Prédica: Mateus 20.17-28
Leituras: Oséias 5.15-6.2 e Efésios 5.8-14
Autor: Martin Volkmann
Data Litúrgica: 4º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 10/03/2002
Proclamar Libertação – Volume: XXVII
Tema: Quaresma
1. Considerações iniciais
Esta é a segunda vez que esta passagem de Mateus é analisada em Proclamar Libertação. No v. 21, também para o 4º Domingo da Quaresma, Roberto E. Zwetsch, apresenta um estudo profundo sobre o tema, que ele inicia com o título “Entre vocês não deverá ser assim”. A seguir, numa nova unidade, ele coloca como título “Vocês sabem que… mas entre vocês é diferente”. Com isso, ele coloca a chave de sua interpretação. Quero associar-me a isso e dizer logo de saída que vejo esse texto sob essa ótica: a vida na comunidade de fé como contraste para o mundo; uma alternativa, uma nova forma de viver comunidade.
Ao dizer isso, quero destacar logo um segundo aspecto, ao qual Roberto também se refere em seu texto. Por Jesus referir-se expressamente aos governantes – inclusive em dois momentos nessa passagem (v. 18s dentro do anúncio de sua paixão; v. 25 na orientação sobre o convívio comunitário) –, estaríamos facilmente tentados a dirigir nosso olhar para fora e tecer considerações sobre a crítica de Jesus aos abusos de poder entre as autoridades governamentais. Sem dúvida alguma, o texto deve ser lido também sob essa ótica, mas como os interlocutores de Jesus são apenas os doze (v. 17; v. 24s), ou seja, na linguagem de Mateus, a comunidade, a Igreja, importa ver, em primeiro lugar, o que essa passagem diz para os muros internos da vida comunitária.
Antes de passarmos a olhar mais de perto o texto em si, ainda algumas considerações de caráter geral. Os três evangelistas sinóticos apresentam os três anúncios da paixão, a primeira parte do texto em questão. Porém, apenas Mateus e Marcos trazem o relato do pedido por um local privilegiado no Reino dos céus para os filhos de Zebedeu. Mateus segue a seqüência narrativa de Marcos, incluindo apenas a parábola dos trabalhadores na vinha antes da terceira predição, retomando assim a questão da riqueza (19.16-30) e já apontando para os novos valores que regem quem vive sob o prisma do Reino dos céus. A seguir, ambos relatam a cura de um/dois cegos em Jericó e a entrada em Jerusalém. Lucas segue bem outra seqüência, incluindo muito material exclusivo.
O texto em questão – Mt 20.17-28 – compõe-se de duas partes, à primeira vista sem conexão entre si: o terceiro anúncio da paixão (vv. 17-19) e o relato do pedido da mãe dos filhos de Zebedeu (v. 20-28). Na realidade, os evangelistas Marcos e Mateus, ao comporem seus relatos nessa seqüência, perceberam a vinculação: ao caminho para o sofrimento e morte do Filho do Homem corresponde o caminho a ser seguido por seu discípulo – “beber o cálice” (v. 22s) – , não obstante a intenção original dessa segunda parte – o pedido por um lugar privilegiado – ser bem outra. Ao protesto dos demais discípulos àquele pedido, Jesus acrescenta a orientação sobre o novo modelo de contraste para a vida em comunidade. Assim, entre essas duas partes há uma dupla vinculação, sendo, portanto, mais do que justificado considerar o conjunto todo como texto de pregação para esse 4º Domingo da Quaresma.
2. A caminho de Jerusalém
Jesus encontra-se a caminho de Jerusalém. Anabaino, que em sentido literal significa “subir”, é termo técnico para a peregrinação em direção ao centro cúltico da época, não indicando aqui que ele já esteja subindo a serra entre Jericó e Jerusalém. Portanto, Jesus, acompanhado de muitas outras pessoas, está a cumprir um ritual religioso, ao qual todo crente judeu estava obrigado ao menos uma vez na vida. Mas, para Jesus, esse ir a Jerusalém não é mero cumprimento desse ritual. Para o Filho do Homem, ele reveste-se de um caráter todo especial: ele insere-se na disposição de colocar-se totalmente a serviço dos planos de Deus. Por isso, ao anunciar em palavra e ação que o Reino de Deus está aí, Jesus sabe que seu caminho necessariamente deve levá-lo ao pretenso centro da administração desse Reino: Jerusalém, seu templo e seus administradores. Logo, isso significa confronto com as autoridades desse centro. Mas, por enquanto, isso interessa apenas ao círculo íntimo dos discípulos – o anúncio da paixão é tratado em particular com eles.
Todo o caminho de Jesus está nos planos de Deus, justamente também o seu final. Isso é expresso aqui pelos dois verbos na voz passiva: paradothesetai – ser entregue – e egerthesetai – ser ressuscitado. Mas isso não significa entrega fatalista a um destino cego, como se Jesus não tivesse assumido conscientemente esse caminho ou como se sua paixão e morte não fossem fruto de sua atuação e do confronto com as autoridades. Significa, isso sim, entrega total e confiante aos planos de Deus, com todas as conseqüências. E isso implica expor-se à reação dos outros. Por isso, entre esses dois verbos na voz passiva, a ação das pessoas aparece unicamente na voz ativa. Mais ainda, para Mateus – diferente de Marcos – os verdadeiros agentes são os sumos sacerdotes e escribas, que o condenarão à morte e o entregarão aos gentios. Esses apenas executam o que os outros de fato decidiram: “para abusar, torturar e crucificar”. Aqui, apenas no terceiro anúncio, aparece pela primeira vez a palavra crucificar. Com isso está plenamente desvendada a estratégia perseguida pelos adversários e que é relatada na seqüência do evangelho (cf. 26.2; 27.26, 31). Mesmo que essa seja a estratégia, a última palavra não será essa, ou melhor, o alvo do caminho de Jesus não é esse. Deus tem a última palavra: “mas no terceiro dia será ressuscitado”.
3. Um pedido estranho e uma resposta à altura
Diferentemente de Marcos, o pedido por um lugar privilegiado no Reino dos céus não é expresso pelos próprios filhos de Zebedeu, mas pela mãe deles. Ainda um outro aspecto diferencia os dois relatos. Enquanto em Marcos os dois chegam pedindo descaradamente algo, aqui a mãe aproxima-se reverente e, só depois de incentivada por Jesus, ousa expressar o pedido. Por que a inclusão da mãe na cena? Para “limpar a barra” dos dois discípulos? Não muda muito, uma vez que a situação deles não fica melhor diante da resposta de Jesus, dirigida a eles, o que deixa transparecer que concordam com o pedido e, segundo Marcos, são os mentores de fato do pedido. Por sua vez, a atitude da mãe não é tão deslavada como a dos filhos em Marcos. A inclusão dela na cena não tem explicação lógica. Como Mateus volta a mencioná-la entre as testemunhas da morte de Jesus (27.56), talvez Mateus queira destacar que ela se encontra entre os seguidores de Jesus que o acompanham a Jerusalém. Na essência, porém, não muda nada no pedido.
Estar sentado à direita e à esquerda nada mais é do que o desejo por grandeza e poder, como se pode concluir do próprio Credo: “está sentado à direita de Deus Pai, Todo-Poderoso”. Portanto, os dois discípulos, além de buscarem uma posição privilegiada em relação aos demais, manifestam com sua atitude um modo de pensar tipicamente humano, mas que não condiz com o discipulado. Além disso, essa atitude é tanto mais estranha, uma vez que, com base na parábola dos lavradores na vinha – a perícope que antecede o nosso texto –, os discípulos já sabem que no Reino de Deus não há privilégios.
Por isso, a resposta contundente de Jesus: “Não sabeis o que pedis”. E ele continua com uma pergunta que, aparentemente, não tem nada a ver com o pedido: “Podeis vós beber o cálice que eu estou para beber?”. “Cálice”, já no Antigo Testamento, tem o sentido de juízo (Sl 11.6; 16.5; Is 51.17, 22; cf. também 1 Pe 4.12) e, a partir do “juízo” a que Jesus se expõe em sua paixão e morte (cf. Mt 26.39; 27.46), o cálice também passa a ser símbolo de martírio. Exemplo claro disso é a oração de Policarpo: “Eu te enalteço que tu me consideraste digno de, entre os teus mártires, participar do cálice de teu Cristo” (Martírio de Policarpo, apud Goppelt, p. 153). Buscando para os dias atuais e considerando o contexto em que surgiu a música – censura –, quem de nós não se lembra daquela música do Chico Buarque: “Afasta de mim esse cálice”. Assim, em lugar da almejada posição de destaque, Jesus anuncia-lhe participação na sua cruz; em lugar de privilégio, desafio a continuar no discipulado: a cruz faz parte do seguimento.
4. Uma reação elucidativa e uma orientação definitiva
A reação dos demais discípulos (v. 24) evidencia que, no fundo, eles não são diferentes. Nessa sua maneira de reagir, eles acabam mostrando que tal ânsia de grandeza e poder marca cada um deles. E por isso eles – e conseqüentemente todos os discípulos em todos os tempos – têm necessidade de se expor sempre de novo ao jeito de ser de Jesus: o desafio ao seguimento no caminho traçado, não em sentido fatalista, mas assumido conscientemente, e a disposição para o serviço. Porque aquela forma de pensar expressa diretamente pela mãe, em nome dos dois, e, de forma camuflada, na indignação dos demais, é o modo de pensar que rege os valores deste mundo (v. 25). “Não é assim entre vós.”
Por isso, na seqüência de Mt 18.1-4, Jesus apresenta-lhes uma orientação fundamentalmente nova, que põe os valores do mundo de pernas para o ar. Essa total inversão de valores é destacada inclusive pela linguagem usada, ou seja, usa-se a linguagem do modo de pensar antigo para expressar o totalmente diferente: “Quem quiser tornar-se grande entre vós, será esse o que vos sirva”. Portanto, não se trata de mostrar um novo caminho ou uma forma mais nobre de “querer tornar-se grande”, mas de abolir na essência o desejo por grandeza. Porque, mesmo o menor ou mais sutil desejo por grandeza, perverte o verdadeiro sentido do serviço. Por isso, o novo jeito de ser iniciado por Jesus e para o qual ele dá a seus seguidores a orientação definitiva aqui é formulado com esses paradoxos: querer ser grande – servir (diakonos); querer ser o primeiro – ser servo (doulos). O termo diakonos, que aparece pela primeira vez aqui em Mateus, caracteriza toda a maneira de ser de Jesus, como fica especialmente evidente no v. 28, onde esse termo, inclusive, é mencionado duas vezes. Já a expressão doulos – o escravo – está em contraposição ao termo kyrios: os discípulos são douloi do Kyrios Jesus (Mt 10.24). E Jesus só é o Kyrios justamente porque toda sua postura foi a de um diakonos. Por isso, o Filho do Homem (termo que aparece no início e no fim da perícope) é a autodefinição de Jesus, que abarca toda a sua vida e atuação: ela foi essencialmente diakonia. Assim, a sua auto-entrega em resgate (lytron) por muitos é o supra-sumo dessa diakonia.
Portanto, essa orientação definitiva de Jesus não visa mostrar uma nova maneira de ser grande, mas, buscando os discípulos nessa sua forma natural de querer ser grandes, coloca essa forma de pensar de pernas para o ar ao estabelecer esse novo princípio de vida. Só assim a vida na comunidade de fé pode tornar-se um contraste para o mundo. Só assim ela pode ser uma alternativa, uma nova forma de viver comunidade. E a partir desse princípio e de seu modo de viver segundo esse princípio, ela também terá a autoridade de questionar a maneira de ser grande e de abusar do poder entre as autoridades fora de seus muros.
5. Pensando na pregação
Estamos na época da Quaresma e acompanhamos Jesus no caminho a Jerusalém. É período de reflexão sobre os passos de Jesus, que o levam à cruz. Nosso texto de hoje compõe-se de duas partes, que, como vimos, formam perfeitamente uma unidade e que nos desafiam à reflexão num duplo sentido: por um lado, o terceiro anúncio da paixão aponta para o fato de que Jesus assume conscientemente sua opção de vida como o caminho de Deus para ele e, por outro lado, como conseqüência dessa opção, a nova proposta de vida comunitária em seu discipulado.
Com relação a esse primeiro aspecto, é importante considerarmos sempre de novo que, pelo fato de anunciar por diversas vezes que, indo para Jerusalém, Jesus vai ao encontro da cruz, ele não está simplesmente seguindo um destino traçado, ao qual inevitavelmente estava exposto. É o caminho de Deus para ele, sim, justamente porque ele leva inevitavelmente ao confronto com todas as demais instâncias e autoridades que querem manter este mundo dominado por outros poderes. Mas é um assumir consciente; é uma postura baseada numa obediência e dependência exclusivas de Deus, que se manifesta numa forma diferente de se relacionar com as pessoas, aceitando-as como elas são, perdoando-lhes os pecados, curando-lhes as enfermidades e, assim, reintegrando-as numa nova comunidade. Por isso, a época da Quaresma é período de reflexão sobre nossa postura, que sempre de novo leva Jesus à cruz. E, simultaneamente, tempo de meditação sobre a entrega total de Jesus ao caminho de Deus, que recria para nós as condições para essa nova vida em comunidade: é sua paixão e morte que sela esse jeito de ser de Deus, que não quer o domínio de outros poderes sobre nós, mas esse senhorio de serviço, de auto-entrega de criação de comunhão.
E, com isso, já estamos no segundo aspecto. Justamente a paixão e morte de Cristo, através da qual somos feitos novas criaturas, também desafia e possibilita a nova vivência na comunidade. A análise do texto nos mostrou que Jesus oferece a seus discípulos uma orientação radicalmente nova: não mais voltada para o alto, mas para baixo. Comunidade de fé é comunidade de serviço. A estrutura da comunidade dos seguidores e seguidoras de Cristo é uma estrutura de serviço, justamente por estar orientada na maneira de ser do próprio Cristo. A estrutura de serviço significa abandono de qualquer estrutura de domínio, de poder. Como concretizar isso na comunidade local? O que significa isso em relação à estrutura maior da Igreja? E como relacionar essa estrutura de serviço com as estruturas de poder fora da comunidade? O que se pode dizer sobre a relação Igreja-Estado?
Sem dúvida alguma, já o vimos na introdução, e a análise do texto o reforçou. Seria desviar a atenção do texto, se muito rapidamente dirigíssemos o olhar para fora dos muros da comunidade/Igreja, apontando o dedo para os desmandos de poder na sociedade em geral. Precisamos ver, em primeiro lugar, de que forma vamos concretizar uma vivência de serviço em nossos próprios meios e, a partir dessa vivência, ser uma comunidade de serviço para o mundo todo. Feito isso e a partir dessa vivência de serviço no e para o mundo, nós também teremos a autoridade para apontar para os desmandos de autoridade e abusos de poder na sociedade em geral. Como despenseiros da multiforme graça de Deus, somos responsáveis por toda a boa criação de Deus. Por isso, não podemos deixar de ser voz profética também nesse sentido. Mas nossa autoridade será tanto maior quanto mais atentamente escutarmos essa palavra de Jesus primeiramente para nós: “Mas entre vós não é assim!”
Assim, a pregação poderia seguir os seguintes passos:
– Época da paixão – momento propício para recordar o caminho de Jesus: assumir conscientemente o serviço (v. 28) que leva necessariamente à cruz; por isso, anúncio da paixão.
– Em contrapartida, nosso desejo natural de grandeza: somos o “anti-Cristo”; somos todos iguais a Tiago e João, bem como aos demais que reclamam.
– Seguimento a Jesus é o caminho da cruz; presença da cruz na vida das pessoas; teologia da cruz. – Sob a cruz e a partir da cruz, uma nova maneira de viver comunidade.
Confesso que não me preocupei muito em buscar relacionar os outros dois textos com esse previsto para a pregação. Por isso, não incluí maiores considerações nas reflexões acima. Limito-me a observar o seguinte: ainclusão do texto de Oséias talvez se deva à referência ao terceiro dia e à idéia do arrependimento que estaria implícita também na mudança de postura, para a qual Jesus desafia seus discípulos. Isso também poderia ser o elo de ligação com Efésios na contraposição entre luz e trevas.
Bibliografia:
Minha principal fonte de inspiração, mesmo sem ter feito as devidas referências no texto, foi o seguinte comentário:
LUZ, Ulrich. Das Evangelium nach Matthäus: Mt 18-25. Zürich/Braunschweig : Benzinger; Neukirchen-Vluyn : Neukirchener, 1997. (Evangelisch-Katholischer Kommentar zum Neuen Testament) Teilb. I/3;
Além disso foram usados:
GOPPELT, Leonhard. Art. pino etc. In: KITTEL, FRIEDRICH (Eds.). Theologisches Wörterbuch zum Neuen Testament. Stuttgart : W. Kohlhammer, 1959. v. VI, p. 135-160.
ZWETSCH, Roberto E. Meditação sobre Mateus 20.17-28. In: SCHNEIDER, Nélio, DEIFELT, Wanda (Coords.). Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1995. v. XXI, p. 96-102.
Proclamar Libertação 27
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia