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Prédica: Oséias 11.1-4,8-9
Leituras: Mateus 25.14-30 e I Tessalonicenses 5.1-11
Autor: Haroldo Reimer
Data Litúrgica: Penúltimo Domingo do Ano Eclesiástico
Data da Pregação: 17/11/2002
Proclamar Libertação – Volume: XXVII
Tema:

1. O tom da celebração

Com a celebração deste dia, a comunidade celebrante já está vivenciando os “últimos tempos” de mais um ano eclesiástico. Prepara-se para celebrar, em poucos dias, de forma mais intensa, a colocação litúrgica diante do Deus juiz, Cristo Rei. A memória do amor primeiro de Deus prepara para o julgamento da práxis humana; a misericórdia e o perdão de Deus abrem para o tempo que celebra, de forma mais forte, o advento do Senhor, que vem para habitar entre nós.

Os textos de leitura e o texto da pregação podem ser relacionados através das palavras geradoras: tempo, amor e resposta.

A parábola dos talentos (Mt 25.14-30) enfatiza as dádivas primeiras de Deus (talentos), confiadas de modo diferente a pessoas com aptidões distintas. No seu tempo de viver, cada uma dessas pessoas desenvolve uma relação diferente com os dons ou as dádivas recebidas de Deus. A parábola tem um tom “capitalista”, porém a ênfase do texto está na práxis humana como resposta às dádivas de Deus. O texto busca dar incentivos para “gerar dividendos” com os talentos recebidos. Pressupõe-se no texto a diversidade humana; pessoas diferentes recebem dons diferentes e dão respostas diferentes. Não há um nivelamento reducionista. Mas há claramente uma indicação para uma “cobrança” em um tempo vindouro ou escatológico; o Senhor que distribui os talentos virá para conferir os dividendos. Somente a pessoa que, no seu tempo de viver, não consegue “fazer nada” com o seu talento recebe uma condenação (vv. 20-30). Essa condenação “funciona” como uma crítica à negligência da práxis no tempo presente daqueles e daquelas que ouvem o texto.

O texto de 1 Ts 5.1-11 faz parte do discurso escatológico-apocalíptico nesta carta paulina. O apóstolo trabalha com a idéia/expectativa de uma parusia iminente do Senhor Jesus. O texto já constitui possivelmente uma correção a projeções anteriores do apóstolo no sentido de que essa parusia do Senhor se daria ainda no tempo de vida dos contemporâneos do autor da carta. As primeiras mortes “no Senhor” dentro da comunidade levam a refazer as projeções do tempo escatológico anunciado, ressaltando, agora, o seu caráter “repentino” (v. 3: “… esse dia como ladrão”) dentro de um tempo esperado (v. 3: “… como vêm as dores de parto”). Recomenda-se a sobriedade (vv. 6-8a), um treinamento ou exercício regular (v. 8: couraça da fé e do amor; capacete da esperança da salvação) para enfrentar a luta do dia-a-dia. O cotidiano é o tempo para viver aquilo que se espera. O texto re-afirma a certeza do esperado: “… Deus não nos destinou para a ira, mas para alcançar a salvação mediante nosso Senhor Jesus Cristo” (v. 9). Indica também o alvo prometido: “… vivamos em união com ele” (v. 10). Esse propósito escatológico é uma destinação comunitária (observar os verbos no plural) e, por isso, alcançar o alvo prometido e esperado se faz na prática comunitária. Diante do tempo escatológico não há um abandono individualista, mas um reforço dos laços da comunidade. Isso está claramente colocado no tom exortativo e admoestativo no v. 11. A práxis firme da fé, da esperança e do amor no tempo que nos toca viver é o desdobramento dos talentos que Deus nos concedeu. A inércia conduz à desgraça; o amor cotidiano conduz as pessoas à graça. A prática do amor é o melhor dividendo dos talentos concedidos por Deus.

2. Oséias 11.1-4,8-9

O texto de Oséias 11 é possivelmente um dos textos mais antigos em que se desenvolve a idéia da eleição de Israel e de uma aliança entre o Deus Yahweh e este mesmo povo de Israel.

Em termos bíblicos, o tema da eleição de Israel já está prefigurado em textos “patriarcais” como Gn 12.1-3 (Abraão) e Gn 32 (Jacó). É como se fosse uma temática “antiga”, presente desde os inícios da história do povo. Algo similar se dá com o tema da aliança. Já há alianças feitas através de Noé (Gn 9), de Abraão (Gn 17) ou de Moisés (Êx 24). A própria forma da Torá ou Pentateuco, em sua descrição sincrônica dos conteúdos, privilegia esse enfoque dos temas eleição e aliança.

Em termos históricos, portanto, em perspectiva diacrônica dos textos, eleição e aliança são temas e realidades que vão sendo construídos ao longo dos séculos da história do povo de Israel. Hoje, afirma-se que uma teologia da aliança veio a tornar-se um teologumenon somente nos séculos VIII e VII a.C., na época de Ezequias e de Josias, e a vinculação de sua reforma com formas anteriores do Deuteronômio, provavelmente com o Código Deuteronômico originário (Dt 12-26*). Aqui, neste momento da história de Israel, amadurece, concretiza-se e se formalizam eleição e aliança, tornando-se ambos fundamentos imprescindíveis da teologia deuteronomista de Israel e recebendo a sua forma externa através de conjuntos de leis e normas essenciais para a vida do povo (cf. Dt 4.37; 7.7-9; 10.15).

Na profecia de Oséias, no século VIII a.C., a idéia de eleição já está presente. É como se aqui amadurecesse e se expressasse a consciência desse povo de ter um chamado especial da parte de Deus. Para Oséias, porém, essa idéia ou consciência de eleição não segue a apresentação da seqüência bíblica, provavelmente porque nesse período essa visão historiográfica ainda não existia. Eventuais referências a uma história patriarcal, seja lá qual tenha sido a sua forma, são colocadas em prisma desfavorável (Os 12.5, 13).

Para o profeta Oséias, a realidade da idéia de eleição e aliança começa com a situação de escravidão de parte do povo no Egito. A realidade de dor e sofrimento é constitutiva para esse pensar teológico. A memória do evento do êxodo constitui para esse profeta a base da reflexão teológica sobre o tema eleição e aliança. O fato de Deus ter olhado para a realidade deste Israel no Egito, descrito através da figura do “menino” ou “filho” (v. 1) evidencia o amor primeiro de Deus pelo seu povo. Eleição e aliança na perspectiva de Oséias, portanto, têm o seu fundamento no amor, na misericórdia e na fidelidade do Deus Yahweh. O próprio texto utiliza o verbo hebraico para a ação de amar (´ahab), para descrever o fato de Deus ter olhado para esse povo. Isso coloca o texto um passo adiante da paradigmática descrição dessa relação em Êx 3.7-10, onde “Deus ouve o clamor”. Em Os 11, o amor de Deus é o fundamento para qualquer idéia de íntima relação entre Deus e um povo determinado.

O amor ou a ação de Deus por Israel como base da eleição e aliança também se apresenta assim em outras partes da Bíblia Hebraica, por exemplo em Êx 20.2, no chamado prólogo do 10 Mandamentos. Aqui, o fato de Yahweh ter tirado Israel do Egito constitui a base e o fundamento da dádiva ou proclamação dos mandamentos. O Deus que apresenta não é um Deus autoritário, que exige obediência, mas é um Deus que fundamenta o seu pedido de relação exclusiva com o fato de haver libertado Israel do Egito. Essa ação primeira de Yahweh em favor de Israel fundamenta o primeiro mandamento. “Por isso não terás outros deuses diante da minha face.” Esse dado inclusive é fundamental no trabalho com adolescentes e jovens no Ensino Confirmatório, pois, sabidamente, Lutero, na sua forma de apresentar os mandamentos, omitiu a referência ao êxodo no primeiro mandamento, o que acarreta uma mudança de enfoque na sua compreensão. Na Bíblia Hebraica, a idéia de eleição deve ser entendida de forma análoga ao Novo Testamento, quando se afirma: “amamos porque Deus nos amou primeiro”.

Se o texto de Oséias coloca o amor de Deus por seu povo como a base para qualquer idéia ou consciência de eleição e aliança, acentua também as diversas ações deste Deus no processo pedagógico de seu povo-menino-filho rumo à autonomia. Os vv. 3-4 são incisivos nessa descrição. No processo de socialização, o Israel-menino-filho experimentou da parte de Deus ações descritas no texto através de termos que caracterizam Deus como uma mãe zelosa. “Ensinei a andar a Efraim”, “tomei-o nos braços” (v. 3), “atraí-o com cordar humanas” e “me inclinei para dar-lhes de comer” (v. 4) caracterizam, em termos típicos, antes o amor e a prática de uma mulher-mãe em Israel do que as ações de um pai. “A linguagem do texto é corporal, é através dos gestos que Deus manifesta o seu amor” (Neuenfeldt, p. 324). Sem poder aprofundar a questão, é importante, porém, observar essa dimensão no texto, talvez até corrigindo o título dado a Os 11 na Bíblia de Almeida. Na pregação, é importante indicar para além das limitações das projeções masculinas da figura de Deus e buscar imagens mais inclusivas e complementárias. Isso, aliás, respeita a própria dinâmica canônica da Bíblia Hebraica e vem ao encontro de pessoas que não necessariamente encontram a melhor identificação com Deus através da figura paterna.

Essas ações de Deus (mãe ou pai) em favor de Israel constituem, em termos práticos, o seu amor cotidiano no processo pedagógico do amadurecimento do Israel-menino-filho. Na transmissão do texto, há uma divergência com relação à literalidade da primeira parte do v. 4b. A Bíblia de Almeida traduz: “fui para eles como quem alivia o jugo de sobre suas queixadas”, enquanto que a Bíblia de Jerusalém, seguindo outra forma de ler o texto hebraico, apresenta: “eu era para eles como quem levanta uma criancinha”. Essa leitura se mantém mais no fluxo do texto.

As ações de amor de Deus por Israel, porém, assim o apresenta o profeta Oséias, não “renderam” os dividendos esperados. Tanto a tradução de Almeida quanto a Bíblia de Jerusalém traduzem o início do v. 2 de modo adversativo ao v. 1: “quanto mais eu os chamava, tanto mais eles se iam da minha presença”. Cabe observar que essa leitura se apóia no texto da Septuaginta e em correlação com a Siríaca. O texto massorético, porém, tem outra leitura: “eles os chamaram e assim os afastaram deles”. Essa leitura parece mais enigmática, porém pode estar associada aos conteúdos do v. 2, onde se tematiza a questão das práticas do culto religioso de Israel em relação a formas diferentes do Deus cananeu Baal.

Na consciência do povo, e sobretudo no imaginário do profeta, é o Deus Yahweh que constitui(u) a base para a vida em liberdade e dignidade do povo de Israel. Yahweh é o Deus libertador que construiu as bases para a vida de Israel. No tempo presente do profeta, no Reino do Norte no século VIII a.C., a questão religiosa vivia, porém, momentos de profunda ruptura e divisão. Embora Yahweh fosse lembrado como Deus libertador, o deus Baal era celebrado como o deus da fertilidade e do crescimento. O tempo e o espaço privilegiado, onde se decidia com quem este Israel manteria a sua relação principal com o Sagrado, eram os momentos de colheita dos produtos da roça e das ações de graças por esses produtos. Nas eiras, lugares em que se coletavam os produtos agrícolas, Israel rendia graças antes a Baal do que a Yahweh. A adoração e os sacrifícios a outros deuses constitui o problema em discussão. Não se faz referência, aqui, à desobediência de outras leis, mesmo porque é difícil afirmar qual parte do Pentateuco já estava pronta e disponível no tempo de Oséias. Aos olhos de Oséias, portanto, a adoração e os sacrifícios a outros deuses perfazem a idolatria ou a prostituição de Israel (Os 1-3 + 4.10-14). Em termos práticos, pois, este Israel vivia uma divisão em termos religiosos. As suas ofertas e louvores eram dirigidos a outros deuses e não ao verdadeiro Deus Yahweh. A profecia, pois, coloca a necessidade de um profundo discernimento.

O texto próprio de Os 11 continua a sua linha de pensamento com o anúncio de uma palavra de juízo contra este Israel (vv. 5-7), onde se delineia a opressão dos assírios como castigo pela desobediência e falta de discernimento de Israel. Esses versículos, porém, não fazem parte da perícope prevista para a pregação. Nesta, o texto continua nos vv. 8-9. O coração desses versículos está na formulação do v. 8b: “meu coração está comovido dentro de mim, as minhas compaixões, uma a uma, se acendem”. Pela forma, aqui se confundem fala divina e fala profética. Essa mistura, aliás, perpassa o livro de Oséias (cf. Os 1-3). É o profeta falando da mistura de sentimentos em ter que anunciar essas coisas, porém, da mesma forma, também sente o próprio Deus. Os órgãos de sentido aqui são o coração e as entranhas. Na antropologia hebraica, o coração (leb) é o lugar de decisão, diríamos da racionalidade, que pela visão moderna é ocupada pelo cérebro. As entranhas (nihumim / naham) são o lugar onde se concretizam os sentimentos, sobretudo de compaixão e misericórdia. “O espírito de Deus se manifesta quando as nossas entranhas se revolvem diante da dor do outro”, dizia um pensador. Oséias e Deus têm a difícil tarefa de confrontar a desobediência e a falta de discernimento do seu povo com o amor de Deus.

A dificuldade desse confronto está justamente em anunciar o juízo de Deus. Proclamar Deus como amor é a parte mais fácil, se comparada à tarefa de proclamar que esse mesmo Deus do amor é também um Deus-juiz. As imagens de juízo estão presentes no v. 8a através dos termos “abandonar” e “entregar/fazer como” em sua relação com as localidades de Adamá e Zeboim. Nestas duas cidades, deve referir-se a tradições conectadas em termos de conteúdo com eventos de destruição similares a Sodoma e Gomorra (cf. Gn 10.19; 19.25; Dt 29.22). Este “abandonar” ou “entregar” refere-se a expectativas de juízo vindouro. O tema da pregação deveria necessariamente também enfocar esse aspecto a partir do texto.

Os 11.9 provavelmente já constitui uma releitura em relação à profecia de Oséias. No texto já se supõe a destruição de Samaria em 722 a.C. como algo já realizado (cf. “não tornarei para destruir Efraim”). Nesse versículo, Israel já havia passado pelo fogo do juízo de Deus. A releitura salvaguarda, porém, o projeto original do amor de Deus: ser um Deus de amor e não da ira, para assim vivenciar plenamente a sua santidade no meio do povo. Essa releitura funciona como uma advertência aos leitores e ouvintes dessa profecia para reequacionarem a sua vida numa relação com o verdadeiro Deus, deixando de lado ídolos e idolatria.

3. A caminho da pregação

Sugiro elaborar uma seqüência da pregação no sentido de destacar o amor de Deus no tempo que toca a seu povo viver. Fazer o destaque da libertação do Egito como amor concreto de Deus por Israel, como ressaltado acima. Também seria bom ressaltar que esse amor de Deus se expressa em gestos e sinais no cotidiano, dentro de um processo pedagógico do seu povo. Seria importante destacar como se pode expressar a presença e ação de Deus na vida da comunidade no tempo presente. (Podem-se destacar os traços maternos de Deus, cf. o auxílio homilético de Neuenfeldt).

A contrapartida para o destaque do amor de Deus é a necessidade de “produzir” no dia-a-dia respostas a esse amor de Deus. A parábola dos talentos e a exortação no texto apocalíptico paulino ressaltam essa dimensão. Aqui se pode apontar para a “baalização” da fé de Israel, interpretada por Oséias como prostituição e idolatria. Pode-se, paralelamente, apontar para formas de como a fé da comunidade está voltada para momentos e formas de idolatria e prostituição, à medida que ídolos e práticas idolátricas são colocadas em primeiro lugar. “Ali onde colocas o teu coração, ali está o teu Deus” (Lutero).

A pregação deveria, sobretudo, enfatizar a dimensão do tempo. Dever-se-ia destacar o tempo antigo em que se percebiam as ações de Deus, o tempo que Deus concede para amadurecer no discernimento acerca da sua ação e o tempo vindouro ou escatológico em que esse mesmo Deus do amor vem para “colher” os dividendos da graça que distribui conforme o seu querer a cada uma das pessoas da comunidade. Vale ressaltar que a negligência e a inércia com os talentos recebidos de Deus (ações de Deus na história individual e comunitária) são duramente criticadas nos textos. A pessoa crente e a comunidade como um todo são chamadas para discernir no seu tempo de vida e experiência: como este Deus se manifestou em amor e ações históricas, como este Deus fala e chama no dia-a-dia através de sua Palavra, como Deus espera a nossa resposta, ensaiada no tempo cotidiano e com validade para o tempo escatológico.

Bibliografia

BEN-CHORIN, Shalom. A eleição de Israel : Um tratado teológico-político. Petrópolis : Vozes, 1999.
CRUESEMANN, Frank. Preservação da liberdade : o Decálogo em perspectiva histórico-social. São Leopoldo : Sinodal, CEBI, 1996.
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SAMPAIO, Tânia Mara Vieira. Oséias: uma outra profecia. Revista de Interpretação Bíblica Latino-americana. Petrópolis / São Leopoldo, n. 35-36, p. 153-164, 2000.
SCHWANTES, Milton. “Faze sair meu povo Israel do Egito” : anotações sobre Êxodo 3. Estudos de Religião, São Bernardo do Campo, n. 14, p. 23-34, 1998.

Proclamar Libertação 27
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia