|

Prédica: Lucas 24.13-35
Leituras: Salmo 16.1-5a e I Pedro 1.17-21
Autor: Jorge Schieferdecker
Data Litúrgica: 3º Domingo de Páscoa
Data da Pregação: 14/04/2002
Proclamar Libertação – Volume: XXVII
Tema: Páscoa

1. Introdução

Na perspectiva de Lucas, a ressurreição de Jesus, as aparições e a ascensão fazem parte integrante do ministério salvífico. Os relatos das aparições, segundo as tradições correntes, são entendidos por Lucas como oportunidades excelentes para clarear o entendimento dos discípulos sobre as Escrituras: “E Jesus lhes disse: Ó homens sem inteligência e de coração lento para crer o que os profetas falaram” (v. 25). Mostram a concretização do novo tempo, a glorificação de Jesus, e querem garantir a consolidação da Igreja em meio a uma realidade adversa.

A aparição de Jesus na estrada para Emaús assemelha-se aos relatos helênicos de aparições de heróis e semideuses, pois possuem um roteiro parecido: reconhecimento, ação e envio. Também lembram as teofanias relatadas no Antigo Testamento, como, por exemplo, Gn 18. 1-33 (Goppelt, p. 250).

Emaús era um lugar sem muito significado. Os discípulos estavam caminhando para um lugar comum. E o que é mais grave, estavam se afastando de Jerusalém. Lugar onde tudo tinha acontecido. Lugar onde estavam os outros discípulos. Lugar onde a Igreja iria nascer. O relato ilustra a realidade da diáspora vivida pelos cristãos, que talvez fosse encarada como uma ameaça à consolidação e ao crescimento da Igreja.

Jesus aparece glorificado, materializado, porém não exaltado. Diferente da experiência de Paulo na estrada de Damasco, onde Jesus é revelado como luz resplandecente, a ponto de cegar o apóstolo (Conzelmann, p. 281).

Lucas deixa transparecer uma tensão existente na compreensão da ressurreição; entre um Jesus revivificado e ressuscitado. De forma que Jesus aparece, reparte o pão, come com os discípulos e logo depois desaparece. “Então abriram-se os olhos deles e o reconheceram, mas ele desapareceu” (v. 31). Mas Lucas não tem dificuldades em conviver com essa tensão (Jeremias, p. 457). O mais importante era dar sustentação à tradição sobre o túmulo vazio, que suscitava dúvidas sobre a ressurreição (Goppelt, p. 250). Inclusive Paulo não menciona, em 1 Co 15.5-8 (tradição mais antiga), o evento do túmulo vazio. Faz menção somente à aparições aos discípulos. A tradição do túmulo vazio seria mais recente, desconhecida de Paulo? Talvez. Sem maiores deduções, melhor é entender que Paulo, em 1 Co 15, teve a intenção de vincular as primeiras aparições à sua experiência na estrada de Damasco.

A perícope em questão tem uma marca litúrgica. Provavelmente nasceu no contexto de adoração e culto da comunidade primitiva. “E aconteceu que, enquanto estava com eles à mesa, tomou o pão, abençoou-o, partiu-o e lhes deu” (v. 30). A comunidade primitiva celebrava a realidade da ressurreição. Ela enxergou a ressurreição. Isto dava sentido, força e coragem para viver e testemunhar sobre Jesus.

Em Lucas, a ressurreição de Jesus não está separada da sua ascensão. Tanto é que cronologicamente é todo o processo de ressurreição, aparições e ascensão apresentado no mesmo dia (terceiro dia). O todo do ministério salvífico de Jesus, que inclui vida e obra, desde a encarnação até a ascensão, marca o início do novo éon, novo tempo escatológico que será vivido pela Igreja no poder do Espírito Santo (Jeremias, p. 468). Jesus ressuscita para seus seguidores. Estes passam a viver uma nova fase, um novo período. A ressurreição de Cristo passa a ser vivida na edificação da Igreja de Cristo. A comunhão dos cristãos é a concretização da ressurreição de Cristo para todo o mundo. Cristo ressuscita para todos por meio de sua Igreja, que resgata essa realidade na celebração em torno da mesa. Em Proclamar Libertação 21, temos mais considerações exegéticas sobre essa mesma perícope. Veja página 125.

2. Mensagem

Para os discípulos que caminhavam na estrada que levava à cidade de Emaús, os fatos ocorridos recentemente com Jesus e os seus seguidores não faziam nenhum sentido: a sua morte, as diversas versões sobre o acontecido e, como se não bastasse isso, ainda havia notícias do desaparecimento do corpo de Jesus, sugerindo que ele tivesse sido ressuscitado por Deus.

Os discípulos lutavam com um turbilhão de pensamentos, fatos, decepções. Nada fazia sentido, e certamente esse caos produzia neles angústia, medo, desalento. “O Império Romano continuava a perseguir os que em Cristo acreditavam. Não permitia que os cristãos abrissem uma nova estrada para o futuro, dando um novo sentido à vida humana.” (Mesters, p. 198).

Para colocar ordem nisso tudo, foi necessário um difícil exercício da razão. Jesus aparece a eles em plena caminhada. No silêncio da estrada, as coisas são colocadas na ordem certa. Jesus explica as Escrituras. Dá sentido aos acontecimentos. Trata-se de um processo longo. Mas a caminhada também é longa. Um exercício de puxar pela memória. Jesus cita o Antigo Testamento.

Mas para resolver isso no íntimo de cada um, não basta entender racionalmente. As palavras de Jesus faziam sentido; mas não era suficiente, precisava mais. Foi fundamental que eles tivessem uma experiência num outro nível. “Não nos ardia o coração quando pelo caminho nos falava e explicava as Escrituras?” (v. 32). Então eles sentiram a presença do Cristo ressuscitado com eles. Ali, partindo o pão, tendo comunhão. Presença de um Jesus glorificado, vitorioso. Novo homem! Pronto para mostrar uma nova realidade que, embora ainda escondida, eles já podiam ver.

Depois desse encontro com o Cristo ressurreto, diz o texto, “eles retornaram imediatamente para Jerusalém” (v. 33), para comungar com os outros seguidores sobre a ressurreição de Jesus. Jesus ressuscita para os discípulos. Ressuscita para ser agora Igreja.

Os discípulos de Emaús já estavam querendo voltar para a sua vida pacata. Depois da experiência de comunhão com o ressurreto, retornaram às pressas para Jerusalém, para junto dos outros seguidores de Jesus, que estavam passando pela mesma experiência. Mudaram seus planos. Estavam prontos para viver a vida na perspectiva da vitória, sobretudo sobre a morte. Viver novidade de vida, na presença do Cristo ressuscitado pela comunhão dos irmãos na fé. Os discípulos ficaram à espera de outros acontecimentos em Jerusalém. A história não termina. Fatos impactantes ainda estavam para acontecer; estes Lucas relata em Atos dos Apóstolos.

O texto diz que os discípulos estavam “como que impedidos de reconhecer Jesus”. Reconhecer Jesus diante de uma realidade tão confusa não é fácil. Haviam todos aqueles impedimentos. Os impedimentos objetivos: a violência dos que exerciam o poder, a perseguição aos discípulos. Os impedimentos subjetivos: o medo, a falta de clareza das Escrituras, a angústia de não poder dominar o caos, a falta de sentido.

3. Impedimentos que não nos deixam enxergar o Cristo ressurreto

Muitas vezes, deparamo-nos em nossa vida com situações semelhantes. Queremos ver sentido nos acontecimentos que vêm sobre nós e que nos impedem de ver ressurreição.

Entre esses impedimentos objetivos está a forma de organização social, política e econômica, com base na ideologia do mercado globalizado. A economia sem coração, diria Jung Mo Sung. Marcadamente injusta e excludente, pela concentração de renda. Podemos também mencionar a falta de segurança nos centros urbanos. As conseqüências desse modelo injusto são conhecidas e retratam uma realidade de morte, obscurecendo a visão, dificultando o vislumbrar da vida nova, do novo tempo.

Os impedimentos subjetivos: angústia de não poder entender a lógica caótica, ressentimentos de não poder fazer nada para mudar a situação, medo gerador de imobilismo e conseqüentemente omissão. Desesperança diante da falta de entendimento das Escrituras. Desespero percebido na vida daqueles que buscam sentido nas mais estranhas propostas religiosas, que apresentam uma ordem mágica para as coisas deste mundo.

4. Enxergando o ressurreto na vida de hoje

A verdade é que para uns este mundo caótico é a melhor ordem; para eles convém que as coisas tenham essa dinâmica. Só que para nós que convivemos com a esperança advinda da ressurreição de Jesus, a ordem das coisas precisa ser outra.

A ressurreição como fato desencadeia nova leitura da realidade. Na comunhão com irmãos e com o Cristo ressurreto e glorificado, temos a possibilidade de ver as coisas de modo diferente. Adquirimos uma forma alternativa de ler a realidade. O mundo passa a ter uma ordem. Não a ordem que a mídia e os poderosos querem incutir em nós. A ressurreição do Cristo faz-nos ver novidade de vida, embora as evidências objetivas apresentem outra versão. “Ressuscitando Jesus dos mortos, Deus… nos fez saber até que ponto, na nossa ação, podemos confiar nessa sua boa vontade para conosco: até o ponto de pode realizar o impossível, ou seja, até o ponto de esperar que possa nascer vida da morte” ( Mesters, p. 201).

Onde podemos ver a ressurreição na vida? Na resistência dos que lutam pela justiça e pelos direitos humanos. Na vida daqueles que lutam por pão, terra e trabalho. Na teimosia dos que insistem na construção de um modelo de desenvolvimento sustentável. No empenho das pessoas comprometidas com o Evangelho que buscam edificar comunidades saudáveis, acolhedoras e fraternas. Na luta cotidiana para fazer valer a esperança, a fé e o amor, valores que podem superar todas as dificuldades subjetivas. São os que “voltam para Jerusalém”. Optam pelo convívio, pela comunhão, pela ressurreição do Cristo no corpo da sua Igreja. Os que enxergam a ressurreição na vivência comunitária, onde o novo tempo vai se tornando realidade. Pelo conhecimento da Palavra de Deus, passam a enxergar uma nova maneira de viver, a partir do projeto de salvação iniciado por Jesus, anunciado pelos profetas e agora vivido por nós, pelo poder iluminador do Espírito Santo.

5. Mostrando aos outros o Cristo ressurreto

A história ainda não terminou. Nós vivemos esse novo tempo. Pela graça de Deus, enxergamos o Cristo ressurreto na vida e, por isso, podemos esperar novidade de vida pela frente. Convém que permaneçamos unidos, celebrando a ressurreição, na expectativa de que mais pessoas se encantem com nossa comunhão e se juntem a nós nessa espera. Somos iluminados pela Palavra e temos a experiência com o Cristo ressurreto na comunhão cristã. Podemos viver nova vida pelo exemplo dos primeiros cristãos, como relata Lucas em Atos 2. 46 e 47: “Todos os dias se reuniam unânimes no templo. Partiam o pão nas casas e comiam com alegria e simplicidade de coração louvando a Deus e tendo a simpatia de todo o povo. Cada dia o Senhor ajuntava-lhes outros a caminho da salvação”.

A ressurreição concretiza-se nas relações solidárias, justas e autênticas que podemos fazer acontecer hoje em nossa vida: em nossa comunidade, no lar, no trabalho. Vidas renovadas podemos fazer acontecer, no convívio fraterno de outros que conspiram nessa mesma esperança. É tempo de viver comunidade. É tempo de viver união. É tempo de viver nova vida.

6. Roteiro da prédica

Ler e relatar a história de Jesus com os discípulos:

1. O que nos impede de ver o Cristo ressurreto.
2. O que nos ajuda a ver o Cristo ressurreto.
3. Ajudando outros a verem a ressurreição.

7. Bibliografia

CONZELMANN, Hans. El centro del tiempo: La teologia de Lucas. Madrid : Zurbano, 1980.
GOPPPELT, Leonhard. Teologia do Novo Testamento: volume I: Jesus e a comunidade primitiva. São Leopoldo/São Paulo : Sinodal/ Paulinas, 1976.
JEREMIAS, Joachim. Teologia do Novo Testamento: a pregação de Jesus. São Paulo : Paulinas, 1977.
MESTERS, Carlos. Deus, onde estás? Curso de Bíblia. 3. ed, Belo Horizonte : Vega, 1972.
PIKAZA, Javier. A teologia de Lucas. 2. ed. São Paulo : Paulinas, 1985.

Proclamar Libertação 27
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia