmã. Permite-nos, finalmente, o reencontro de nós mesmos com a tua missão. E, assim, anunciaremos ao mundo o teu reino, o teu poder e a tua glória para sempre. Amém! (RAMOS, 2006, p. 115).
Bibliografia
RAMOS, L. C. Anuário litúrgico 2006. São Bernardo do Campo: Editeo, 2006.
RIENECKER, Fritz; ROGERS, Cleon L. Chave linguística do Novo Testamento Grego. São Paulo: Vida Nova, 1997.
SPAIN, Carl. Epístolas de Paulo a Timóteo e Tito. São Paulo: Vida Cristã, 1970.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).