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Prédica: Mateus 24.37-44
Leituras: Isaías 2.1-5 e Romanos 13.11-14
Autor: Gerd Uwe Kliewer
Data Litúrgica: 1º Domingo de Advento
Data da Pregação: 02/12/2001
Proclamar Libertação – Volume: XXVII
Tema: Advento

1. Introdução

A perícope de Mt 24.37-44 foi trabalhada pelo colega Martin N. Dreher no volume 21 de Proclamar Libertação. Considero a sua análise de texto e contexto muito útil e não vejo o que acrescentar. Sugiro que o leitor pegue o volume mencionado e leia a parte I (p. 21s) para situar-se no texto. Ele destaca com clareza o escopo: a vinda do “Filho do Homem” em sua glória, o dia do juízo final; ou seja, a fé da comunidade cristã de que um dia virá em que o nosso tempo presente termina e todos estaremos diante do nosso Senhor. O dia em que as pessoas que pertencem ao Filho de Deus são separadas das que não entrarão em seu Reino com ele. E a orientação à comunidade cristã de como aguardar, posicionar-se em relação a esse dia.

Quem quiser abordar esse enfoque principal do texto tem, no auxílio homilético do colega Dreher, orientação suficiente para elaborar a prédica e o culto. Por isso, quero ampliar a meditação em direção a um aspecto secundário do texto: a questão da eleição, da separação entre as pessoas que o nosso Senhor leva para junto de si e as que ficam desamparadas e desorientadas; ou, dito de maneira mais radical, a questão das pessoas “salvas” e das “perdidas”.

A Igreja primitiva, na qual Mateus recolhe e escreve o seu evangelho, tinha, ao lado da consciência de que o tempo atual teria um fim e seria substituído por um tempo novo sob o governo de Jesus Cristo, uma noção muito clara de que a salvação, a participação nesse Reino, estaria reservada àquelas pessoas escolhidas pelo Senhor. Os v. 40s do nosso texto dizem isso com clareza: “Uma será tomada, a outra fica!” Nada se diz, nesses dois versículos, por que uma é tomada e a outra fica para trás. Mas se olharmos para o texto todo e o conjunto da pregação de Jesus, registrada no Evangelho de Mateus, especialmente nos capítulos 24 e 25, pode-se vislumbrar o critério de seleção.

2. Quem fica? Quem é escolhido?

De uma pregação de Lutero de 1532 sobre Mt 24.38s:

Antes do juízo final será assim: as pessoas vão construir, casar, comer e beber e adquirir planos de aposentadoria, e a isto darão prioridade em sua vida, como se não houvesse outra coisa a fazer. Sobre os que agem assim o dia do juízo final virá de repente, como um assalto, e Cristo virá num momento em que não estão preparadas. E quando se sentem bem seguras, mandam o conjunto tocar para o baile, pulam e dançam, estarão, de repente, prostradas no chão queimando. Isto o Senhor Jesus nos anuncia de antemão e quer que o levemos em consideração. As pessoas que desprezam este aviso serão pegas de surpresa. Enquanto constroem sempre mais, casam e preparam casamento, engolem e enchem a cara e se sentem seguras, enxofre e fogo explodirão em volta delas. Assim como foi em Sodoma: comiam, bebiam, bailavam, jubilavam e não davam bola a Ló, da mesma maneira como fazem os nossos cidadãos, agricultores e governantes hoje. Aí Ló disse-lhes: “Deus eliminará vocês com fogo!” Mas eles riam dele dizendo: “O que você fala, bobalhão?” E o que aconteceu? De manhã cedo, ao nascer do sol, o céu escureceu e veio grande tempestade, raios e trovões, e no mesmo momento estavam no inferno. Assim acontece no dia de hoje. Quando os nossos cidadãos, agricultores e governantes ouvem do dia do juízo final, dizem: “Enquanto isso, quero comer e beber e contar o meu dinheiro, até que vem aquele dia!” Mas quando estão no meio dessa contabilidade e satisfazendo as suas vontades, lhes será dito: “Fiquem alertas, o dia do juízo final virá!” E eles responderão: “Não seja bobo! Você acha mesmo que o juízo final virá um dia?” E então irromperá o juizo final como um relâmpago, fazendo noite e dia no mesmo instante. E o que valem então todos os dólares, as casas, os colares e jóias com todo o seu fulgor? (LmdW, 349; tradução do autor, em linguagem atualizada).

Quanto à pergunta “Quem fica, quem é escolhido?”, o próprio texto dá uma resposta geral no v. 44: a pessoa que está “apercebida” será escolhida. A palavra no texto original grego traduzida assim tem um significado bastante amplo: preparado, equipado, realizado, disponível, disposto, decidido, definido, pronto… O adjetivo descreve uma pessoa que está pronta a acompanhar o Senhor Jesus com tudo que ela é e tem, mas também a deixar para trás tudo que a prende e soltar tudo que a amarra. A pessoa que está de plantão, disposta a atender o chamado a qualquer hora, mas que, ao mesmo tempo, está trabalhando ativamente na lavoura ou no moinho. Poderíamos compará-la a uma médica no pronto-socorro, que, enquanto aguarda o próximo chamado para uma cirurgia de emergência, vai circulando entre as camas dos pacientes, verificando a medicação e os curativos, aliviando as dores e consolando os doentes.

No fim do cap. 24 de Mateus, nos vv. 45-51, na parábola do bom servo e do mau, encontra-se a mesma atitude que fará com que uma pessoa fique para trás: dizer que o Senhor demorará para vir e explorar e judiar o próximo.

O capítulo 25 de Mateus dá-nos uma série de pistas para definir as características das pessoas que serão escolhidas. Os vv. 1-13 nos apresentam um exemplo desse “estar apercebido” na parábola das dez virgens. Cinco delas têm combustível de reserva para as suas lâmpadas e estão prontas para receber o noivo quando ele vem. As outras cinco ficam para trás e não têm mais chance de entrar depois. O que seria esse combustível, esse “azeite” que umas têm e as outras não? O combustível alimenta a chama que dá a luz para ver o caminho a seguir. Faz sentido compará-lo à Palavra de Deus, da qual confessamos que é “lâmpada para os meus pés e luz para o meu caminho” (Sl 119.105). Pronta, preparada estaria, portanto, a pessoa que alimenta a semente da Palavra salvadora de Deus, plantada nela no Batismo através do estudo constante da Bíblia e da convivência nas celebrações da comunidade cristã, de maneira que, enquanto o Senhor Jesus Cristo demorar, tenha como manter acesa a chama, irradiando a luz da fé em sua volta.

Mas a pessoa cuja vida na fé cristã se resume ao Batismo e à Confirmação seguramente estará sem combustível na hora da vinda do noivo e ficará para trás.

Na mesma direção, aponta Mt 25.14-30, a parábola dos talentos. O servo que enterrou o seu talento para devolvê-lo intacto ao Senhor Jesus Cristo fica sem nada e é lançado fora, para as “trevas”. As pessoas que multiplicam o dom recebido de Deus no Batismo através do estudo da Palavra e desenvolvem uma vida de serviço na comunidade e na sociedade são chamadas de “servos fiéis” e recebidas no Reino do Senhor Jesus Cristo.

A parábola do juízo final – Mt 25.31-45 – reforça ainda esse critério do serviço. O juiz, no julgamento final, tomará para si aquelas pessoas que se voltaram ao próximo necessitado, pois nele serviram ao próprio Senhor Jesus Cristo. É importante notar que nem perceberam que estavam servindo a seu Senhor. A sua fé, alimentada pelo estudo da Palavra de Deus e fortificada na convivência na comunidade cristã, constrangeu-as a fazer o que fizeram em vista da necessidade e do sofrimento com o qual eram confrontadas. Estão perplexas por serem elogiadas e recebidas no Reino do Senhor. E as outras pessoas, as “condenadas”, estão igualmente perplexas. Parece que querem dizer: Ninguém nos disse que o Senhor Jesus Cristo estava lá!

Podemos olhar, ainda, para o jovem rico (Mt 19.16-24). O que o separa dos “escolhidos” são os seus bens. É esforçado, dedicado, obediente, bem-intencionado, ama a Palavra de Deus, estuda a Bíblia – mas os seus bens o seguram quando o Senhor volta em sua glória. Fica para trás.

Também a parábola dos trabalhadores na vinha (Mt 20.1-16) acrescenta um critério. A “escolha” não é pagamento por serviços prestados! A contabilidade do Reino de Deus é outra. Nele não ganha mais quem trabalhou mais. Todos recebem o mesmo presente: a felicidade de estar junto a Jesus Cristo em seu Reino. E quem começa a fazer cálculos e quer excluir aquele que, na sua opinião, trabalhou muito pouco corre o risco de ficar de fora.

A parábola do grande banquete (Mt 22.1-14) corrobora esse risco de ficar de fora daquelas pessoas ocupadas demais com os seus planos, interesses e suas necessidades. Elas não têm tempo para atender o convite e perdem a chance. Mas a parábola também nos revela outro fato desconcertante. Decepcionado com a falta de interesse dos convivas costumeiros, o anfitrião manda convidar todas as pessoas que estão nas ruas. É claro que não podiam estar todas com roupa de festa. Mesmo assim, o senhor da festa prende e expulsa um que não está adequadamente vestido. Qual é o critério? Será que nem a participação no banquete – a participação na vida da Igreja, na comunhão da Santa Ceia – dá alguma garantia?

O capítulo 23 de Mateus, que espelha o confronto entre Jesus e os líderes religiosos dos judeus, evidencia que aqueles que estão convencidos da sua retidão, que usam a sua posição privilegiada para dominar os outros, que perseguem os “profetas” que contestam a sua dominação, que querem parecer o que não são, certamente não estarão entre os escolhidos.
Haverá aquelas pessoas que têm certeza de serem escolhidas. Jesus fala delas no sermão da montanha, em Mt 7.22: “Quando aquele dia chegar, muitos vão me dizer: Senhor, Senhor, em seu nome anunciamos a mensagem e Deus e pelo seu nome expulsamos muitos demônios e fizemos muitos milagres! Então eu responderei: Nunca os conheci. Afastem-se de mim, vocês que só fazem o mal!” Significa que muita oração e milagres realizados em nome de Jesus não são critérios da escolha? Então não há mérito.

O que resulta dessa pesquisa por critérios? Ficam para trás as pessoas que estão amarradas às coisas do dia-a-dia, às suas necessidades e aos seus prazeres, às festas, aos bens; as que estão voltadas para si sem se preocupar com o amanhã e com o próximo; as que usam a sua posição e o seu poder para dominar as outras pessoas; as pessoas hipócritas; as que acham que não precisam de Deus. Mas também as pessoas que oram muito, “decidiram seguir Jesus”, fazem milagres em nome de Deus, procuram viver responsavelmente, estudam a Bíblia e guardam bem seguro o que receberam de Deus não têm garantia. Parece que fica apenas um critério decisivo da escolha dos que são escolhidos: estar “apercebido”, alerta, acordado, preparado, olhando para fora de si para o próximo, “com um olho na Bíblia e o outro no jornal”.

De uma prédica de Lutero sobre Rm 13.12:

Assim como Cristo é o sol e o Evangelho é o dia, assim a fé é a luz ou a visão e o estar alerta nesse dia. Pois de nada adiantaria o sol brilhar e fazer o dia, se os olhos não percebem a luz. Por isso, apesar de o Evangelho ter raiado e Cristo ter sido pregado em todo mundo, apenas aqueles foram iluminados que o perceberam pela luz da fé e levantaram do sono. Aos que dormem, porém, o sol e o dia não servem para nada, pois não recebem a luz deles (LmdW 400, tradução do autor).

Quem está dormindo não vê a luz do dia. Perderá o destino da sua vida, apesar de Deus ter feito tudo para que o encontre.

3. Reflexões para a pregação

A tentação de dividir as pessoas em dois grupos, o grupo dos que são a favor e o dos que são do contra, acompanha a Igreja cristã desde os seus primórdios. Afinal, Jesus não disse: “Quem não é a meu favor é contra mim, (Mt 12.30)? No Evangelho de Mateus, está muito presente a divisão entre “fariseus” e os seguidores de Jesus. Mais tarde, outros critérios de divisão se manifestaram: judeus e gentios, seguidores de Pedro e seguidores de Paulo, espiritualistas e realistas… Parecia imperativo definir quem era a favor e quem era contra e separar uns dos outros. Sempre houve e há na Igreja grupos que dizem saber como e quem é “um verdadeiro cristão” e dividem as pessoas conforme esse critério. Nada adiantou a igreja luterana declarar em seu documento confessional básico, na Confissão de Augsburgo, “que nesta vida continuam entre os piedosos muitos falsos cristãos e hipócritas, também pecadores manifestos” (artigo VIII da CA), declaração esta que deveria inibir essa ânsia de separar os bons dos maus, os “escolhidos” dos “perdidos” neste tempo em que vivemos. Mesmo assim vivemos, também na Igreja Evangélica de Confissão Luterana, uma constante tentação de dividir as pessoas: entre convertidas e perdidas, tradicionais e renovadas, espirituais e sociopolíticas, corretas e imorais, as que receberam o Espírito Santo e as que não o receberam, as que falam em línguas e as que não têm ou rejeitam este dom… E achamos que Deus respeitará a divisão que fizemos e tomará para si somente aqueles que estão do nosso lado, reservando para as outras o choro e o ranger de dentes na eterna escuridão.

Se o pregador quer enveredar, na sua homilia, pelo caminho acima apontado e abordar a questão dos critérios de escolha do Senhor Jesus Cristo quando Ele voltar em sua glória, ele poderá mostrar que as divisões que nós estabelecemos pouco têm a ver com os critérios que encontramos no Evangelho. Poderá mostrar que o critério fundamental é o estar “apercebido, alerta”: para a pregação da Palavra de Deus, a fim de que ela se torne “luz para os seus caminhos”; para os sinais dos tempos, a fim de que não seja surpreendido; para as necessidades do próximo, a fim de que não passe vergonha no juízo final, perguntando ao Juiz: Senhor, quando foi? E o pregador certamente não omitirá o que Jesus diz no mesmo Evangelho de Mateus no capítulo 13, v. 30: “Deixem que o trigo e o joio cresçam juntos até o tempo da colheita!”

Haverá surpresas naquele dia. Do teólogo Karl Barth relata-se o seguinte episódio: ao lado das suas preleções na Faculdade de Teologia, ele também gostava de fazer palestras nas comunidades. Após uma palestra sobre a questão da ressurreição de Jesus Cristo, chegou-lhe uma senhora piedosa, já de mais idade, e perguntou: “Professor, então é verdade que, quando morrer e ressuscitar, irei rever todas as pessoas queridas com as quais convivi nesta vida?” Ao que Karl Barth teria respondido: “Certamente, certamente, minha senhora. Mas as outras também!”

4. Subsídios litúrgicos

a) No início, leitura responsiva do Salmo 75.

b) A confissão de pecados deverá abordar:
– a nossa compulsão de dividir as pessoas em “os que são a favor de nós” e “os que são contra nós”;
– a tentação de julgar as outras pessoas e de estabelecer critérios para os que “vão entrar no Reino de Deus”, reservando-o para os convertidos, os renovados, os justos, os éticos…
– a vontade de prescrever o que Deus deve fazer e como deve classificar as pessoas;
– em última análise, a vontade de assumir o que compete a Deus somente.

c) Na seqüência da confissão dos pecados, a oração da coleta terá que pedir humildade, disposição para deixar os preconceitos de lado, espírito e ouvidos abertos para o que a Palavra de Deus quer nos ensinar.

d) Sugiro incluir na oração de intercessão todas as pessoas que procuramos excluir da nossa convivência:
– as pretas, vagabundas, preguiçosas, de outra religião, as divorciadas…
– as situações em nosso país em que a divisão entre pessoas causa sofrimento, conflito, luta e guerra: pobres x ricos, pretos x brancos, judeus x palestinenses, comerciantes x camelôs….
– os membros afastados da comunidade, muitas vezes condenados pelos “bons membros”, não devem ser esquecidos;
– muito menos as pessoas doentes, com problemas, com críticas à comunidade ou descontentes;
– e não esqueçamos de agradecer a Deus que ele reservou para si os critérios do julgamento final. Afinal, quem subsistiria se o julgamento dependesse das pessoas?

d) Haverá bênção final melhor do que a de Arão (Nm 6.24s), seguida de: “Ide em paz e servi ao Senhor”?

Citações de Lutero de BEINTKER, Horst: Leben mit dem Wort : Handbuch zur Schriftauslegung Martin Luthers. Erlangen, 1985.

 

Proclamar Libertação 27
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia