Foco no cerne do evangelho: Jesus Cristo
Proclamar Libertação – Volume 43
Prédica: 2 Timóteo 2.8-15
Leituras: 2 Reis 5.1-3,7-15c e Lucas 17.11-19
Autoria: Nilo Christmann
Data Litúrgica: 18º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 13 de outubro de 2019
1. Introdução
Uma questão inicial para a pregação é a relação entre os três textos indicados.
Vejamos:
* 2 Reis 5.1-3,7-15c – Traz o relato da cura de Naamã, chefe do exército sírio, que sofria de lepra. A cura se dá através do profeta Eliseu, por sugestão de uma menina israelita, escrava da esposa de Naamã. A história é rica em detalhes. Mostra um homem que precisa superar seu orgulho para recobrar a saúde. Ao final, reconhece o poder do Deus de Israel. Mas faz ressalvas quando se trata de adorá-lo com exclusividade.
* Lucas 17.11-19 – A cura dos dez leprosos é uma das histórias bíblicas mais conhecidas. Uma coisa é ser atendido por Deus diante de um clamor e outra coisa é o reconhecimento e a gratidão que daí resultam ou não. A proporção dos que voltam para agradecer – um em dez – aponta para a fragilidade do ser humano, cuja tendência é lembrar-se de Deus quando “o sapato aperta”.
* No texto previsto para a pregação, Timóteo é exortado a estar bem preparado e a permanecer firme no evangelho, ainda que isso implique sofrimento. O foco deve estar em Jesus Cristo, cuja fidelidade permanece inabalável.
Os três textos fazem alusão a situações de sofrimento: os dois primeiros por doença; o último como consequência do testemunho da fé. A relação mais interessante, contudo, está em apresentar-se diante de Deus ou de quem o represente. Naamã apresenta-se ao profeta Eliseu; os leprosos recebem a ordem de apresentar-se ao sacerdote; Timóteo é exortado a se apresentar diante de Deus. As razões de Naamã e dos leprosos são distintas das de Timóteo. Entretanto, todas apontam para a condição do ser humano. Apontam também para o poder de Deus e para seu propósito com as pessoas.
2. Considerações exegéticas
A perícope já foi abordada no Proclamar Libertação (PL) XV, 23 e 37, descrevendo importantes elementos exegéticos e reflexivos. Um aspecto inicial chama a atenção. Nos PLs XV e 23, o texto é 2 Timóteo 2.8-13; já no PL 37, o texto é 2 Timóteo 2.8-15. Desconhecemos os argumentos para a nova delimitação. Todas as versões bíblicas consultadas terminam uma sessão no versículo 13 e iniciam nova sessão no versículo 14. A conexão com os v. 14 e 15 requer um certo esforço.
Não há consenso de que 2 Timóteo, uma das chamadas cartas pastorais, seja efetivamente de autoria do apóstolo Paulo. Os dados gerais que aparecem na carta não coincidem com as demais notícias sobre a vida e atuação de Paulo. Seja como for, a carta quer de fato representar a teologia paulina, tanto assim que contém formulações de caráter bem pessoal. A menção à avó e à mãe de Timóteo (1.4-5) evidencia e pressupõe convívio próximo. Acima de tudo, importa atentar à mensagem e ao conteúdo da carta, cuja relevância independe de ser o texto efetiva e integralmente da autoria do apóstolo.
Paulo tinha profundo apreço por Timóteo. Conforme Atos 16.1-3, Timóteo era natural de Listra, na Licaônia. Provavelmente, Timóteo é fruto da pregação de Paulo na sua primeira viagem missionária a Listra (At 14.1-6). O apreço é confirmado pelo convite feito a Timóteo para acompanhar Paulo em sua viagem (At 16.3), tornando-se companheiro constante e sendo encarregado de alguma missão específica, onde se fizesse necessário (1Ts 3.2). O teor de 2 Timóteo 2.8-15 corrobora essa proximidade entre o apóstolo e o discípulo.
A questão de fundo das chamadas cartas pastorais é a ameaça representada pelos hereges e pelo gnosticismo. O contexto das jovens comunidades cristãs era “um mundo mágico”. As pessoas pensavam de maneira mítica. “Sinais, milagres e visões eram para eles algo normal” (Dreher, 1983). Em 2 Timóteo 2.17-18, tem–se uma ideia do que o gnosticismo representava para as comunidades, incluindo seus líderes/presbíteros. As palavras dos gnósticos corroíam como um câncer. Entre outras questões, tentavam convencer que a ressurreição já tinha acontecido. As orientações e exortações feitas a Timóteo servem como subsídio e ânimo para que possa cumprir de forma adequada sua função de liderar/pastorear outras lideranças e, por extensão, as comunidades.
A leitura do primeiro capítulo da carta e dos versículos que antecedem a perícope em estudo deixa claro uma construção em espiral. As admoestações e orientações são expostas e retomadas. Os temas se repetem com novas nuança de linguagem e elementos argumentativos. Nesse sentido, 2.8ss representa o ponto alto em termos de densidade teológica. Aqui se expõe o cerne da questão.
O v. 8 inclui fragmentos e afirmações centrais dos primeiros credos cristãos. Aponta para Jesus Cristo, enfatizando a ressurreição e a linhagem davídica, a exemplo do que encontramos em Romanos 1.3-4. “Lembra-te” é imperativo. Ou seja, diante das confusões de conceitos presentes no contexto, cabe focar em Jesus Cristo, conforme o evangelho transmitido pelo apóstolo. A ênfase na ressurreição não é casual, pois o evangelho (v. 9) implica renúncia e sofrimento para aqueles que o anunciam.
Ao que tudo indica, Paulo está preso em Roma. Estava preso como kakourgos, isto é, como malfeitor e criminoso, possivelmente por negar culto ao imperador. A fidelidade ao evangelho tornava os cristãos traidores da pátria romana. As algemas têm sentido literal. Em algumas situações, o preso ficava algemado ao guarda. O apóstolo aponta, a partir do seu próprio exemplo, para a teologia da cruz. Mas o que está em jogo não é uma questão pessoal. A causa é maior. Trata–se da salvação das pessoas (v. 10). Seguidores de Jesus Cristo podem ser algemados. Esse também é o recado para Timóteo. A palavra de Deus, porém, não pode ser presa. Especialmente na perseguição e no sofrimento a mensagem encontra a sua eficácia. O esforço humano (contrário) não é capaz de conter o cristianismo. Se fosse possível, a fé cristã já estaria morta há muito tempo.
Se no início da perícope temos referência a um credo antigo, nos versículos 11 a 13 temos parte de um hino comunitário. Nesse caso, a introdução do versículo 11 – Fiel é esta palavra – equivale a assim como cantamos. A letra do hino reforça o que foi dito anteriormente. Nos versículos 11 e 12 temos três condições, e a cada qual corresponde uma consequência: a) possível alusão ao batismo, assim como descrito em Romanos 6.3-5 – batismo como expressão do morrer para o pecado e viver para Cristo; b) à perseverança corresponde a promessa de reinar com Cristo. Aqueles que permanecem fiéis tornam-se também herdeiros da glória de Cristo (v. 10 e Rm 8.17); c) se as condicionais anteriores apontavam para as promessas, aqui encontramos uma séria advertência, baseada nas palavras de Jesus em Mateus 10.33: Aquele que me negar diante dos homens, também eu o negarei diante do meu Pai, que está nos céus.
O v. 12 poderia induzir a pensar que Deus simplesmente retribui ao ser humano consoante suas ações. O v. 13, porém, rompe com essa lógica aparente. Mesmo na infidelidade humana, a fidelidade de Cristo permanece. As advertências anteriores não permitem, contudo, pensar em graça barata. A exigência que decorre de anunciar o evangelho está dada. Paulo o experimentava na própria pele. Por outro lado, o amor de Deus pelas pessoas, em Jesus Cristo, não tem como condição a fidelidade dessas. Mesmo quando elas falham, a fidelidade de Deus permanece inalterada. Para aquilo que está para trás vale a graça, mediante o arrependimento; para aquilo que está à frente vale a lei.
No v. 14 lemos: Recomenda estas coisas. O sentido do recomendar é o mesmo do v. 8: Lembra-te de. Poderia ser formulado como lembra-lhes destas coisas. Não se trata das coisas ditas anteriormente. Trata-se de orientar com firmeza as lideranças para que evitem palavrório inútil, pois apenas prejudica a comunidade. As contendas causam a katastrophe dos ouvintes. Na tradução, causam subversão ou perdição.
O conteúdo parenético do texto encontra no v. 15 a terceira orientação: Procura apresentar-te a Deus aprovado. Dokimos (aprovado) era o termo usado para indicar a pureza do metal das moedas ou uma pedra que fora cortada e estava adequada para uma edificação. Envergonhar-se é termo recorrente na epístola, assim em 1.8,12,16, evidenciando a construção do texto em espiral. Manejar bem (orthotomeō) é expressão do meio agrícola, relacionado a arar em linha reta. Em suma, o versículo preconiza um obreiro preparado e capaz de expor a mensagem condensada nos versículos 8-13, motivo para a inclusão dos v. 14 e 15 no texto da pregação.
3. Meditação
As cartas pastorais – 1 e 2 Timóteo, Tito – ocupam importante lugar no Novo Testamento. Se as outras cartas paulinas são escritas para orientar e fortalecer as comunidades, as cartas pastorais são dirigidas, em primeiro lugar, para ministros em função de liderança em determinada comunidade ou região. Pode-se dizer que Timóteo era pastor ordenado a partir da imposição de mãos pelo próprio apóstolo (1.6). Mais do que isso, o ministro ordenado era responsável por preparar outras lideranças/presbíteros (2.2).
Cabe lembrar que a igreja cristã incipiente ainda está buscando a melhor forma de organização, também no sentido de situar o lugar dos diversos carismas. A própria nomenclatura não permite deduzir com clareza o que diferenciava um pastor, um bispo e um presbítero. Os atributos que se requer do bispo, em 1 Timóteo 3.1-7, são basicamente os mesmos que se atribuem a presbíteros e a bispos em Tito 1.5-9. Seja como for, fica claro que as lideranças exercem papel fundamental na condução das comunidades. Esse é um pressuposto básico para a leitura e atualização de 2 Timóteo 2.8-15. O primeiro alvo do texto são os guias espirituais da comunidade.
Não obstante, o tempo que nos separa do surgimento das primeiras comunidades e de não estarmos sob o domínio de um imperador romano que pede para ser cultuado como Deus, ainda assim, a palavra dirigida a Timóteo mantém impressionante relevância. Se atualmente os “ruídos” presentes no entorno e mesmo dentro da comunidade colocam em risco o verdadeiro evangelho, então o texto fala diretamente conosco. Da mesma maneira, pode-se dizer que também no presente a clareza doutrinária, a coerência e a capacidade de renúncia de lideranças ordenadas e não ordenadas são decisivas para que a comunidade permaneça fiel a Jesus Cristo.
A realidade religiosa brasileira das últimas décadas aponta, conforme dados estatísticos, para a diminuição dos fiéis das igrejas cristãs históricas e o crescimento impressionante do número de outras denominações cristãs, em especial das chamadas igrejas neopentecostais. Ao mesmo tempo, cresce o número de pessoas que declaram não crer em Deus ou não pertencer a nenhuma denominação. De alguma forma, essa realidade levanta perguntas acerca dos aspectos centrais da mensagem cristã. As hermenêuticas vão do fundamentalismo ao relativismo. A Bíblia presta-se para justificar praticamente qualquer coisa. Como consequência, as pessoas tendem a ficar cada vez mais confusas.
Nesse contexto, 2 Timóteo 2.8-15 ajuda a pontuar aspectos centrais do evangelho:
a) Nas horas mais difíceis e quando as muitas vozes confundem, é hora de manter o foco em Jesus Cristo. O cerne do evangelho é inequívoco. Os ministros e as ministras ordenadas, os presbíteros, as presbíteras e a comunidade cristã olham para aquele que se encarnou (linhagem de Davi), que viveu, ensinou, sofreu morte de cruz por nós e ressuscitou. Ele é a razão de ser da comunidade. Dele provém a boa nova da salvação e dele provém a esperança da vida eterna.
b) O seguimento (discipulado) a Jesus Cristo não inclui a promessa, nesta vida, de ausência de problemas. Inclui, antes, dispor-se a situações de sofrimento e mesmo de martírio. O apóstolo Paulo que o diga! Com o seu exemplo, Timóteo e nós somos admoestados e encorajados a renúncias em nome do evangelho. É teologia da cruz. Quem promete o céu na terra e a vida cristã como “mar de rosas” está longe do centro dos ensinamentos de Jesus.
c) Ao mesmo tempo em que os seguidores de Jesus são admoestados a permanecer firmes em qualquer circunstância, o texto traz um grande alento ao afirmar que a fidelidade de Jesus permanece mesmo quando os líderes tropeçam no caminho. Fica claro que a busca por coerência na vida de fé não resulta em crédito, pois o amor e a fidelidade de Deus são da essência do seu ser. Viver da graça preciosa (Bonhoeffer) implica saber-se perdoado e, ao mesmo tempo, viver sob a prerrogativa de que se o negarmos, ele, por sua vez, nos negará (v. 12).
d) Por fim, em especial, aqueles de nós que ousam pregar o evangelho são chamados a se colocar diante de Deus (procura apresentar-te!) em humildade e na busca constante pelo cerne do evangelho. Essa postura auxiliará ministros/as e lideranças a manter a comunidade focada naquilo que de fato interessa, pois também hoje não é muito difícil deixar-se levar por falatórios, fake news e outras inutilidades, que para nada aproveitam (v. 14).
4. Imagens para a prédica
Várias atividades do cotidiano requerem concentração. Distrair-se por algum motivo pode representar prejuízo para si mesmo e para outras pessoas. Em algumas situações, perder a concentração e o foco pode até mesmo custar a vida. Um exemplo disso é quando estamos na direção de um veículo. Muitas coisas podem nos distrair: dar atenção para alguém que está conosco no carro, buscar determinada música no pen drive, uma bela paisagem ou a curiosidade por algo inusitado. Quanto mais perigosa for uma rodovia, tanto mais será preciso estar focado na direção para não causar um sério acidente.
Também a comunidade cristã e suas lideranças correm o risco de ocupar-se com assuntos de menor importância. Também ali há o risco de colocar tudo a perder. De acordo com cada contexto pode-se exemplificar o que afasta do cerne do evangelho. Pode ser importante mencionar a tendência do ser humano de não querer abrir mão do que lhe convém e de evitar situações desconfortáveis. Mas justamente esse pode ser o preço da fidelidade a Jesus Cristo.
Uma imagem interessante pode ser extraída dos textos bíblicos previstos para o dia. O ser humano procura superar o sofrimento, por exemplo, aquele causado por doenças, assim fizeram Naamã e os dez leprosos. Jesus diz que veio para que os seus tenham vida e a tenham em abundância (Jo 10.10). Ao passo que o texto de 2 Timóteo 2.8-15 remete à renúncia, à teologia da cruz. Como podemos lidar com essa contradição? Possivelmente, essa reflexão despertaria o interesse da comunidade por trazer à tona questões existenciais. Por outro lado, daria possibilidade de aprofundar a razão da esperança cristã, que não se limita a esta vida (v. 10 e 12).
5. Subsídios litúrgicos
Confissão de pecados
Reconhecer diante de Deus a facilidade com que nos desviamos do caminho que ele propõe. Somos especialmente resistentes com aquilo que pede a renúncia de algum benefício ou comodidade. Preferimos perguntar: o que eu ganho com isso? Somos mais propensos a pedir do que a agradecer, assim como os leprosos que foram curados.
Oração geral da igreja
Atentar para que os motivos de gratidão estejam em equilíbrio com as intercessões.
Hinos
Livro de Canto da IECLB: 588 – Quem quer cantar do amor; 320 – Senhor, se tu me chamas.
Bibliografia
DREHER, Martin. A Igreja no Império Romano. São Leopoldo: Comissão de Publicações da Faculdade de Teologia, 1983. (polígrafo).
STAAB, Karl; BROX, Norbert. Carta a los Tesalonicenses, Carta de la Cautividad, Cartas Pastorales. Barcelona: Herder, 1974.
Proclamar libertação é uma coleção que existe desde 1976 como fruto do testemunho e da colaboração ecumênica. Cada volume traz estudos e reflexões sobre passagens bíblicas. O trabalho exegético, a meditação e os subsídios litúrgicos são auxílios para a preparação do culto, de estudos bíblicos e de outras celebrações. Publicado pela Editora Sinodal, com apoio da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).