Prédica: Filipenses 3.12-21
Leituras: Salmo 80.8-15a e Mateus 21.33-43
Autor: Valdir Frank
Data Litúrgica: 20º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 06/10/2002
Proclamar Libertação – Volume: XXVII
1. Considerações iniciais
Estamos no primeiro domingo do mês de outubro. Neste mês, lembramos de forma especial as crianças (“Dia das Crianças”); teremos participado de mais um processo eleitoral em todo o país e já teremos nossos pensamentos voltados para o dia 31 de Outubro (Dia da Reforma) com seu desafio sempre presente e necessário às comunidades luteranas, bem como às demais igrejas na caminhada ecumênica. Neste final de semana, temos diante de nós o texto de Fp 3.12-21 como base para a pregação/reflexão em grupos e comunidades. Quais serão os desafios e rumos que este texto nos indica? Basta ler o texto e já perceberemos que algumas palavras nos desafiam. No texto, aparecem termos que, dependendo do ponto de vista em que são interpretados, parecem ser bem-vindos e confirmam pensamentos baseados no individualismo, na busca da perfeição e auto-salvação. Palavras como “prossigo”, “conquistado” e “alcançado” podem servir bem como pano de fundo para justificar saídas e conquistas individualistas, tão presentes em nossa época. Outras palavras, como “cruz”, “glória”, “humilhação”, “subordinar”, “pátria nos céus” e “aguardar”, podem levar-nos a uma visão desencarnada e descontextualizada da realidade na qual vivemos. Sabemos, porém, que o nascedouro de nosso texto tem a ver com uma comunidade bem concreta com seus avanços e conflitos no seguimento a Jesus Cristo em meados do primeiro século. Pois cruz e glória, vistas a partir do projeto/plano de Deus em Jesus Cristo, são força motivadora e inspiradora dessa pátria já alcançada nos céus. Isso nos leva à consciência de que toda e qualquer subordinação e humilhação no plano terreno só ganham sentido quando fazem parte da busca pela superação das mesmas. Assim compreendemos o apóstolo Paulo em sua luta contínua a serviço do Reino de Deus, mesmo e por isso mesmo, tantas vezes também conflitante como transparece em nosso texto.
2. O texto de Filipenses 3. 12-21
Ao lermos o versículo 1 do capítulo 3, temos a nítida impressão de que há a conclusão de uma carta. Porém, na seqüência, temos a inclusão de uma carta, denominada carta C (conforme Comblin), cuja conclusão estaria no capítulo 4.8-9. Seguindo na leitura do capítulo 3, percebe-se uma acentuada mudança no tom da mesma. Passamos de uma forma mais efetiva e alegre de relacionamento de Paulo com a comunidade de Filipos, para uma comunicação tensa, conflitante e até de indignação.
A pergunta é: a quem o apóstolo está se dirigindo, a quem ele endereça sua indignação? Podem ser pessoas ou diferentes grupos que ameaçam a comunidade. Podem ser judeus ou cristãos que, com seus procedimentos, ameaçam a comunidade. Pessoas judaicas podem estar se orgulhando de sua descendência judaica, de sua pertença ao povo de Israel, seguras de si mesmas a partir de sua tradição. Podem ser pessoas judaicas cristãs, inclusive com influência gnóstica, que com seus procedimentos estejam perturbando essa comunidade tão-amada pelo apóstolo. Independente da clareza dos motivos e de pessoas ou grupos que ameaçam e geram a polêmica, permanece a grande preocupação do apóstolo em manter a comunidade firme no Senhor (4.1). Sabemos que, nesse propósito, encontramos Paulo se debatendo e insistindo num único e exclusivo rumo, ou seja, estar a serviço do engrandecimento de Cristo, de sua glória (1.20). Esta radicalidade encontramos na afirmação: “Porquanto, para mim, o viver é Cristo, e o morrer é lucro” (1.21). Portanto, ao se deparar com a possível desintegração e falta de unidade no testemunho da comunidade, exorta a mesma num tom até agressivo, para que estejam firme em um espírito, uma só alma, lutando unida pela fé evangélica (1.27). Aliás, o que está muito bem expresso através das palavras que constam em Fp 2.1-11.
3. Análise e comentários sobre o texto
Neste texto, Paulo continua seu debate e seu alerta à comunidade, após ter feito uma memória quanto ao seu passado e, ao mesmo tempo, ter justificado sua ruptura com o mesmo (3. 2-11), a partir da qual a sua vida recebe uma nova orientação e um novo conteúdo em Cristo. Essa convicção vai também norteando os versículos do nosso texto. Senão vejamos:
V. 12 – O apóstolo persegue um alvo que já o alcançou, que tomou conta dele. A partir de sua convicção de que ele já foi conquistado por Jesus Cristo, nega toda e qualquer pretensão de acomodamento no presente. Por isso, é preciso prosseguir rumo ao alvo, cuja orientação está centrada em Cristo. O que importa é continuar a mover-se. E nesse movimento o correr e o buscar não são o alvo em si mesmos, porém estão a serviço do alvo já alcançado.
V. 13-14 – O alvo ainda não foi alcançado pelo próprio apóstolo. Continua numa situação ambígua entre o “já e ainda não”. Como ser e criatura humana, continua caminhando dentro dos limites próprios do ser humano. Carece da manifestação da graça de Deus. Isso não lhe permite assegurar-se na falsa pretensão do “já cheguei lá, já alcancei o alvo”. Poderia pensar: estou confortavelmente bem na corrida, nenhum esforço mais será necessário. Assume posição. Ele corre. Põe-se a caminho.
V. 15 – Até parece ironia quando lemos: “Todos, pois, que somos perfeitos…”. Somente poderemos entender essa afirmação quando permanecermos na ótica do alvo já dado e alcançado, e não a partir da perfeição própria. A firmeza e a perfeição lhe são pontos básicos, porque agora são vistas a partir do já alcançado por Jesus ou conforme o final do versículo 12, que diz: “fui conquistado por Cristo Jesus”.
V. 16 – O desafio é manter-se firme na direção já dada por Jesus. Aparece o desafio de “conservar o rumo”. Há um chamado para a busca da unidade na caminhada a partir do essencial, daquilo que lhes é comum.
V. 17-21 – Paulo continua sua polêmica contra aquelas pessoas e grupos que geram dificuldades na comunidade. Paulo radicaliza suas críticas. As expressões que usa evidenciam sua radicalidade.
V. 17 – Paulo chama para imitá-lo. Coloca-se como modelo a ser seguido. Sabemos, porém, que essa “imitação e modelo” não visam honra e glória próprias. O próprio testemunho de vida do apóstolo nega essa versão. Ele chama para o seguimento humilde e sofrido conforme Fp 1.12-26.
V. 18 – O apóstolo está tão profundamente envolvido, que chega a ponto de chorar. Possivelmente trata-se de um grupo que criou uma crise a partir da própria comunidade. Esse grupo é atacado de forma dura, a tal ponto que é tachado de inimigo da cruz de Cristo. É um grupo que contradiz o que temos em Fp 2. 6-11.
V. 19 – O grupo “inimigo da cruz de Cristo” busca firmar-se através de outro caminho. São condenados à perdição. Sua preocupação reside única e exclusivamente em seu bem-estar material. Busca viver a “glória” a partir de conceitos mundanos e terrenos. Opõe-se, portanto, aos valores advindos do projeto de seguimento a partir da cruz de Jesus Cristo e suas conseqüências práticas. O “ventre” pode estar indicando preceitos judaicos referente à alimentação. Questões alimentares podem estar sendo objeto de devoção, fazendo com que o ventre seja praticamente um deus.
V. 20 – A expressão “Pois a nossa pátria está nos céus” deseja relativizar o pensamento de que ficamos limitados aos assuntos terrenos. Não estacionamos nos caminhos aparentemente seguros deste mundo. Caminhamos já orientados pela “outra cidade” , iniciada por Deus em Jesus Cristo. E esta não se encaixa sem conflitos e questionamentos quanto à estrutura terrena de pensar e organizar a sociedade. A “cidade de Deus” desafia a “cidade terrena” a partir do crucificado e ressurreto.
V. 21 – A transformação do corpo de humilhação em corpo de sua glória aponta para a “cidade permanente de Deus”, instalada neste mundo a partir de ressurreição de Jesus Cristo. Essa cidade gloriosa já se apresenta aqui, mesmo na aparente fraqueza da humilhação e da cruz. Assim, todo e qualquer desejo de pessoas, grupos ou sistemas de ser absolutistas é relativizado, ou melhor, deve estar “subordinado” e a serviço do Salvador, o Senhor Jesus Cristo (vv. 20-21).
4. Comentário final
O texto de Filipenses 3. 12-21 desafia-nos em várias direções. É o que pudemos perceber na reflexão a cerca do mesmo. Alguns desafios já foram lançados nas considerações iniciais que encontramos no ponto número um. Novos desafios aparecem ao longo da análise e comentários sobre o texto. Cada contexto tem seu desafio próprio. Espero ter contribuído de uma ou de outra forma com este breve trabalho. Pessoalmente não deixaria de incluir na reflexão as outras leituras previstas. O Sl 80.8-15 permite também perceber o contraste entre a história presente (conforme o Salmo) e a história que Deus já realizou com seu povo, ou seja, libertação do Egito, ocupação da terra, expansão e, ao mesmo tempo, súplicas repetidas apresentam o motivo para Deus agir. Pois se trata de sua videira, da sua vinha. A oração do Salmo permite tomada de consciência e conversão ao plano de Deus. Assim também na leitura de Mt 21.33-43, onde a vinha, a “plantação” de Deus, é mal administrada, e assim o projeto para o qual a vinha é destinada deixa a desejar e é transferida a outros. A rejeição vai a tal ponto, que o próprio filho (Jesus) do proprietário (Deus) é rejeitado.
Podemos, portanto, estabelecer pontes entre o texto previsto para a mensagem/pregação e os outros textos previstos, bem como extrair deste conjunto os subsídios litúrgicos.
Bibliografia
COMBLIN, José. Epístola aos Filipenses. Petrópolis : Vozes, 1985. (Comentário Bíblico NT).
KÜMMEL, Werner Georg. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo : Paulinas, 1982.
WESTHELLE, Vítor. Meditação sobre Filipenses 3.17-21. In.: MALSCHITZKY, Harald; WEGNER, Uwe (Coords.). Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1985. v. 11, p. 330-335.
WEINGÄRTNER, Lindolfo. Meditação sobre Filipenses 3.12-16. In: KAICK, Baldur van (Coord.). Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1977. v. 2, p. 20-27.
Proclamar Libertação 27
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia