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Prédica: Romanos 5.12-15
Leituras: Salmo 69.1-3a,5,8,10,14a e Mateus 10.26-33
Autor: Dirk Oesselmann
Data Litúrgica: 5º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 23/06/2002
Proclamar Libertação – Volume: XXVII
Tema:


1. Introdução

Paulo, tendo ouvido falar muito da antiga Igreja de Roma, famosa no mundo inteiro por sua fé (1.8) e já objeto de perseguição desde a época do imperador Cláudio (49 d.C.; cf. At 18.1s), tem um desejo muito ardente de compartilhar com aqueles irmãos eleitos a fé e os dons espirituais (1.11-13). Com a Carta aos Romanos, ele pretende apresentar-se àquela Igreja, composta de cristãos de origem judaica e pagã, antes de sua visita, e expor extensivamente a sua comprensão da “Boa Nova”. Contudo, a carta não trata de todos os assuntos da fé nem esgota todo o pensamento teológico de Paulo. Em Romanos, ele retoma muitos dos assuntos de Gálatas, mas fora daquele contexto polêmico e num clima mais reflexivo e calmo. Podemos considerá-la uma dissertação sobre o assunto da observância da lei mosaica, com a qual os “falsos irmãos” (2 Co 11.26; Gl 2.4) iam perturbando as comunidades cristãs e certamente também a Igreja de Roma. Nela, Paulo deixa claro que a justificação e a salvação do homem não dependem das “obras da lei”, mas sim da fé em Jesus Cristo, que morreu por nós, manifestando a grandeza do amor do Pai.

2. Comentário exegético

Contexto

A perícope 5.12-15 necessita ser colocada no contexto do cap. 5, para que possa revelar melhor seu sentido e seu papel na argumentação de Paulo.

5.1-21: tendo Paulo demonstrado, nos primeiros quatro capítulos, que a justificação do homem vem de Deus pela fé em Jesus Cristo e não pela circuncisão ou qualquer obra da lei, começa agora a tratar da “nossa” experiência cristã de como a salvação é garantida a nós, “que acreditamos naquele que ressuscitou dos mortos a Jesus, nosso Senhor” (4.24).

Quanto à função do cap. 5 na estrutura literária da Carta aos Romanos, há diferentes opiniões: a) ele seria a conclusão de toda a primeira parte (1.18-5.21) sobre o tema da justificação; b) ele seria a introdução da segunda parte, que trata da situação da pessoa justificada e de sua salvação (5.1-8.39); c) 5.1-11 terminaria a primeira parte, enquanto 5.12-21 introduziria a segunda; d) o cap. 5 seria uma unidade isolada. A nosso ver, se argumentações foram encontradas para sustentar essas hipóteses, é porque todas elas refletem algo de verdadeiro contido no texto. Com efeito, o cap. 5 pode ser dividido em duas partes, que se integram numa estrutura unitária, que tem função de elo entre os capítulos que precedem e os que seguem.

Primeira parte (vv. 1-11)

“Tendo sido, portanto, justificados pela fé…” A primeira parte é uma conclusão ou continuação da argumentação antecedente (1-4): é pela fé naquele que ressuscitou Jesus dos mortos que somos justificados, pois Jesus, nosso Senhor, foi entregue pelas nossas ofensas e ressuscitado para a nossa justificação (4.24-25). A justificação é o motivo do nosso viver em paz com Deus. O uso da primeira pessoa no plural nessa primeira parte mostra o que a justificação significa para nós, os crentes, em nossa vida cotidiana. Nós fomos, por intermédio de Jesus Cristo, introduzidos na esfera da graça de Deus (cf. Ef 2.18; 3.12), na qual permanecemos firmes e, por isso, podemos s alegrar-nos, gloriar-nos, podemos jubilar e exultar, porque ela é motivo e fundamento da esperança de um dia participarmos da glória de Deus. Mas o cristão exulta também nas tribulações, porque elas levam à mesma esperança. Uma coisa é agüentar ou suportar as tribulações sem reclamar, outra é saber encontrar no meio delas motivo para exultar e se gloriar. É uma exortação, mas também é o próprio testemunho da luta de Paulo, como indica a seqüência das palavras tribulações-perseverança-fidelidade provada-esperança. A esperança é fundamental em nossa caminhada, para que possamos prevalecer na peleja do dia-a-dia rumo à glória. E ela não decepciona, porque está enraizada no amor de Deus, que, por meio do Espírito Santo, foi derramado em nosso coração. Paulo quer ajudar-nos a contemplar o imperscrutável mistério.

Não podemos duvidar desse amor, após a extraordinária, incrível demonstração que Deus nos deu: Cristo morreu pelos ímpios, no lugar deles (cf. Gl 3.13; também v. 7). O acontecimento histórico da morte de Jesus tem um significado teológico de sofrimento substitutivo: ele morreu por nós e por todos os ímpios, em nosso lugar e em lugar de todos.

Para dar mais força à sua afirmação e ressaltar ainda mais a grandeza do amor de Deus e da morte de Jesus, o apóstolo argumenta, trazendo o exemplo contrário num crescendo: dificilmente por uma pessoa justa, talvez por uma pessoa boa… (v. 7). Isso para dizer: já pensou o que Jesus fez por nós? Já pensou que grande demonstração de amor foi essa por parte do Pai? Essa demonstração permanece brilhando para sempre. Jo 3.16-17 é o melhor comentário para este versículo. Ele não se entregou por sermos judeus ou gregos, ricos ou pobres, mas simplesmente pecadores, e isso sem supor nada em troca. É um amor absolutamente gratuito.

Em outras palavras, depois de ter Deus realizado esse inefável mistério, ou seja de nos justificar pelo sangue de Cristo, que morreu por nós, quando éramos ainda pecadores, imagine se ele não vai agora levar a cumprimento a obra da nossa salvação! A salvação, portanto, diz respeito aos bens futuros, os bens escatológicos: a glória (v. 2) e a vida eterna (v. 21).

O v. 11 tem função de inclusão e quer expressar o ápice da glória e do júbilo dos fiéis, nós, que exultamos em Jesus, exultamos nas tribulações e exultamos também em Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor, pelo qual obtivemos a reconciliação. E essa reconciliação, que recebemos “agora”, está projetada ardentemente para sua consumação “futura”, por ser ela penhor do que ganharemos depois.

Estrutura

A nosso ver, as duas partes do capítulo têm ambas uma estrutura concêntrica, que segue a abertura do tema. Por motivo de espaço, temos que limitar nossa análise à segunda parte. Junto com a estrutura, vai aqui também uma proposta de tradução:

12 Por isso, como por um só homem o pecado entrou no mundo e pelo pecado a morte, assim também a morte atingiu todos os homens; nisso (nele?) todos pecaram…

A – 13 Com efeito, até a lei (chegar), o pecado já estava no mundo, embora o pecado não seja imputado quando não há lei, 14 contudo, a morte reinou de Adão até Moisés, também sobre os que não pecaram da mesma forma da transgressão de Adão, o qual é figura daquele que havia de vir –

B 15 Mas [o que acontece] com a ofensa certamente não é o mesmo que com o dom! Se, com efeito, pela ofensa daquele único [homem], os demais morreram, muito mais a graça de Deus e a dádiva [concedida] pela graça daquele único homem, Jesus Cristo, superabundou para os demais.

C 16 Também não [acontece] com o benefício como pelo [castigo de] um só que pecou. Com efeito, a sentença a partir de um só [conduziu] à condenação; ao passo que o dom a partir de muitas ofensas [conduziu] à justiça.

D 17 Se, com efeito, pela ofensa daquele único, a causa daquele único (!), a morte reinou, muito mais os que recebem a abundância da graça e a dádiva da justificação reinarão na vida por meio daquele único, Jesus Cristo.

C1 18 Assim, pois, como pela ofensa de um só [chegou-se] à condenação de todos os homens, assim também pela justiça de um só [chegou-se] à justificação que traz vida para todos os homens.

B1 19 Com efeito, como pela desobediência daquele único homem os demais foram feitos pecadores; assim também pela obediência daquele único os demais serão feitos justos.

A1 20 Mas a lei infiltrou-se, para que proliferasse a ofensa, mas onde proliferou o pecado, superabundou a graça,

21 para que como o pecado reinou na morte, assim também a graça reine, por meio da justiça, para a vida eterna por Jesus Cristo, o Senhor nosso.

Texto

V. 12 – O v. 12 abre a segunda parte deste capítulo, enunciando o assunto. Por isso… A conjunção faz a ligação com tudo o que tem sido apresentado até agora, levando em conta não somente os v. 1-11, mas também os capítulos anteriores, quanto ao pecado de todos (3.9) e à justificação por intermédio de Cristo (4.25). A começar deste versículo até 7.25, Paulo vai expor a tríplice libertação: da morte, do pecado e da lei.

Como por… Paulo começa uma comparação que descreve a situação do homem antes e depois de Cristo, mostrando as conseqüências da desobediência de Adão e as da obediência de Cristo. Mas os contínuos acréscimos devidos à riqueza de seu pensamento, pois ele quer realçar a superabundância da graça de Cristo, que reina em lugar do pecado e da morte, tornam a comparação mais difícil de ser acompanhada. E tem mais, parece que ele não dá o segundo termo de comparação, que, entretanto, indiretamente permanece óbvio. A comparação seria a seguinte: como o pecado entrou no mundo por intermédio de Adão (e com ele a morte, que atinge todos os homens), assim também, por intermédio de Cristo, veio a justificação (e a vida eterna para todos os homens; cf. também 1 Co 15.21-22). Em lugar disso, ele faz algumas colocações sobre o pecado, a morte e a lei, que afetam o paralelismo, para recomeçar o mesmo no v. 15. O resultado é outro paralelismo, que lembra do paralelismo hebraico e o jeito rabínico de fazer midra, pois chega a concluir sua argumentação, afirmando que todos pecaram, com um raciocínio ao qual não estamos acostumados. De qualquer maneira, essa colocação, ou seja a contraposição/comparação entre Cristo e Adão, é sem dúvida o objetivo do v. 12. Isso é o pressuposto para afirmar depois que Cristo é o único que traz a justificação de Deus para toda a humanidade. A comparação, portanto, é baseada sobre um paralelismo antitético para mostrar o contraste entre Adão e Cristo. Adão é a cabeça da humanidade pecadora; Cristo é a cabeça da humanidade justificada. Mas a antítese será desenvolvida nos vv.15-17, sublinhando a incomensurável superioridade do benefício de Jesus em contraposição ao dano de Adão. Isso será repetido com paralelismo antitético e palavras sinônimas também nos vv. 18-19. E a ênfase sobre isso é tão grande, que a expressão “um só (homem)” retorna onze vezes em apenas cinco versículos! O contraste entre “um” e “todos” realça a universalidade da influência envolvida. Refletindo sobre a história da queda do homem no Gênesis, Paulo utiliza a verdade teológica que ali se encontra: a escravidão da humanidade por causa do pecado. O caráter etiológico da narração do Gênesis aponta para o pecado como causa da miséria geral da humanidade (dor, aflição, divisão, morte). A desobediência de Adão arremessou no mundo uma força ativa e nefasta. O pecado é apresentado como um poder mau personificado e inimigo de Deus, que afasta dele os homens. O paralelismo volta no v. 20, mas a oposição é entre lei e graça.

O pecado entrou no mundo: o pecado é personificado e apresentado como que vindo de fora para se introduzir no mundo da humanidade. Deixa a impressão de um personagem que abre a porta do mundo e nele entra vitorioso e satisfeito. Contudo, Paulo não se detém nos detalhes para explicar a origem do mal. Só quer afirmar o domínio do pecado e da morte espiritual como condenação definitiva, antes da justificação pela morte de Cristo. Em Sb 2.24 encontra-se a expressão “pela inveja do Diabo a morte entrou no mundo”. Lá também a referiência é obviamente ao Gênesis. Mas, como fica claro logo em seguida, a palavra “morte” tem dois sentidos: 1) a morte espiritual como afastamento de Deus e ruína eterna; 2) sua conseqüência, a morte física como separação da vida no tempo. O texto seguinte (Sb 3.1-10) também pode ser colocado lado a lado com o cap. 5 de Romanos. A vida dos justos está nas mãos de Deus (Sb 3.1)… mesmo depois da morte eles gozam da paz (Sb 3.3)… a esperança deles estava cheia de imortalidade (Sb 3.4). Depois de leves correções receberão imensos benefícios. Deus os provou e os achou dignos de si (Sb 3.5)… No tempo da visita (julgamento divino), eles resplandecerão…(Sb 3.7). O Senhor reinará sobre eles para sempre (Sb 3.8)… Os que são fiéis no amor permanecerão com ele, pois graça e misericórdia são para seus eleitos (Sb 3.9). Mas os ímpios serão castigados segundo merecem seus projetos por terem desprezado o justo e abandonado o Senhor (Sb 3.10). A semelhança dos dois textos é tamanha, que Paulo parece mesmo estar meditando sobre esse trecho da Sabedoria à luz da morte-ressurreição de Jesus! Podemos resumir o texto da Sabedoria assim: Os justos, que foram provados e achados dignos de Deus por terem acreditado no amor e mantido firme a esperança da imortalidade, são objeto da graça e da misericórdia do Senhor, que, no julgamento final, os premiará com o imenso benefício da glória e os fará participar de seu reinado para sempre. Em Paulo, o título de “o Senhor”, que no Antigo Testamento se refere a Iahweh, é agora atribuído a Jesus Cristo ressuscitado. Portanto, resumindo também o capítulo 5 da Carta aos Romanos, podemos dizer o seguinte: as pessoas que se acham pecadoras e acreditam no amor de Deus para com elas, amor manifestado na morte de seu Filho Jesus e derramado no coração por meio do Espírito Santo, recebem a graça da justificação. Por isso, junto com elas, nós também exultamos sempre em Deus, mesmo nas tribulações, pelo dom incomensurável da graça do Senhor Jesus, porque conservamos a esperança de que, pela fidelidade daquele único Cristo salvador, seremos libertados da morte para participar de sua vida gloriosa para sempre.

Assim também a morte atingiu todos os homens. O advérbio estabelece a ligação entre o pecado de Adão e “todos os homens”. A mudança de verbo, “entrar” para “atingir/estender-se”, nos dois casos aoristo segundo ativo do indicativo, pode significar a passagem da primeira à segunda parte da ação, figurada pelos dois atores tiranos da cena: o pecado entrou no mundo deixando a porta aberta para a morte golpear todos os homens. Como no texto da Sabedoria, aqui também se trata da morte enquanto separação definitiva do homem de Deus, única fonte da vida.

Por causa disso/dele, no qual ou sendo que, ou pelo fato que ou pelo qual, etc. todos pecaram. A interpretação desta expressão é objeto de discussão. Com certeza, o pecado não é conseqüência da morte, mas sua causa. As outras interpretações podem-se resumir em duas posições: a) a morte atingiu todos porque de alguma maneira todos foram atingidos pelo pecado de Adão; b) todos foram atingidos pela morte porque todos são responsáveis por pecado. Aqui parece que a maneira de raciocinar de Paulo não segue a lógica grega, e sim o midraxe hebraico. Tendo estabelecido com grande ênfase, na primeira afirmação que “o pecado entrou no mundo por causa de um só homem” e na segunda que, “por causa do pecado, também a morte (entrou no mundo)”, com a terceira Paulo sintetiza as duas (veja a correspondência entre hamartia eis ton kosmon eiselthen/thánatos eis pantas…dielthen): assim também a morte alcançou todos os homens (por causa de um só homem). A conclusão é óbvia (?!): por causa de um só homem todos pecaram. Contudo, isso não exclui a responsabilidade pessoal. Tratando-se de “morte” como afastamento de Deus, uma vez que todos foram atingidos por ela, significa que todos se tornaram pecadores (v. 19). Mesmo que ele não explique como, não há dúvida de que essa é a argumentação de Paulo, porque na base dela se fundamenta toda a sua demonstração quanto à justificação de todos por meio de “um só” (vv. 15-19). Se isso não fosse seu objetivo, também não precisaria tanta ênfase e insistência sobre o pecado de “um só”: “Assim, pois, como pela ofensa de um só chegou-se à condenação de todos os homens, assim também, pela justiça de um só, chegou-se à justificação que traz vida para todos os homens” (v. 18; veja também v. 19: Com efeito, como pela desobediência daquele único homem, os demais/todos foram feitos pecadores…). Enfim, ele estabelece não só a universalidade do pecado e da morte em contraste com a universalidade da justificação e da vida em Cristo, mas também a origem desse processo universal e sua prima-causa por meio do nexo entre a ofensa de um e o pecado de todos. O v. 21 parece criar uma inclusão com os vv. 1-2, querendo encerrar todo o capítulo 5: justificados/justiça… a graça em que estamos firmes/a graça reine… esperança da glória/para a vida eterna… pelo nosso Senhor Jesus Cristo/por Jesus Cristo, o Senhor nosso.

O fato, pois, que a justificação de Cristo torna todos justos e traz vida para todos não significa que o pecador possa continuar pecando do mesmo jeito que antes, ou até mais, para fazer com que Deus manifeste mais ainda sua graça. “Deus me livre!”, diria Paulo, se fosse brasileiro. Paulo vai discutir isso logo depois no cap. 6. Mas a justificação supõe o começo de uma vida nova no Espírito (cap. 8).

V. 13 – Com efeito: mais um acréscimo, uma digressão. Na verdade, é exatamente a confiança na lei que ele quer desmontar. Até a lei de Moisés chegar, o pecado, como sabemos, já estava no mundo, sempre por causa de Adão (cf. “entrou no mundo”). A partir desse ponto de vista, os judeus eram como os gentios, tinham a lei da razão e da consciência (Rm 2.12-16). Embora o pecado não seja imputado (imputar = dar entrada no registro, colocar na conta de alguém) quando não há lei. Como a lei (revelada a Moisés) ainda não era conhecida, os pecados não podiam ser imputados, em seu aspecto formal de transgressão, nem receber a sanção prevista pela lei (cf. 4.15). Mas a responsabilidade pessoal pelo pecado fica a mesma, pela lei natural escrita no coração (Rm 2.14-15). Portanto, ao receberem a Lei, os judeus só viram aumentar sua responsabilidade e sua culpa (2.9).

V. 14 – De Adão até Moisés: Os rabinos costumavam dividir a história humana em três períodos: de Adão até Moisés – 2.000 anos de caos; de Moisés até o Messias: 2.000 anos de lei; a partir do Messias: 2.000 anos de bênçãos. Nesta última época, o Messias daria uma nova lei ou uma reinterpretação da lei. Paulo retoma essa idéia: No primeiro período, sem a lei, o pecado estava no mundo e, mesmo sem imputação de transgressão, a morte reinou desde Adão sobre todos os pecadores. No segundo período, o regime da lei só fez acrescentar a responsabilidade pelas ofensas e a merecida cólera de Deus (cf. v. 20). No terceiro período, há liberdade da lei, porque reina a graça de Jesus Cristo, o Messias. Também sobre os que não pecaram da mesma forma da transgressão de Adão. O pecado de Adão foi a transgressão formal de um preceito. Mas os que viveram depois, até a lei chegar, não pecaram da mesma forma. Isso significa que o mal que fizeram não é considerado no seu aspecto formal de transgressão, porque ainda não tinham recebido algum preceito (cf. v. 13). Paulo deixou de lado a narração de Noé e o que ela poderia significar quanto a pecado e lei (Gn 9.4-6) e passa direto de Adão para Moisés. O que ele quer é debater o problema só em termos de lei mosaica, porque era com esse assunto que alguns entre os judeus-cristãos, os falsos irmãos (Gl 2.4), iam perturbando as comunidades por todo canto, para impor a todos a circuncisão como algo necessário para serem justificados e salvos por Deus. O qual é “figura” daquele que havia de vir. A “figura” do passado é um exemplo, um tipo, algo que tem uma semelhança com a realidade futura, chamada antítipo (cf. At 7.43; 1 Ts 1.7; 2 Ts 3.9; 1 Co 10.6). Jesus é o antítipo, o “segundo/último Adão” (cf. 1 Co 15,45-47), mas somente como contraste, e de maneira absolutamente superior e perfeita.

V. 15 – Mas (o que acontece) com a ofensa certamente não é o mesmo que com o dom! Mais do que uma comparação é um contraste: “a ofensa/transgressão” em contraposição ao dom da graça. Muito mais: a expressão encontra-se duas vezes na primeira parte deste capítulo (vv. 8,10) e duas vezes na segunda parte (vv. 15,17)! Parafraseando, poderíamos dizer: Como duvidar do amor salvífico de Deus após tudo o que fez por nós (vv. 8,10)? Como duvidar que a força de sua graça redentora, derramada com tamanha abundância, nos conduza à vida eterna (vv. 15,17)? Como não exultar diante da imensidão do oceano de amor gratuito daquele único Jesus Cristo, Senhor nosso, que por nós pecadores derramou seu sangue, para nos introduzir no seu reino de glória? Enfim, o que mais agrada a Deus não é infligir o justo castigo, e sim doar sem medida sua misericórdia e seu perdão. Se, com efeito, pela ofensa daquele único (homem), os demais morreram, muito mais a graça de Deus e a dádiva (concedida) pela graça daquele único homem, Jesus Cristo, superabundou para os demais. “Os demais” (os muitos/a multidão) é colocado em contraste com “aquele único” e, portanto, significa “todos os outros/todos” (cf. 5.18; 12.5). Os versículos seguintes (16-20) repetem com palavras sinônimas e enfoques diferentes a mesma profissão de fé, a qual, graças à estrutura concêntrica do texto, alcança o vértice de sua formulação teológica no v. 17: “Se, com efeito, pela ofensa daquele único, a causa daquele único, a morte reinou, muito mais os que recebem a abundância da graça e a dádiva da justificação reinarão na vida por meio daquele único, Jesus Cristo”. A morte não reina mais, o poder dela acabou. Agora é o reinado da superabundante graça de Jesus que traz justificação e vida para todos.

3. Meditação

Paulo nos apresenta dois reinos e duas conseqüências: Adão-Cristo; pecado-graça; morte-vida. Adão representa o início e a personificação da humanidade mergulhada no pecado e caminhando para a morte. Cristo representa o novo Adão, o início e a personificação da humanidade introduzida no Reino da Graça e caminhando para a vida. O apóstolo nos mostra a supremacia de Cristo e do Reino da Graça sobre Adão e o reino do pecado, pois o dom de Deus supera o pecado do homem.

a) Somos herdeiros de tesouros e de misérias

As clássicas perguntas – de onde vim? para onde vou? – são dramáticas, tanto como: por que sou como sou? Por que sempre estou dividido entre o bem e o mal? Estas não são somente perguntas de filosofia, e sim existenciais, porque é a nossa vida que está em jogo! De fato nós – todos nós! – percebemos que estamos mergulhados na bondade e na maldade, na graça e no pecado.

Há também outra sensação: carregamos algo como de herança, algo que nos acompanha e, de certa forma, condiciona nosso modo de ser e de agir, tanto para o bem como para o mal. Carregamos tesouros e misérias que não dependem só de nós. É um mistério e tanto! Não nascemos em culpa pessoal, mas carregamos as marcas do pecado e sofremos as suas conseqüências.

b) O mal é um desafio que devemos enfrentar

Tudo o que vai contra a vontade de Deus e a felicidade do ser humano pode ser sintetizado numa única palavra: mal. O mundo em que vivemos parece estar (e está!) bem longe daquilo que a fé nos faz conhecer como o projeto divino da nossa eleição. Existe tanto mal, tamanha injustiça que, às vezes, somos tentados a pensar que Deus nos esqueceu. Mas, em nossa fraqueza, vem nos socorrer a força da graça de Jesus, que nos fortalece na fé e nos ampara para enfrentar a luta.

É preciso saber enfrentar o mal: ele se manifesta com múltiplas facetas e muitos modos. O mal existe! E está agindo! Isso não significa, evidentemente, cair no fatalismo. Pelo contrário, resgatados pelo imenso amor do Pai, conhecemos a extraordinária liberdade do Espírito. Portanto, podemos e devemos construir nossa própria história pessoal e social. Somos responsáveis pela nossa vida e pelo mundo que construímos.

c)História: lugar de salvação e de perdição

Salvação e perdição vêm, muitas vezes, associadas a uma visão natural de fatalidade. Mas essa visão é injusta, pois nós continuamos a ser livres, não marionetes manobradas por um hábil artista. É injusta, também porque esta visão transforma Deus num ser arbitrário.

Nunca podemos perder de vista duas verdades:
– a responsabilidade humana;
– a bondade divina.

Ninguém nasce por acaso; somos frutos de um plano maravilhoso de Deus, que sonha alto quando pensa em nós (Ef 1.1-14). O nascimento de cada ser humano não é apenas um milagre, é mais uma manifestação do eterno projeto divino. É sinal de que Deus não está cansado dos homens (Tagore).

Salvação e perdição têm seus desfechos, sim, no momento da morte, mas são o fruto de nosso agir cotidiano. Salvamo-nos ou perdemo-nos dia após dia. Assim se expressa Santo Agostinho: “Senhor, afastava-me para mais longe de ti. Fervia em minhas devassidões, e tu em silêncio…” E ainda: “O inimigo dominava o meu querer e me forjava uma cadeia que me apertava”. Mas quando ele leu um trecho da Epístola aos Romanos (Rm 13.13) e se converteu, escreve: “Apenas acabei de ler estas frases, penetrou-me o coração como que uma luz de serenidade, e todas as trevas da dúvida fugiram” (Confissões, Liv. VIII, cap. 12).
d) Reconhecer-se pecador é uma graça extraordinária
Reconhecer-se pecador não é nenhuma humilhação. Aliás, é o único caminho para se beneficiar da misericórdia divina.

Pode ocorrer, na Igreja-Comunidade, que haja sempre alguém que tenda a dividir os fiéis entre “bons” e “maus”. Existe discriminação também na Igreja! Mas não foi o que Jesus nos ensinou (confrontar com Lc 19.1-10 ; Lc 7.36-50).

É necessário realçar ainda mais o sentido da alegria, da festa na casa onde o filho-pródigo e aventureiro foi acolhido.

Reconciliação não será mais o sinônimo de humilhação e discriminação, mas será anúncio da alegria da ressurreição.

4. Subsídios litúrgicos

a)Confissão de pecados: Querido Deus, em comunidade chegamos à tua presença, pedindo perdão por nossos pecados. Tu enviaste Jesus como nossa justificação e nosso modelo de relação de justiça, mas em nosso cotidiano vemos incoerências, preconceito e egoísmo. Ó Pai, dá-nos força para viver plantando a justiça e a paz, pois queremos refletir em nossas relações teu amor e teu perdão. Tem piedade de nós, Senhor!

b) Oração de coleta: Nosso Deus, que és pai e mãe de todos nós, estamos reunidos sob o vento do teu Espírito para celebrar e ouvir a tua palavra. Que ela nos console, nos fortaleça e ensine-nos o caminho da justiça. Que em nossos corações prevaleça a força da vida contra todas as amarras do poder do mal, confiantes no teu amor e graça, por Jesus Cristo nosso Senhor. Amém.

c)Responsório: Rm 5.11; Cl 1.19-20

R: Colocamos nossa glória e confiança em Deus, graças a nosso Senhor Jesus Cristo.
*Por ele conseguimos agora a reconciliação. Aleluia!
V: Quis Deus que nele residisse toda a plenitude; e quis por ele reconciliar todas as coisas consigo.
*Por ele…

Bibliografia

ALAND, Kurt et alii (Org.). The Greek New Testament. 3. ed. Stuttgart, 1985.
RIENECKER F., CLEON, R. Chave lingüística do Novo Testamento grego. São Paulo : Vida Nova, 1995.
FITZMYER, Josef A. The Letter to the Romans. In: VV. AA.The Jerome Biblical Commentary. Englewoodcliffs, N.J. : Prentice-Hall, 1969. p. 291-308.
BEARE, F.W. Letter to the Romans. In: VV. AA.The Interpreter’s Dictionary of the Bible. New York : Abingdon, 1962. v. 4, p. 112-122.

 

*Artigo elaborado pelo grupo de reflexão bíblica do Curso Ecumênico de Teologia (CAIC / UNIPOP), sob a coordenação de Giovanni Matoccia e com contribuições de Altina Marques de Almeida e Isaque de Góes Costa.
Proclamar Libertação 27
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia