Prédica: 2 Pedro 1.16-21
Leituras: Êxodo 24.12, 15-18 e Mateus 17.1-9
Autor: Renato Luiz Becker
Data Litúrgica: Último Domingo após Epifania
Data da Pregação: 10/02/2002
Proclamar Libertação – Volume: XXVII
Tema: Epifania
1. Introdução
No passado, sentia-me um tanto desinstalado quando, em certas rodas, apresentavam-me como teólogo. Lá dentro do peito, entendia-me como não digno de semelhante atributo. Assim, autodenominava-me “pastor operário”. De uns tempos para cá, retrabalhei meu pensamento. Não tenho perfil intelectual, mas, em contrapartida… Já dizia a minha avó: “Quando se tem uma perna curta, a outra é, inevitavelmente, mais comprida.” Agradeço a Deus por toda a irmandade que ele colocou para me ajudar na proclamação dessa libertação. Muito obrigado!
Li os três textos propostos a serem trabalhados nos cultos do Último Domingo após Epifania. Desafio a quem me lê dar uma olhada no que o colega Martin Weingärtner escreve sobre os mesmos. Eu, por meu turno, vou seguir outros caminhos.
Creio que as pontes que ora vou construir podem ser somadas à palavra do colega citado. Imagino que a leitura dos dois textos oportunizará a perspectiva de bem novas idéias para a alocução. Sairá ganhando a comunidade.
2. Minha convicção
Leio, medito e trabalho com a Bíblia desde os idos de 1970. Nessa trajetória, tenho notado que o “sacrifício vivo, santo e agradável” (Rm 12.1) é a marca registrada das pessoas que, num determinado momento da história, foram chamadas por Deus para servir. Esse testemunho simplesmente perpassa a Bíblia de Gênesis até Apocalipse. Os homens e as mulheres que, um dia, assumem um compromisso com Deus, cedo ou tarde, acabam indo para a rua. Ou melhor, pessoas cristãs não agüentam, por muito tempo, o doce aconchego da sala. É no mercado que se ouvem os gritos. Lá, os desafios também são paridos. Coisa boa o debate, a boa palava ousando sobre a não-feliz.
Aqui lembro do irmão Estevão. Ele não baixou seu olhar quando percebeu que tinham articulado uma jogada para retirá-lo de cena, para escantear as idéias sonhadas e geridas pelos poucos cristãos da Comunidade Primitiva. O evangelista Lucas deixou claro que, no final daquele pseudojulgamento, o comentário foi geral: “Vocês viram o seu rosto? Parecia rosto de anjo!” (At 6.15).
No dia em que fui salvo das águas do Rio Pardinho, sentei sobre a pedra. Ali, refleti sobre meu passado e presente. Levei algumas horas para decidir que iria reencaminhar a minha vida. O Grupo de Juventude Evangélica foi o primeiro passo. Ricos foram aqueles primeiros momentos de digestão da Palava de Deus sob a batuta das idéias pietistas. Tais contatos catapultaram-me para a Escola Evangélica de Ivoti. Tempo de ouvir palavras mais bem elaboradas. Momento de uma primeira avaliação e, então, naturalmente, a Faculdade de Teologia. Época de grande agito. Agito que me fez bem. Em Provérbios se lê: “Como o ferro com o ferro se afia, assim também o homem ao seu amigo” (Pv 27.17) . Sofri bom fio naqueles tempos. Assumi minha primeira comunidade com garra descomunal. Os longos anos foram me presenteando experiência, e hoje aqui estou, ainda aprendiz, “aprendiz da esperança”, como bem cantava Milton Nascimento, mas com o rosto marcado.
Por que o parágrafo acima? Para deixar claro que Deus também ousa trabalhar com gente como eu. Tenho consciência de que Deus começou boa obra nesta carcaça. A promessa é que ele vai terminá-la no momento em que lhe aprouver (Fp 1.6). Enquanto esse processo se prolonga, vou dando de mim, bem ou mal, no cumprimento do meu chamado. Não é impressionante? Essa minha verborréia vai no sentido paralelo ao dos personagens bíblicos. Deus chamou Jeremias de dentro de um contexto particular e, mais tarde, fez o mesmo com Lutero. Deus pediu a Abraão que o secundasse e, tempos depois, repetiu a proposta com o Bonhoeffer. Faz dois mil anos que Deus desinstalou Maria e agora, recentemente, abençoou Tereza de Calcutá para o bom testemunho. Em suma, é minha convicção de que nosso compromisso com Cristo brota de um chamado muito claro. E nós, as pessoas que recebemos esse chamado, acabamos não tendo mais saída, senão ir em frente. Lembram do profeta Jonas?
3. Minha motivação
Tu e eu fomos chamados para o serviço, e o alimento de onde garimpamos força esconde-se no Verbo de Deus. Senão vejamos: Moisés subiu ao monte e lá meditou durante sete dias. Ao cabo dos mesmos, viu a glória do Senhor como “um fogo consumidor” e, ato contínuo, trouxe proposta clara para o povo (Êx 24.17). Ora, ninguém pode ir às Escrituras com o intuito de interpretá-las com base em pontos de vista particulares e/ou opiniões pessoais. A boa interpretação da mesma sempre depende da ação do Espírito Santo, que opera lá onde a Igreja está. Daí que a Bíblia só pode ser interpretada à luz do ensino, da crença e da tradição da Igreja. Assim, sou o que sou por causa da minha mãe: a Igreja. Cresci dentro dela e é a partir do que ali vivi que não tenho medo de errar: na carta de 2 Pedro, diante dos hereges, o apóstolo sublinha a segunda vinda de Jesus Cristo.
Seu testemunho é claro, inequívoco e sem rodeios. A que se deve tal postura? Ela se deve ao fato de Pedro ter estado junto ao Mestre no dia em que Seu rosto foi transfigurado. Aquela experiência foi tão forte, que o apóstolo nem quis mais sair dali (Mt 17.4). Quer dizer, Deus o preparou durante a trajetória de sua vida para ver e ouvir, para desfrutar daquele privilégio de poder ser testemunha ocular das Suas ações. Daí que suas falas e seus escritos não tinham base em “fábulas engenhosamente inventadas” (2 Pe 1.16).
4. Minha resistência
Quer dizer, não podemos arredar pé da promessa de Deus. Se fomos chamados, tudo o que fazemos, dizemos ou sofremos é verdadeiro e vem do Espírito da Verdade, que vive na Igreja, no Corpo de Cristo. É assim que, na comunidade, muitas gentes, travestidas da mais pura espiritualidade, tentam nos desdizer e nos difamar em vista de tal afirmação. O fato é que, diante de Deus, não podemos temer falsidade nem mentira. Temos que conviver com o pecado sem ser escravos do mesmo. E é justamente este o exercício que vai nos encorpando para o Reino de Deus, já agora.
O que é que estou querendo dizer com isso? Ora, que a minha doutrina e conduta não estão baseadas na minha pessoa. O que eu faço não o faço por causa de mim. Faço-o, isso sim, por causa de Cristo, o Senhor, de quem me vêm todas as coisas e por cuja vontade prego, vivo e sofro. Além do mais, Deus vai levar tudo a bom termo. Não foi ele mesmo que prometeu dar-nos o Espírito, a coragem para a persistência? Em vista disso, deixo que ele tenha cuidado de mim. Sim, porque o que Deus faz por meio de sua cristandade, isso certamente é pura e absoluta verdade, como bem frisou nosso reformador Lutero.
5. Conclusão
Creio que Deus não descansa no objetivo de nos preparar para assumir compromisso com ele. E o preparo para esse pacto desemboca na esperança que só é viável dentro da Igreja. É ali que nos afiamos, que dialogamos, que crescemos na fé. Lá fora da Igreja está o mercado. Ele é nervoso, porque as pessoas que gritam são nervosas. Nele, as culturas se encontram. Lá ficam evidentes os vazios. E é justamente nesses espaços que Deus sonha intervir. Tu e eu estamos chamados para ir ali. O recôndito do lar não nos faz felizes de fato. Fomos criados à semelhança de Deus para ir ao encontro do próximo. Para dar-lhes de beber e de comer da água e do pão da vida. É a Igreja que nos capacita para essa ação e para esse testemunho. O povo de Israel secundou Moisés para que ele experimentasse Deus na sua vida. Jesus convidou Pedro para que ele pudesse aprofundar-se na proposta cristã. Tu e eu estamos convidados a mergulhar de cabeça na Igreja do Senhor. Como fazer isso? Ousando sob testemunho. Os tempos são de sonorizarmos o amor em equilíbrio da palavra com a ação.
Já vi ruins e bons circos na minha vida. O povo não vai ao circo por causa da grandeza ou do colorido de sua lona. Ele também não vai lá só para ver o elefante ou a girafa. Os trapezistas fazem o espetáculo, mas não são tudo aquilo. A diferença sempre está no palhaço. É ele quem traz vida ao mundo de lona. Ouso dizer que assim também é na Igreja. Nós, os obreiros e as obreiras, somos os palhaços. Podemos atrair ou até afastar as pessoas da arquibancada. Lutamos para que elas fiquem ali. Que venham a crer. Que o testemunho da sua fé brote ao natural na família e na vizinhança. Que experimentem da esperança, como nós a temos experimentado. E para tal, fazemos programas, trabalhamos até não mais poder. São poucos os presbitérios que nos reconhecem. De repente, aqui e ali, entre uma gargalhada e/ou um grito, a Palavra de Deus atinge alguém. Este que foi atingido não mais se contentará em estar na arquibancada. Tentará, isto sim, fazer parte do circo. Pescar pessoas de dentro da sociedade, para que também tenham o privilégio de experimentar o que experimentamos. Não é uma loucura? (1 Co 1.18).
Certa vez, passei pelo Marienplatz (praça central de Munique/Alemanha). Estava chovendo. Ao sair do metrô, abri meu guarda-chuva e logo fui atraído por uma bela melodia. Eu conhecia aquele cântico. A moça cantava uma letra de Lindolfo Weingärtner: “Deus, teu amor é qual paisagem bela…” Parei para ouvir e também conversar. A irmã estava motivada a testemunhar com aquilo que sabia fazer: cantar. Muitos passaram. Já eu e outros paramos. Você até pode dizer que testemunho bom não é dessa forma. Tudo bem! O fato é que assim o Reino de Deus cresce: a partir do testemunho (bem feito ou mal feito) de pessoas comprometidas com Cristo, que, na Igreja, afiam a sua fé…
6. Alocução
Quando na Igreja vivemos o tempo de Epifania, estamos testemunhando que Deus se mostra em Jesus Cristo. Então, para podermos relacionar-nos com Deus, precisamos conhecer o Seu Filho. O acesso a Ele só é possível através da pregação da Palavra e do exercício da Diaconia. Esse testemunho equilibrado entre o verbo e o serviço gera a fé. Agora, quem promove essa ponte? Todas as pessoas que assumiram um compromisso com Jesus Cristo têm capacidade de pregar e/ou agir erm prol de “um novo céu e uma nova terra” (Ap 21.1).
Muito bem, agora agite a Igreja (o circo) e dê de si no sentido de buscar subsídios que facilitem a compreensão do texto de 2 Pedro (palhaço). Que tal, durante a semana, convidar duas ou três pessoas da comunidade para que, dentro da liturgia, compartilhem sobre um momento específico de suas vidas, onde, nitidamente, perceberam a mão de Deus. Visite, converse com essas pessoas. Informe-se sobre os conteúdos de suas falas e, depois, com base no que ouviu de suas bocas e leu nos dois textos, crie ou construa nova mensagem.
Pessoas que experimentaram a presença do Senhor nas suas histórias costumam não falar bobagens. Ouse fazer do culto um momento marcante para a vida dos presentes. O Reino de Deus, com certeza, será acrescido de mais uma estaca.
Bibliografia:
BARCLAY, William. Santiago, I e II Pedro. Buenos Aires : Aurora, 1974. V. 14, p. 349-355.
LUTHER, Martin. Certeza da doutrina. Castelo Forte. São Leopoldo, 14 de outubro de 1983.
Proclamar Libertação 27
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia