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Prédica:1 Tessalonicenses 2.8-15
Leituras: Salmo 131 e Mateus 23.1-12
Autor: João Paulo Auler
Data Litúrgica: 24º Domingo após Pentecostes
Data da Pregação: 03/11/2002
Proclamar Libertação – Volume: XXVII
 

1. Considerações iniciais

O texto de 1 Tessalonicenses 2.8-15 ainda não foi comentado nos “Auxílios Homiléticos Proclamar Libertação” anteriores. No entanto, vale dizer que estamos diante de um dos primeiros documentos do Novo Testamento, provavelmente escrito em torno de 49/50 d. C. Paulo tem a missão e o desafio, diante dos tessalonicenses (cristãos e não-cristãos), de se posicionar de forma clara e concreta com uma proposta convincente sobre a postura cristã dentro do mundo cultural, político, econômico e religioso de então. Esta é uma das linhas de reflexão abordadas por Paulo na carta. É com ela que vamos tentar nos envolver. O convite está feito.

2. Tessalonicenses e a missão de Paulo

Tessalônica é a capital da província romana na Macedônia. O porto da cidade tem grande importância para a economia local, baseada principalmente na produção de riquezas minerais e agrícolas. A região é bem servida com estradas para facilitar o deslocamento de tropas do exército romano e o escoamento da produção. A mão-de-obra escravista é a base da construção da economia (produção e comercialização). Tudo isso faz do lugar uma cidade de intenso comércio e com uma população muito heterogênea. A composição registra a presença de gregos, judeus da diáspora, egípcios, italianos e outros. O grego é a língua mais presente na comunicação, principalmente na comercialização. Com uma “linguagem comum”, o Império Romano induz à prosperidade comercial.

Parece que está exatamente ali o grande desafio dos cristãos: levar uma proposta alternativa para além dos próprios muros. Tessalônica parece ser um terreno fértil. O cristianismo cresce e se desenvolve. Ali os extremos coexistem. Produzem-se muitas riquezas, que têm como conseqüência muita pobreza e marginalização. A proposta cristã não defende e nem reproduz esta lógica. Nesse sentido, ela é alternativa.

O “mercado religioso” obedece à dinâmica imperial/comercial e/ou portuária. Muitas divindades e cultos diferentes buscam espaço e influenciam-se mutuamente. E, é claro, os deuses antropomórficos gregos tentam impor-se aos outros cultos. Podemos, assim, dizer que a religiosidade é, em parte, tradicional (culto às próprias divindades) e, em parte, serviço aos deuses greco-romanos. Naquela época, o culto à família do imperador (imperador divinizado) também marca forte presença.

A comunidade dos tessalonicenses está, por um lado, confusa por causa do sincretismo existente e, por outro, mais aberta e disposta a novidades, sem perder sua característica, história e identidade. Poderíamos dizer que a identidade mostra-se forte e se faz forte no confronto com as adversidades. Exatamente ali criam-se anticorpos. Os cristãos de fato se mostram cristãos no momento em que se tornam missionários e saem do isolamento cultural e religioso.

3. Comentário sobre o texto

Inicio o comentário com uma pergunta: o que motivou, em um lugar como Tessalônica, tantos empregados, escravos e gente desorientada e sem perspectivas a buscarem a comunidade cristã ? Algum impacto a comunidade (Evangelho) deve ter causado? O texto proposto para este final de semana pode ajudar-nos a encontrar a resposta.

Paulo já é carta marcada no âmbito da comunidade civil e religiosa. Ele (o Evangelho através dele) já andou causando impacto. Fez crescer comunidades e “perturbou” a ordem em Filipos. Conforme 1Ts 2.2, Paulo confirma o fato: “Mas apesar de maltratados e ultrajados em Filipos, como é do vosso conhecimento, tivemos ousada confiança em nosso Deus, para anunciar o Evangelho de Deus, em meio a muita luta”.

Chama atenção em Paulo:

* Sua postura em relação ao futuro. Ele vê o futuro não como uma ameaça e com medo, mas com graça e confiança (1.10). O futuro, muito mais do que ameaça, é tempo de esclarecimento e de justiça. A ira de Deus é contra a injustiça. A vida, morte e ressurreição, que na fé é recebida como trabalho/serviço de Deus em favor das pessoas, liberta as pessoas em relação a um passado cheio de cargas e em relação ao futuro cheio de ameaças. Se a vida no presente, por vezes, já é difícil, ser ameaçado pelo futuro torna-a ainda pior. O futuro é belo, é justo, é a vida e a justiça. Ele ilumina o presente ainda não pleno dessa luz. Essa mensagem faz bem para quem é escravo e/ou excluído. Não há mais necessidade de se preocupar com o futuro, mas sim recebê-lo (presentificá-lo) e se ocupar com a vida presente, com o dia-a-dia.

* Sua postura coerente entre dizer e fazer (2.8-11). Pregar o Evangelho não é apenas a sua profissão. Evangelho e vida são a mesma coisa. O projeto de Deus e seu projeto pessoal são a mesma coisa e não andam separados. Já estão acontecendo através de seu trabalho e pregação.

* Em 2.12, Paulo fala do Reino da Glória. Ele alimenta e dá vida à ação. É ele que conjuga o esforço para uma conduta diferente no tempo presente e no mundo. Enquanto os cristãos esperam o futuro, são chamados, admoestados e exortados a viver no tempo presente de forma digna diante de Deus. E qual é essa conduta considerada digna diante de Deus dentro da situação concreta em Tessalônica? A seguir, mostraremos, pelo menos, três formas:

Primeira: Trabalhar com as próprias mãos para não depender de ninguém e praticar o amor mútuo (4.9-12). Paulo apresenta-se como modelo. Fabricava tendas (At 18.3). Deixa muito clara a sua intenção. Não quer viver às custas dos outros. Seu bem-estar não deve ser resultado ou produto da miséria de outros. Isso não precisa ser dito, mas é evidente que as comunidades, em suas análises, perceberão e saberão dar nomes àqueles que na sociedade vivem assim. Paulo mostra, com isso, o conflito existente entre trabalho e vida digna, entre a falsa ética do trabalho, patrocinada pelo império, e a vida reclamada pelo Evangelho (por Deus). Os romanos e mais alguns descansavam e desfrutavam das “benesses” desse sistema. Paulo não quer ser um peso a mais. Prefere trabalhar dia e noite (2.9). Propõe assim um modelo distinto e diferente. Isso causa impacto, chama a atenção e mexe com o convencional. Propõe solidariedade (amor de um pelo outro) e um trabalho construído em novas relações, isto é, não depender de ninguém. Paulo sabia, por experiência, o que isso significava. Era filho de artesão. Seu pai, como era comum entre os artesãos, tinha muitos escravos. Agora aconselhava os tessalonicenses a buscarem a independência e uma vida com base em novas relações.

Segunda: Viver de forma digna diante de Deus é resistir às pressões. Entre as muitas pressões recebidas, Paulo menciona aqui, de forma mais acentuada, a de seus concidadãos, os judeus (2.14-15). É um grupo “classista”, ligado a Jerusalém e à sinagoga. Muitos são comerciantes e conseqüentemente detentores de poder e influência (At 17.13ss). É compreensível que queriam a continuidade e a manutenção de todo o sistema político, econômico e religioso que os favorecia. Paulo não esconde o conflito, que já é velho. “Pega pesado” ao dizer que é uma questão de lógica: quem foi capaz de matar Jesus Cristo, profetas, é claro e evidente que perseguirá Paulo e seus seguidores. Logo, as pressões recebidas não são uma novidade. Já vêm de longa data. Por isso, não precisam ser recebidas com surpresa. Antes, podem ser recebidas como conseqüência do testemunho dado. Afinal, é natural esperar oposição à nova proposta de vida que nasce a partir do confronto com o Evangelho. Os tessalonicenses, através da Igreja, precisam resistir. A parúsia do Kyrios Jesus (2.19; 3.13) torna-se motor dessa resistência. Parúsia era uma festa que se organizava para um general vitorioso, governante ou rei que vinha à cidade. Os cristãos resistem. Agora estão em outra. Jesus Cristo é Rei e Senhor (o Kyrios ). É a sua proposta de vida que vale. Esta sim é celebrada e testemunhada.

Terceira: Viver dignamente é abster-se da porneia (fornicação/prostituição). No contexto de Tessalônica, com uma população heterogênea em todos os aspectos, era de se esperar uma expressão sexual “exageradamente livre”. O próprio helenismo exaltava o culto ao corpo, o que favorecia o exagero. Paulo propõe disciplina. A expressão sexual não pode acontecer de forma vulgar. Certamente desenvolveu o pensamento que o acompanhou nas cartas do Novo Testamento: “Tudo me é lícito, mas nem tudo convém” (1 Co 6.12).

* Mostra um aspecto de sua visão eclesiológica. A Igreja (ecclesia) surge como esperança para os “do lado de fora do direito à vida”. Paulo está incentivando a formação de células urbanas (pequenos grupos de pessoas), motivadas por uma fé religiosa centrada na escatologia. Essa célula é a Igreja. São centros de vida alternativa, com propostas totalmente diferentes daquelas oferecidas pelos cultos e pela política da “cidade” (império). A vida alternativa passa agora por um projeto de solidariedade com todos os seus desdobramentos. Somente em células, em grupos (na ecclesia), pode-se ser alternativo e resistir. Nesse sentido, a Igreja é uma “nova organização” em que a vida é pautada pelo serviço mútuo e o servir “para fora”. É o exercício constante da solidariedade ou do amor de uns para com os outros (3.7-8; 4.9-12; 5.14-15). Essa Igreja não está ligada à “rede” do grande império, que tem por finalidade captar, canalizar riquezas através do suor e do trabalho de muitos até Roma. A nova organização experimenta um modelo que causa impacto e desordem. Está minando o velho (econômico e religioso). A química agora é outra. O Senhor é Jesus Cristo (quem morreu e ressuscitou, quem serviu) e não o imperador, que só se serve. A Igreja faz questão de chamar Jesus de Kyrie – e não o imperador. A Igreja, portanto, passa a andar na contramão, na oposição ao convencional. Não dá mais suporte ideológico, mas carrega algo de novo. Demitiza a religião oficial, que leva para a moda, que fecha os olhos e fecha perspectivas para os do lado de fora. É, portanto, um grupo que incomoda. Esse grupo é denominado de cristãos.

A Igreja (ecclesia) pode ser definida com as seguintes características:

* reúne o que era proibido (comunidade excluída, escravos, operários, mulheres);

* cria possibilidades para a reflexão (comunidade começa a pensar e recupera a humanidade). Descobre que o modelo antigo não permite viver e é sem esperança.

* em vez de César, Jesus é confessado como Senhor;

* desperta a paixão pela vida. A apatia está dando lugar à esperança. Isso faz os cristãos verem novamente o mundo de “cabeça erguida e em pé”.

* A Igreja, de fato, representou uma esperança para os “do lado de fora” de tudo, do direito à vida. Eis o desafio para a Igreja nos dias de hoje.

4. Meditando…

O texto abre a possibilidade e acentua vários caminhos que poderão ser usados na pregação. A seguir, ofereço a minha reflexão:

A sociedade (local/global) é formada por grupos diversos, interligados por relações diversas. De fato, a “vida” é feita de relações de dominação ou de comunhão e solidariedade. Para que as relações sejam possíveis, regras são estabelecidas. Normalmente, quem “manda no jogo das relações” tem cacife econômico e grande poder de influência, dita e estabelece as regras que norteiam as relações. Nesse caso, as regras têm por objetivo dizer que o que acontece (nas relações) está “certo”. Vemos, assim, que o bem-estar e o mal-estar, a vida e a morte, a miséria e a riqueza coexistem como algo natural, regrado e estabelecido. Acontece, então a relativização da vida e a sacralização da regra (lei ). Diz-se, então: “Isto é assim mesmo”, ou: “Dar-se bem ou mal faz parte do jogo”. Certamente não faltarão exemplos a nível local (relações familiares, comunitárias, de trabalho e outras), que poderão ser usados. Da mesma forma, não faltarão exemplos em um nível maior (mundo global), que poderão ser usados para mostrar que todos fazem parte (conscientemente ou não) da grande rede de relações, como “comandantes do jogo” ou como “peças do tabuleiro” (da vida e/ou da morte).

A Igreja, como corpo humano de Deus no mundo, é, por natureza, influenciável e tendenciosa. Tende a se acomodar às circunstâncias do seu contexto inserido. Ela tende, nas relações que promove, a reproduzir as relações estabelecidas pelo “macro” estabelecido. Quando ela faz isso, deixa de ser novidade e deixa de causar impacto. Por isso, faz parte da dinâmica da Igreja: ser constantemente exortada, admoestada e consolada para viver de modo digno diante de Deus. Somente assim, ela conseguirá mostrar e desempenhar dignamente sua vocação natural diante de Deus.

A Igreja (comunhão de cristãos), para viver de maneira digna diante de Deus, precisa:

* Confessar os seus pecados. A Igreja que não se confessa certamente perde o rumo. Por ser influenciável e tendenciosa, ela tende a reproduzir as relações de dominação em todos os níveis. Ela tende a reproduzir o velho, e não o novo para o qual foi vocacionada. Ela precisa ser avaliada constantemente e saber colocar-se na “berlinda” diante de Deus. Somente quando se deixa avaliar com uma postura de humildade, ela sobrevive como representante/instrumento do novo. Quando não se confessa, segue caminhos próprios. Emancipa-se de Deus e vira “facção ou seita”. Não causa impacto e não traz novidade em termos de relações humanas mais “nobres”. Entendo que, assim como em Tessalônica, também na IECLB, em todos os níveis, é formada por diversos grupos que se relacionam entre si. A confissão de pecados é pressuposto para balizar novas relações. Podemos dizer, até como confissão de culpa, que a IECLB, muitas vezes, tem se caracterizado como uma igreja ainda muito fragmentária (pedaços de Igreja espalhadas por aí). Dentro da dinâmica do ser Igreja, muitas vezes, tem-se suprimido esse pressuposto. Viver de maneira digna diante de Deus é começar confessando os pecados. Eis aqui uma boa oportunidade para perguntarmos (usando recursos e criatividade) à comunidade reunida: onde nós, como Igreja, já erramos ou costumamos errar na caminhada? Quando nos confessamos, convertemo-nos. Converter aqui é muito mais “voltar à vida” do que “mudar de vida”.

* Confessar a sua fé. Viver de maneira digna diante de Deus é assumir a incumbência de causar impacto no mundo. A compreensão e a fé na parúsia invertem a lógica do mundo, causando desordem (dessa lógica de relações) e criando uma nova ordem. Os cristãos unidos e reunidos são modelos e referência de uma vida alternativa dentro dessa nova ordem. Qual é esta nova ordem, cujo “motor” é a fé na parúsia? A Igreja passa a ser alimentada por aquilo que vem de Deus. Jesus Cristo passa a ser o modelo, a referência de vida e das relações – e não mais o imperador. Em vez do imperador, Jesus Cristo é confessado como Senhor. Se uma das atitudes da Igreja é saber confessar os pecados, a outra atitude é confessar a sua fé. Confessar a fé chama os cristãos para o terreno prático, para o concreto da vida. Ali se causa impacto. Confessar a fé é alimentar-se da promessa de Deus. Pode-se viver o futuro (a ressurreição) já no presente, no dia-a-dia com todos os seus desdobramentos, e não se precisa mais transferir o presente (direito de viver) para o futuro. Impacto é isto: “A vida não é mais ficção”, agora é fato, é realidade, é presença constante em todos os níveis e em todas as relações. Nesse sentido, a obra de Deus vai se completando: não se precisa mais ficar preso ao passado, pois já fomos libertados de erros e pecados e a graça foi anunciada. Nem se precisa mais viver apenas em função do futuro, do que poderá vir a acontecer. A graça nos foi antecipada. Pela obra de Jesus Cristo, ele já “presentificou” o seu Reino. A presente vida já não é mais um vácuo. Agora, Deus também é presente, como foi no passado e como será no futuro. A seguir, cito um exemplo de como essa nova compreensão pode causar impacto. Paulo o fez em sua carta aos Tessalonicenses e diante de seus concidadãos judeus. Como causar impacto dentro de nossa realidade brasileira e eclesiástica? Dentro da lógica empresarial, mais presente no mercado, a palavra de ordem é: “Diminuir custos de produção”. Como Igreja sabemos muito bem que, quase sempre, diminuir custos significa diminuir a possibilidade de vida para pessoas. Diminuir custos é desempregar, sucatear, achatar salários, excluir e … A Igreja causa impacto quando anda na contramão dessa lógica. Ela quer “presentificar” a vida e suas possibilidades e não diminuí-la. Ela quer aumentar e não diminuir a qualidade de vida. Essa é a sua lógica nas relações. Quer fazer ressurgir e ressuscitar a vida. Essa também foi a proposta de Paulo ao sugerir como ofício fabricar tendas para que os cristãos se tornassem independentes e conseqüentemente pudessem sair da rede de relações que diminuem e escravizam.

* Ter o espírito da ecclesia (Igreja). A Igreja passa a ser o lugar de ensaio desse novo modelo. Esse modelo é luz e esperança para os que vivem do “lado de fora”, os “sobrantes” e/ou excluídos. A solidariedade e o amor de uns para com os outros passa a ser o que regula (regra) a organização chamada de Igreja (ecclesia). Ali se recebe a vida, vive-se a vida e passa-se a vida adiante (doação). “A existência cristã é essencialmente comunitária: ser cristão significa estar na comunidade, na Igreja”. Significa comunicar-se, relacionar-se. Como Deus, também a sua Igreja se movimenta, busca o outro, chama e mobiliza pessoas. Aqui serão necessários alguns exemplos para a comunidade poder entender e visualizar melhor como o espírito da solidariedade pode tornar-se uma presença cada vez maior e a marca da Igreja. Certamente cada pregador, no contexto onde está inserido, (espero pelo menos) poderá encontrá-los com abundância.

Bibliografia

FERREIRA, Joel Antônio. Primeira Epístola aos Tessalonicenses. Petrópolis : Vozes, 1991.
KÄSEMANN, Ernst. Perspectivas paulinas. São Paulo : Paulinas, 1980.
VÁRIOS. Cristianismos originários extrapalestinos (35–138 d.C.). RIBLA Petrópolis : Vozes, nº 29: 1998.
VÁRIOS. Sociologia das comunidades paulinas. Estudos Bíblicos Petrópolis : Vozes, nº 25: 1990.

Proclamar Libertação 27
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia