Prédica: Romanos 5.6-11
Leituras: Salmo 100 e Mateus 9.35-10.8
Autor: Regene Lamb
Data Litúrgica: 4º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 16/06/2002
Proclamar Libertação – Volume: XXVII
Tema:
1.Introdução
Na série PL volume 24, já encontramos uma exegese e sugestões para pregação sobre o texto de Romanos no mesmo 4º Domingo após Pentecostes. Naquele estudo, a ênfase é dada ao aspecto da reconciliação e do gloriar-se em Deus (p. 197). Quem tiver interesse em aprofundar esses temas pode recorrer àquele estudo.
Eu proponho uma abordagem mais voltada para grupos de estudo e aspectos gerais para uma celebração. Convido para refletir sobre as conseqüências da interpretação sacrificial da morte vicária de Cristo pela humanidade, especialmente para mulheres.
No texto, o tema da morte aparece nos vv. 6 a 10. Confira:
6 – Cristo morreu pelos ímpios, pelas pessoas fracas, carentes da graça.
7 – Alguém morreria por uma pessoa que obedece as leis. Pode ser que morra por uma pessoa boa.
8 – Cristo morreu por nós.
9 – Justificados pelo seu sangue
10 – Deus tornou-nos seus amigos por meio da morte de seu Filho.
Destaco que, no texto original, não é mencionada a cruz de Cristo (como na Linguagem de Hoje); fala-se, sim, que fomos justificados pelo sangue de Cristo (como na versão de Almeida).
Antes de preparar a pregação, considero fundamental estudar o texto em alguns grupos da comunidade para nos aproximar da compreensão que as pessoas da comunidade têm da morte do filho de Deus para trazer salvação.
2. Considerações sobre o tema
Nos últimos anos, várias teólogas apontaram para alguns aspectos que é preciso considerar quando anunciamos o sacrifício do Filho de Deus para a redenção das pessoas. Pois os valores que a tradição dessa teologia sacrificial enfatiza são muito semelhantes àqueles que a sociedade patriarcal pede das mulheres: sacrifício, sofrimento, auto-negação. Além disso, o discurso sobre Deus que deixa o seu Filho inocente morrer na cruz encontra um paralelo no mau uso da autoridade de pais sobre suas filhas e seus filhos. Portanto, essa metáfora reflete a realidade de uma sociedade patriarcal.
Na verdade, na carta de Paulo aos Romanos, a justificação por graça e fé tem suas raízes na livre solidariedade de Deus com os excluídos da história. A tradição enfatizou excessivamente o aspecto do sacrifício de Cristo, o seu sangue derramado na cruz, e ocultou os aspectos históricos e os conflitos com o Império Romano, que estão por trás dessa leitura posterior dos fatos.
A ênfase deverá então ser outra: a da graça de Deus.
Em primeiro lugar, a graça é contra a normatização que faz exigências para reconhecer a dignidade das pessoas. Para as pessoas transformadas pela justiça de Deus, a prática da justiça não é obrigação. A práxis se orienta na lógica da graça, e esta surge espontaneamente, não por obrigação, mas em reconhecimento e a partir do coração, pois o amor de Deus é derramado em nosso coração pelo seu espírito (5.5). Há, sim, consciência do pecado, mas também de que a partir de Cristo, lá onde reina o pecado, a graça é mais poderosa.
Deus é diferente. Sua lógica rompe com o nosso esquema da recompensa “toma lá, dá cá”. Não, simplesmente sem nenhuma prova anterior, sem nenhum merecimento especial, Deus tomou a iniciativa.
Elza Tamez, em seu estudo da carta aos Romanos, propõe uma releitura a partir do contexto socioeconômico, cultural e religioso do primeiro século, tendo como chave de leitura a temática da exclusão.
Aponta para os conceitos teológicos básicos da carta de Paulo aos Romanos: a justiça de Deus e a justificação.
Na leitura tradicional, compreendeu-se a justificação pela fé ou a justiça de Deus como perdão ao pecador e como uma libertação da culpa. Tirando essa afirmação do seu contexto histórico concreto, ela não tem sentido ou é totalmente irresponsável quando não são esclarecidos os aspectos inerentes ao mesmo. Pois o pecado que hoje mata é palpável, bem como as vítimas do pecado podem ser nomeadas. O que mais esperamos é que a justiça de Deus seja manifesta e não que sejam perdoados os devedores, os culpados.
Por que Paulo fala de pecado? Porque é só a libertação do poder do pecado que torna possível a verdadeira vida diante de Deus. Lendo essa interpretação, numa perspectiva feminista, o resultado se agrava.
Na fala da libertação da culpa, parte-se do pressuposto de que culpa corresponde a uma ação criminal. Mas para as mulheres, essa descrição não corresponde.
Se lhes anunciamos a justificação como libertação de culpa, nós devemos perguntar de que culpa estamos falando? De que ela não quer ser a mulher que a sociedade define? Que ela quer ser uma pessoa com identidade própria?
Sabemos que historicamente a mulher foi condenada pelo simples fato de ser mulher, não pelos seus atos.
Para melhor compreender as implicações desse fato, recorremos à definição de pecado feita no Dicionário de Teologia feminista. Esta aponta para a necessidade de reler a interpretação tradicional de pecado como a idéia da arrogância do homem, “da pessoa humana diante de Deus. Esta arrogância quer dizer a presunção tirânica de alguém que acha que não existe mais ninguém acima dele, que acha que não depende de ninguém e que pode salvar-se confiando em suas próprias forças” (p. 384). Esta definição passa ao largo da experiência das mulheres, pois a grande maioria não tem possibilidade de experimentar a arrogância dos poderosos ativamente; antes ela se vê como vítima inocente.
Por outro lado, quando as mulheres iniciaram a expressar o seu desejo de emancipação, foram acusadas de estar querendo ser autônomas e presunçosas.
A justificação por graça e fé deve ir a fundo e analisar as estruturas pecaminosas da sociedade. A ausência de justiça do verdadeiro Deus leva Paulo a teologizar sobre o pecado desde Adão. O Império Romano não era a primeira e única experiência de dominação de todos os povos; por isso, deve haver algo mais profundo dentro da pessoa, que a deixa agir injustamente e a sufoca. Pois, em algum momento, as injustiças se tornam autônomas e conduzem a estruturas sociais pecaminosas, que são incontroláveis e escravizam todas as pessoas.
Paulo não encontra justiça que tenha o selo da verdade. Ele prova o contrário: querem praticar justiça a partir da lei, mas o resultado é injustiça (2. 21-23) O pecado usou para si a boa lei dada por Deus (7.7-13). O pecado estrutural na sociedade patriarcal, violência, exclusão e discriminação são reflexos de uma sociedade doente, que precisa de salvação divina.
Jesus viveu a vida de acordo com a lógica da graça, em favor das pessoas discriminadas. Sua morte na cruz pela humanidade possibilita a constante busca de vivência dessa graça e a afirmação da dignidade para todas as pessoas.
3. Encaminhando….
Relação com o Evangelho: Jesus curando toda sorte de enfermidades, povo doente, cansado, sem rumo.
Envio de pessoas chamadas pelo nome para agir e anunciar.
Somos hoje, mesmo no período pós-pentecostes, pouco corajosos em ações diaconais. Vemos muita gente sem rumo, deprimida. Há poucos espaços para viver a graça. As pessoas, quando precisam de ajuda, sentem-se envergonhadas. A idéia dominante na sociedade é que é um atentado à dignidade aceitar ajuda.
Como ainda estamos no período de Pentecostes, penso que podem ser cantados hinos como:
“Vem ó tu que fazes novos” (OPC)
“Glorificado seja teu nome” (HPD 253)
“Celebrai com júbilo ao Senhor” (Salmo 100)
Sugiro fazer a acolhida na frente da igreja, do lugar da celebração. Enfatizar que somos convidadas a celebrar com alegria.
Fazemo-lo cantando o Salmo 100: “Celebrai com júbilo ao Senhor”.
Entrar no lugar da celebração cantando.
Seguir com a liturgia de entrada.
No Kyrie, lembrar as dores geradas pela falta de reconciliação entre as pessoas, pela falta de graça em nosso mundo, pelas divisões geradas, pelos sacrifícios vãos exigidos, pela compreensão que enfatizou mais o aspecto do sacrifício, da morte, do que o aspecto da libertação trazida.
Deveria ser destacado o aspecto da reconciliação possível; se não é um culto eucarístico, deveria ter pelo menos um abraço da paz.
Reconciliados com Deus podemos buscar a reconciliação entre nós.
Já agora, recebemos a reconciliação.
Quem quiser enfatizar esse aspecto da reconciliação recebida através de Jesus Cristo pode lembrar que, entre as pessoas esta vem depois de um conflito, uma discussão. Sempre ocorrem conflitos e discussões entre as pessoas. Também casais que se amam e monges que vivem num mosteiro discutem. Se conseguimos reconciliar pessoas brigadas, acontece um pouco do céu na terra.
Uma possibilidade seria encenar uma discussão onde nenhuma das partes cede e não acontece reconciliação e depois encenar uma discussão onde uma das partes cede, levando a outra a ceder também. Cuidar para não reproduzir os estereótipos convencionados pela sociedade: sempre deve ceder a pessoa mais jovem, a mulher, a menos poderosa.
Outra possibilidade também é deixar a discussão em aberto, pedindo que as pessoas presentes sugiram um outro desfecho.
Sugestão de oração, que pode ser usada logo após a entrada no lugar da celebração:
Deus,
Deixe-me sentada
Diante de ti,
Te admirar e contemplar.
Deixe-me sentada
Contigo
Com a dignidade que tu me concedes,
Consciente de que tudo é bom.
Deixe-me sentada
Em ti,
Encontrar-me e vivenciar,
Estar inteiramente em ti.
Um recipiente eu quero ser,
Receptiva para as idéias da paz.
Um recipiente para ti, Espírito Santo.
Minhas mãos vazias eu quero estender,
Abertas para abundância da vida.
Mãos vazias para ti, Santo Espírito.
Meu coração eu quero abrir,
Preparado para a força do amor,
Um coração para ti, Espírito Santo.
Terra fértil eu quero ser,
Afofada para a semente da justiça.
Terra fértil para ti, Espírito Santo.
Um leito de rio eu quero ser,
Receptivo para a água da bondade.
Um leito de rio para ti, Espírito Santo.
(tradução livre de: Brigitte Enzner-Probst e Andrea Felsenstein-Rossberg, Wenn Himmel und Erde sich berühren, Güt;ersloh, 1993, p. 46-47)
Bibliografia
SCHOTTROFF, Luise. Die Lieder und das Geschrei der Glaubenden : Rechtfertigung bei Paulus. In: JANSSEN, Claudia, SCHOTTROFF, Luise, WEHN, Beate. Paulus: umstrittene Traditionen – lebendige Theologie. Gütersloh, 2001. p. 44-66.
TAMEZ, Elza. Der Brief an die Gemeinde in Rom – Eine feministische Lektüre. In: SCHOTTROFF, Luise, WACKER, Marie-Theres. Kompendium Feministische Bibelauslegung. 2. Aufl. Gütersloh, 1998. p. 557-573.
Proclamar Libertação 27
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia