Prédica: II Coríntios 1.18-22
Leituras: Is 43.18-25 e Marcos 2.1-12
Autor: Nélio Schneider
Data Litúrgica: 7º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 20/02/2000
Proclamar Libertação – Volume: XXV
Tema: Epifania
1. Introdução
A comunidade reunida neste 7° Domingo após a Epifania pode ser convidada, com base nos textos acima, a certificar-se do sim de Deus diante do não do mundo. O sim de Deus é baseado na sua misericórdia e na sua graça, que encontraram em Cristo sua expressão maior e mais consistente. Mas esse sim de Deus não se vê só em Cristo, mas também no apóstolo que anuncia a graça de Deus em Cristo, sendo ele mesmo capaz de refletir a mesma graça. Comum aos três textos, os de leitura e o da pregação, é esse reflexo da atitude graciosa de Deus. Em Isaías 43.25 Deus diz: Mas eu, eu mesmo, sou o seu Deus e por isso perdoo os seus pecados e me esqueço deles. (BLH). Em Marcos 2.5, Jesus assume a mesma postura divina, quando diz ao paralítico: Filho, os seus pecados estão perdoados. (NVI). O mesmo vemos em Paulo, como resultado de sua fala sobre a fidelidade de Deus, em 2 Co 2.10: (…) e aquilo que perdoei, se é que havia alguma coisa para perdoar, perdoei na presença de Cristo, por amor a vocês (…). (NVI). Não falam os textos do perdão negligente, relaxado. Trata-se do perdão ativo, exigente de Deus, única atitude eficaz para vencer a negação da vida em nosso mundo. É o perdão que comporta o sim de Deus ao mundo e sua comunidade. A comunidade corpo de Cristo é convidada a ser para o mundo o mesmo reflexo do sim de Deus.
2. Para situar 2 Coríntios 1
Todo o conjunto do que hoje é a chamada Segunda Carta de Paulo aos Coríntios originou-se numa situação de crise de relacionamento entre o apóstolo e a comunidade cristã de Corinto.
Para chegar a uma melhor compreensão do que se passou é necessário fazer uma rápida recapitulação dos eventos, na medida em que se pode reconstruí-los a partir dos escritos que estão à nossa disposição.
Através da atividade missionária de Paulo, Timóteo, Tilo c outras pessoas, estabeleceu-se em Corinto uma das mais vivas c agitadas comunidades cristas daqueles tempos. Houve, desde o começo, dúvidas e questionamentos comuns a uma nova empreitada. Como era seu costume, Paulo não ficava muito tempo em um mesmo lugar. Confiava a edificação da comunidade aos seus próprios membros e seguia adiante. Mas a comunicação ficava mantida através de pessoas que iam e vinham de uma cidade para a outra. As dúvidas foram comunicadas ao apóstolo em Éfeso. Respostas foram oferecidas à comunidade por meio de uma primeira carta mencionada em l Co 5.9 (cujo texto se perdeu) e uma segunda carta, a atual Primeira Carta aos Coríntios. Até esse momento a relação entre Paulo e a comunidade parecia estar em ordem. Havia pontos conflituosos, mas dentro de um limite aceitável.
Em certo momento surgiu uma crise mais forte, em que não se tratava somente de dúvidas sobre questões teológicas e práticas, mas da tentativa de questionar a legitimidade do trabalho do apóstolo Paulo em Corinto. Uma pessoa ou um grupo da comunidade parece ter contestado a autoridade de Paulo e assumido a liderança na comunidade (2 Co 2.5-6). Paulo resolveu então ir a Corinto para verificar pessoalmente o que estava acontecendo. O encontro com a comunidade foi bastante dramático, e, ao que tudo indica, Paulo foi corrido de lá, tendo sido ofendido ou desafiado abertamente por alguém da liderança.
Paulo retirou-se e escreveu uma ou mais cartas de defesa do seu apostolado e de exortação a que a comunidade se reconciliasse com ele. Supõe-se que partes ou a totalidade dessas cartas tenham sido preservadas nos caps. 10-13 e 2.14-7.4 de 2 Coríntios (mais informações quanto à complexa questão literária de 2 Co podem ser consultadas em comentários e introduções; relato aqui sem aparato crítico a posição que me parece mais provável).
Como a situação não apresentou melhoras c a crise entre o apóstolo e a comunidade tendeu a aprofundar-se, Paulo enviou Tilo a Corinto para ver o efeito que suas cartas tinham tido e procurar uma solução para o conflito. Paulo queria que sua autoridade de apóstolo fosse restabelecida e que o culpado por toda aquela celeuma fosse castigado pela comunidade.
Paulo estava tão preocupado e inquieto que não esperou por Tilo em Éfeso nem em Trôade, mas foi ao seu encontro até a Macedônia (Filipos ou Tessalôni-ca) (2 Co 7.6-16). Ali ele encontrou Tito e ficou sabendo que a sua missão tinha sido exitosa. A comunidade de Corinto havia ficado muito chocada com as cartas de Paulo e tomara providências no sentido de restabelecer sua autoridade apos¬tólica e punir a pessoa que o ofendera na qualidade de apóstolo.
Diante dessas boas novidades, Paulo escreve uma carta de reconciliação (2 Co 1.1-2.13; 7.5-16) em que considera finalizado o conflito, declara o seu perdão e aceita a retomada da relação adequada entre a comunidade e o apóstolo que a fundou. É nessa carta que está inserido o nosso texto de pregação (1.18-22). Ele se situa, portanto, na fase de superação do conflito em que se concretiza a reconciliação entre o apóstolo e a comunidade. Seu tom principal é a alegria pela superação do conflito, a proclamação do perdão e a efetivação da reconciliação.
Podemos resumir o conteúdo dessa breve carta da seguinte maneira: após a introdução e ação de graças pelo consolo recebido e por ter escapado ileso de um perigo muito grande (1.1-11), Paulo presta alguns esclarecimentos sobre pontos que causaram mal-estar na comunidade. Ele havia prometido ir a Corinto duas vezes, uma na ida para a Macedônia e a outra na volta de lá (1.15s.), mas em vista da situação tensa resolveu não mais ir, como ele mesmo diz, a fim de poupar a comunidade (1.23). Parece que os coríntios levaram isso a mal e acusaram o apóstolo de dizer uma coisa e fazer outra. Paulo esclarece que houve razões para proceder assim e que, no estado de tristeza e angústia em que se encontrava, preferiu escrever uma carta (2.3s.). Com isso, procura explicar a mudança dos seus planos de viagem e o tom das cartas ou da carta anterior.
A seguir, ele declara o seu perdão à pessoa que o ofendera e pede à comunidade que a trate com benevolência, pois o castigo que sofrera por vontade da maioria já tinha sido suficiente (2.6). Por fim, conta toda a sua preocupação anterior e menciona as circunstâncias em que recebeu a notícia de Tito acerca da reconciliação (2.12-13; 7.5-16), em que predomina a alegria pelo consolo recebi¬do e pela confiança restaurada.
Com isso, situamos concisamente o nosso texto dentro do fluxo de argu¬mentação em que se encontra inserido.
3. O texto de 2 Co 1.18-22
A mudança dos planos de viagem em vista da situação insustentável levantou na comunidade críticas sobre a integridade da palavra do apóstolo (1.15-17). Paulo formula essa suspeita dos coríntios e passa a responder a ela, defendendo a veracidade de suas afirmações. Num primeiro momento, ele apenas retruca às críticas que sofreu por causa dessa decisão. A razão propriamente dita da mudança de planos só é acrescentada no v. 23: Paulo não queria ir para brigar. Preferiu evitar o confronto aberto e usar outros meios para agir em relação à comunidade. Fazendo assim, ele estava agindo conforme a verdade de Deus e adotando o estilo divino.
O argumento de Paulo para refutar as críticas contra sua mudança de planos: ele espelha, na sua atitude, o exemplo de Deus em Cristo (vv. 18s.). O evangelho pregado por ele, por Silvano e Timóteo não continha nenhum aspecto ambíguo, não havia nele o sim e ao mesmo tempo o não. lílc continha o sim incondicional de Deus para os coríntios. Deus fica fiel (v. 18) às suas promessas e as realiza em Cristo (v. 20). Sendo assim, Paulo não poderia agora estar dizendo outra coisa; continua valendo o sim original de Deus, do qual cada palavra de Paulo é uma consequência. Por isso, o apóstolo optou por não ir até a comunidade, pois não queria falar o não de Deus para o que ela estava fazendo (v. 23).
O sim de Deus é confirmado pelo amém da comunidade à palavra do apóstolo, tendo em vista a glória de Deus (v. 20). Deus é a instância decisiva para a nossa fé. A firmeza de fé é obra dele e está baseada no sinal do batismo, aqui representado pela unção (v. 21) e pelo selo de propriedade (v. 22). Esse é o sinal de autenticidade de Deus, o selo de garantia de que o evangelho anunciado é verdadeiro. É nada mais nada menos que o próprio Espírito de Deus colocado nos corações que se oferece como penhor ou garantia de que tudo o que Deus falou por intermédio do apóstolo é verdade (v. também 2 Co 5.5).
Mesmo que as circunstâncias tenham obrigado o apóstolo a mudar seus planos, isso não significa que a verdade do evangelho tenha sido abalada. Esta só depende da fidelidade inquestionável de Deus, o qual não deixa cair uma só de suas promessas. A partir dessa base firme tornam-se viáveis inclusive o perdão mútuo e a reconciliação entre o apóstolo e a comunidade (2.10). Mais ainda: torna-se possível reabilitar aquela pessoa que causou todo o problema (2.8).
Destaques:
a) O empenho do apóstolo Paulo por uma relação justa com a comunidade fundada por ele: é necessário perceber o contexto da mensagem para avaliar o seu alcance. Embora tratando-se aparentemente de uma coisa pequena, como uma visita não cumprida, parece ter sido posta em dúvida, por causa disso, toda a verdade do evangelho.
b) A confiança em Deus e a firme/a de lê não excluem o engajamento decidido e a preocupação sincera pelo trabalho de Deus. Ao contrário.
c) O empenho do apóstolo reflete a autenticidade do sim de Deus pelas pessoas.
d) O sim de Deus, contido no evangelho de Jesus Cristo, leva à possibilidade de novo começo para todos a partir da graça e do perdão divino.
4. Sugestões e impulsos para a pregação e o culto
Sugestão para a pregação é relatar para a comunidade a situação de conflito que levou ao surgimento do texto e apresentar essa situação como um momento cheio de possibilidades de aprendizagem para a comunidade atual. Destacar que a superação de um conflito comunitário está baseada cm dois momentos decisivos: a recuperação da confiança no sim de Deus e a possibilidade do perdão e da reconciliação.
Seja o seu 'sim', 'sim' e o seu 'não', 'não'; o que passar disso vem do Maligno. (Mateus 5.37.)
Ouçam agora vocês que dizem: 'Hoje ou amanhã iremos para esta ou aquela cidade, passaremos um ano ali, faremos negócios e ganharemos dinheiro.' Vocês nem sabem o que lhes acontecerá amanhã! (…) Ao invés disso, deveriam dizer: 'Se o Senhor quiser, viveremos e faremos isto ou aquilo.' (Tiago 4.13-15.)
A parábola dos dois filhos (Mateus 21.28-32).
Ver outros enfoques em Proclamar Libertação (PL) VII, p. 14ss. (Ulrico Sperb), e PL XIII, p. 98ss. (Valdir Frank).
Bibliografia
Os textos do NT são citados de O NOVO TESTAMENTO : Nova Versão Internacional (NVI), 1993, da Sociedade Bíblica Internacional.
COMBLIN, José. Segunda Epístola aos Coríntios. Petrópolis : Vozes, 1991. (Comentário bíblico, NT).
KRUSE, Colin G. II Coríntios : introdução e comentário. São Paulo : Vida Nova & Mundo Cristão, 1994. (Cultura bíblica).
WOLFF, Christian. Der zweite Brief des Paulus an die Korinther. Berlin : Evangelische Verlagsanstalt, 1989. (Theologischer Handkommentar zum Neuen Testament, 8).
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia