Prédica: Romanos 4.18-25
Leituras: Oséias 5.15-6.6.5 e Mateus 9.9-13
Autor: Romeu Martini
Data Litúrgica: 3º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 09/06/2002
Proclamar Libertação – Volume: XXVII
Tema:
1. Um pouco do contexto
Paulo estava prestes a visitar a comunidade de Roma, sonho que ele queria realizar há muito tempo (Rm 1.11). Como entre os membros daquela comunidade havia um perigo iminente de desentendimento entre os convertidos do judaísmo e do paganismo, o apóstolo escreveu e enviou uma carta. Assim, antes de ir, preparou o terreno para sua visita. Qual o núcleo do desentendimento entre as pessoas cristãs em Roma?
Para os cristãos convertidos do judaísmo, a observância da lei é que torna as pessoas justas perante Deus; a lei é que as aproxima de Deus (2.17). Por isso, eles diziam ser melhores perante Deus do que os cristãos não-judeus. Paulo, porém, questionou essa afirmação (2.21-23). Para ele, judeus não levam vantagem sobre cristãos oriundos de outros povos. Todas as pessoas são pecadoras (3.9). O fato de alguém dizer que observa a lei não o torna justo diante Deus (3.19-20). Para o apóstolo, a justificação é dádiva, fruto do sacrifício redentor de Jesus (3.24), que precisa ser aceita “mediante a fé” (3.22). Na verdade, Paulo contrapõe “o Cristo Justiça de Deus à justiça que os homens pretenderiam merecer por seus próprios esforços”, segundo o “espírito judaico, com sua orgulhosa confiança na lei” (p. 398).
2. Reflexão à luz do nosso contexto
O reformador Martim Lutero considerou a Carta aos Romanos o núcleo central do Novo Testamento, e o Evangelho expresso em alto e claro tom. Não é, pois, por acaso que foi nessa carta que esse sacerdote encontrou a chave para sair da prisão espiritual, teológica e existencial na qual se sentia enclausurado. “O justo viverá pela fé”, leu ele em Rm 1.17. E Lutero concluiu: Deus é que me declara justo. Não depende dos meus esforços alcançar a condição de justo. A mim cabe receber esse presente através da fé.
Apesar da carta de Paulo, apesar de (re)descobertas como as de Lutero, há uma tendência acentuada de pessoas e núcleos cristãos que insistem na leitura judaica da justificação. Crescem os grupos que enquadram a existência cristã num sistema de códigos legalista. Afirmam, por exemplo: “Você não deve ingerir álcool, não deve fumar; mulheres não devem…; você precisa ser ‘dizimista’; faça nove dias de orações fortes”. E aí segue a máxima: “Se você assim proceder, então….”. Então, virão as soluções! Milagrosamente!
Enquanto isso, Paulo afirmou categoricamente: justo? “Não há justo, nem sequer um” (3.10). E de Lutero temos a doutrina do simul iustus et peccator. Isto é, Deus é quem nos torna justos. Mesmo assim, continuamos pecadores, sempre. Por isso, é que carecemos da sua graça, sempre.
3. Aproximação ao texto de Romanos 4.18-25
A perícope pode ser dividida em duas partes:
1 – vv. 18-22: o acontecido com Abrão;
2 – vv. 23-25: a herança dos romanos (e nossa).
Essas partes podem ser assim interpretadas:
1 – Como Abraão foi justificado (algo “lhe foi imputado para justiça”; ele foi declarado justo, v. 23), pela fé (apesar da sua idade para ser pai e a de Sara para ser mãe, portanto contra toda lógica humana,
Abraão “creu” (v. 18)
“sem enfraquecer [fraquejar, vacilar!] na fé” (v. 19)
“não duvidou da promessa” (v. 20)
estava “plenamente convicto” da promessa de Deus (v. 21)
2 – assim será conosco (os romanos e nós, v. 24):
só que agora essa justificação resulta da fé na ressurreição de Cristo
(v. 24)
quem crê na ressurreição de Jesus, justificado está (v. 25)
Levando em conta os textos paralelos, segundo os quais
a) Deus quer misericórdia, o fruto da fé, e não sacrifício, o fruto da lei! (Oséias),
b) Jesus é misericordioso, pois chamou um coletor e sentou com pecadores (Mateus),
podemos concluir que o indicativo desta perícope é:
– a ação de Deus, que nos declara justos, que nos justifica, que nos torna justos perante Ele –
– a justificação que vem de Deus;
a denúncia desta perícope é:
– que essa justificação jamais será recompensa pela nossa observância de leis e de ritos (circuncisão), nem da nossa condição (idade, fariseu);
o imperativo desta perícope é:
– que, justificados por Deus e confiantes nessa ação, realizemos nossa re-ação: que é a misericórdia (gr. éleos2, Mt 9.13 e Oséias). O fruto da nossa fé é a obediência que se traduz na misericórdia.
4. Caminhando para a pregação
Uma pesquisa realizada sobre culto e cultura (por estudantes do Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Teologia, EST, São Leopoldo) detectou que as pessoas vão ao culto na expectativa de encontrar-se com um Deus que ampara, ajuda, sustenta, carrega, protege. Não é este o núcleo central da chamada teologia da graça?
Então, temos diante de nós um texto para a pregação (com os dois textos paralelos!) que permite reafirmar essa graça de Deus. Daí que proponho os seguintes passos:
1. Cremos num Deus que é companheiro de caminhada. Caminhou com Abraão, com… (citar algum outro exemplo bíblico). Por que ele não caminharia conosco?
2. Onde esse Deus é companheiro de caminhada, a vida com todo seu vigor, aparentemente apagada, “contra a esperança” (v. 18), ressurge. E novas páginas da história são escritas.
3. A possibilidade de sentir-se carregado e amparado por esse Deus jamais será fruto de sacrifícios (Oséias). (E aqui, sem dúvida, dá para falar dos “sacrifícios” que hoje continuam sendo estimulados, sendo cridos. Pesquisa recente, entre pessoas luteranas, detectou que “a salvação vem pelas obras da fé, e não pela fé”. O que isto significa?)
4. Finalmente, a prédica pode apontar o imperativo, através do crivo cristológico: nós “cremos naquele que ressuscitou dentre os mortos a Jesus” (v. 24). Nossa fé tem ali fincada sua raiz. E, em sendo esse o caso, a fé dará frutos – que podem ser as promessas de Deus (v. 20), outrora, para Abraão, e em todos os tempos. E um dos traços mais marcantes do rosto dessas promessas é a misericórdia, fruto da fé enraizada em Jesus, gesto gratuito de quem se sente carregado por Deus, característica maior de todo o ministério de Jesus (Mt 9.13: eleéo!).
5. Recursos litúrgicos
1. Este culto parece ser a ocasião para fazer uma boa acolhida à comunidade. A todas as pessoas da “casa” e visitantes. Pode ser pela equipe de acolhida, por quem preside o culto, por representantes do presbitério. Poderia ser com um gesto marcante, com um símbolo expressivo, com um suco/chá reconfortante. Para quê? Para depois, na prédica, ter presente um bom parâmetro do que pode significar ser acolhido por Deus.
2. É um culto apropriado para articular o elemento litúrgico Kyrie eleison. Há pessoas carregando fardos pesados ali? Pode ser a família enlutada; uma família com um membro enfermo; pode ser …
Há casos desse tipo para os quais não se tem resposta, solução. E temos que ser responsáveis, não criando expectativas falsas de “solução”. Mesmo assim, comunidade cristã vive da convicção de que é o próprio Deus que nos carrega, ainda que demore a esperada “solução”. É tarefa de quem prepara o culto formular bem e expressar bem essa fé, à luz das situações de lamento existentes. Convém incluir um dos cantos do Kyrie.
3. Sendo culto eucarístico (com Ceia do Senhor), os textos bíblicos oferecem uma oportunidade fantástica para formular uma Oração Eucarística (dentro da qual estão aninhadas as “palavras da instituição”), que assume o papel de verdadeira ação de graças pelo que Deus já fez por nós, em outros tempos, e faz por nós, hoje.
Seguindo a estrutura clássica da Oração Eucarística, poder-se-ia construí-la assim:
(P = quem preside o culto; C = Comunidade)
Diálogo ou Salutatio
Prefácio
P: Sim, Deus Criador, é justo que te demos graças. Afinal, do caos fizeste um mundo bonito. Do dilúvio preservaste a semente da vida de todas as criaturas. De Abraão, servo já cansado, fizeste uma grande nação. Através dos profetas quiseste desviar teu povo do mal. Ainda por meio deles pediste o melhor sacrifício, a misericórdia. E, em Jesus, nos redimiste da própria morte. Eis porque cantamos, com todos os anjos, coros e músicos:
Santo (canto)
Anamnese
P: Graças te damos, Deus de Abraão, Isaque e Jacó, porque vieste a nós em Jesus, para nos amparar, para nos carregar, para nos consolar e para nos desviar dos sacrifícios vazios e dispensáveis.
C: Jesus veio nos salvar.
Narrativa da Instituição
P: Por todos esses e outros motivos é que também rememoramos que, na noite…
C: Anunciamos, Senhor, a tua morte, e proclamamos a tua ressurreição. Vem, Senhor, Jesus.
Epiclese
P: Envia, Deus da misericórdia, o Espírito Santo. Que ele nos ajude a crer em ti; que ele transforme e revigore nossa comunidade, para que, partilhando o pão da Vida e o cálice da Salvação, demos testemunho do que cremos.
C: (canta uma frase curta de invocação do Espírito Santo)
Doxologia
P/C: A ti, trino Deus, rendemos toda a honra e toda a glória, agora e para sempre. Amém.
4. Pai-nosso
P: (Costura = comentário breve para introduzir um elemento da liturgia) Porque somos justificados pela fé, estamos livres para caminhar e regar os sinais do Reino de Deus. Melhor saberemos caminhar, se formos juntos. Oremos, por isto, já agora, de mãos dadas.
C: Pai nosso….
5. Este Deus que nos acolhe, ampara, carrega, protege; que nos justifica pela fé somente, é o mesmo Deus que nos envia para articular a re-ação da fé autêntica. Deus nos envia com o imperativo de “nos tornarmos uma grande nação” de gente que ouve e segue a sua voz; que exercita a misericórdia. Como isto pode ser dito e expresso no final do culto, no envio?
Notas:
¹ Baseado em: A Bíblia de Jerusalém – Novo Testamento. 6. ed. São Paulo : Paulinas, 1979. (Introdução geral de: “As Epístolas de São Paulo”).
² O verbo eleéo traduz o clamor do cego Bartimeu (Mc 10.47) e dos dois cegos de Jericó (Mt 20.20-31); o grito dos leprosos (Lc 10.13); o gemido da mulher cananéia (Mt 15.22); a intercessão do pai do jovem possesso (Mt 17.15). Eleéo traduz o clamor de quem grita como última esperança, confiante de que alguém ainda o ouvirá e acudirá (terá compaixão).
Proclamar Libertação 27
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia