Prédica: Hebreus 1.1-4
Leituras: Isaías 52.7-10 e João 1.1-11
Autor: Uwe Wegner
Data Litúrgica: Natal
Data da Pregação: 25/12/2002
Proclamar Libertação – Volume: XXVIII
Tema: Natal
l. Introdução
a) Pergunta-se, com razão, se a delimitação que compreende os versículos l até 9 não é um pouco arbitrária. O texto vai, inicialmente, do v. l até o 4. Os v. 5-13 são claramente uma comprovação escriturística do enunciado do v. 4, que afirma ter Cristo, o Filho, herdado um nome superior ao dos anjos. Neste espaço, há uma tripla comparação entre o Filho e os anjos (v. 5-6 + 7-12 + 13). A delimitação da nossa perícope termina, curiosamente, no meio da segunda comparação. Será porque (» amor à justiça e o ódio à iniquidade (v. 9), características do Filho, servem-se mais facilmente para a pregação no natal do que a elevada cristologia que permeia todo o restante do texto? É difícil saber o que exatamente motivou a comissão litúrgica a propor o final do texto no v. 9. De qualquer forma, como o assunto anjos é encerrado só no v. 14, as opções de delimitação são várias e cada pregador/a terá que decidir-se a este respeito. A considerar-se a estrutura natural do texto, a prédica poderia, a nosso ver, compreender os v. 1-4, 1-6, 1-13 ou, então, 1-14. Nós mesmos, optamos pelo texto mais curto, Hb 1.1-4.
b) A estrutura de Hb 1.1-4 compreende os seguintes momentos:
1) V. 1-2a: a comunicação de Deus no passado e presente: Deus falou…
Há uma correspondência interessante entre o v. l e 2a, que já Calvino colocou nos seguintes termos:
Deus falou outrora através dos profetas (agora) pelo Filho aos pais a nós de diversas formas e maneiras de forma definitiva (nestes últimos dias)
2 ) V. 2b: a ação de Deus no Filho (sujeito é Deus)
– a quem constituiu herdeiro de todas as coisas
– pelo qual fez o universo
3) V. 3-4: características do Filho (sujeito é o Filho) 3a) Em relação a Deus: ele
– é o resplendor da glória de Deus
– é a expressão exata do ser de Deus
3b) Em relação ao universo: ele
– sustenta todas as coisas pela palavra do seu poder
3c) Em relação à humanidade: ele
– fez a purificação dos pecados
3d) Em relação ao seu atual estado: ele
– encontra-se assentado à direita da majestade de Deus
– é superior aos anjos, tendo herdado um nome mais excelente do que eles.
c) Quanto ao conteúdo, vários pesquisadores chamam a atenção para os enunciados dos v. 2b-3 que, muito provavelmente, dada a sua semelhança com textos como os de Jo 1.1-14, Fp 2.6-11, Cl 1.13-20 e l Tm 3.16, apresentam material confessional arcaico, que o autor da carta incorporou ao seu escrito. Alguns pesquisadores aventam a possibilidade de estes versículos terem originalmente feito parte da estrofe de algum hino cristão primitivo, talvez conhecido na comunidade dos destinatários. De qualquer forma, o esquema subjacente é semelhante ao dos textos acima mencionados, apresentando inicialmente a preexistência, depois a encarnação e, por fim, a exaltação de Cristo.
d) A cristologia de Hb l.lss. é de elevada esfera e requer um grau de abstração que pouco condiz com a humildade e vulnerabilidade de um messias-menino nascido em manjedoura, ou seja, com aquilo que as pessoas encontram-se predispostas a ouvir na data do natal. A comunidade terá uma dificuldade natural, sobretudo, com os dizeres da preexistência (pelo qual fez o universo) e da preservação do mundo (sustentando todas as cousas) pelo Filho, em virtude de serem estas funções comumente associadas aos primeiros capítulos de Gênesis e, portanto, ao Deus criador e preservador. Mas também a estreita identificação entre Jesus e Deus no início do v. 3 (Ele é o resplendor da glória e a exata expressão do seu ser) não será facilmente assimilada pela comunidade, que costuma ver mais a Jesus na qualidade de Filho amoroso. Diferente é o caso da exaltação (assentou-se à direita da majestade), que é recitada dominicalmente através do Credo Apostólico. A cristologia elevada e estranha à dogmática comunitária fez com que Rosemarie Wagner-Gehlhaar se pronunciasse da seguinte forma numa meditação sobre Hb 11ss.: Como texto de pregação (para o natal) (…), ele desencadeia antes repulsa do que convite ( )! (Textspuren n 2, 1991, p. 28).
2. Comentários
I. Deus falou pelos profetas e por Jesus
A primeira parte do texto trata da comunicação de Deus. Deus falou e fala. Sua palavra cria história (Is 55.10-11), cria fatos, tem uma vitalidade intrínseca (Hb 4.12). Para Hebreus, ela se caracteriza, sobretudo, por dois aspectos:
a) faz o papel de um auditor, de um raio X: Revela como somos por fora e por dentro, ela nos coloca nus diante de Deus e da sua verdade; ela tira nossa maquiagem, nossos subterfúgios, as aparências…(Hb 4.12s.);
b) é uma palavra que, em relação ao Filho, vem cunhada de sangue (12.24) e sacrifício.
Deus usa mediações na história para comunicar a sua palavra. A primeira é a dos profetas. Estes repassaram a palavra de Deus aos pais que, aqui, significam simplesmente o povo de Israel ao longo de sua história.
A palavra de Deus foi repassada da seguinte maneira: em várias partes e de muitos modos (Almeida: muitas vezes e de muitas manei rãs). A revelação divina é plural. Há palavras de juízo e de graça, de conforto e de exortação, de confronto e de solidariedade, de denúncia e de salvação. Diferentes situações requerem, por vezes, palavras de Deus diferenciadas. Os profetas fazem-nos perceber uma palavra de Deus dinâmica, flexível, adaptada à variedade de situações. O grande problema de uma fé fundamentalista na palavra de Deus é o de negar esta pluralidade, ou seja, de absolutizar uma única ou só algumas de suas manifestações.
O texto diferencia a mediação profética da outra, dada através do Filho. Pelo Filho, Deus falou nestes últimos dias. O autor usa aqui linguagem cunhada pelo AT (p. ex.: Jr 49.39; Dn 10.14) para expressar que, na palavra do Filho, Deus inaugura um tempo novo e especial e, por isso mesmo, último, escatológico. A principal palavra do Filho é, em Hebreus, sua morte banhada de sangue (10.4-9; 12.24). O sacrifício do Filho é superior aos sacrifícios de animais, por ter sido feito em regime de pureza diante de Deus (4.15), de forma pessoal (10.4ss.) e com validade perene (10.11-14). Esta é, para Hebreus, a palavra do Filho, na qual se condensam todas as suas ações e pregação (2.9ss., 5.7-10; 9.11s., 26-28; 10.12).
A esta palavra como meio de comunicação do Filho refere se também o v. 3, quando se reporta ao fato de Jesus ter feito a purificação dos pecados. Purificação significa limpeza. A esta purificarão reporta-se ainda 10.2-4. Através desta passagem fica claro que, em Hebreus, purificação de pecados equivale a sua remoção (10.4,11) e que esta última pressupõe o seu perdão (10.18). Na prática, há um efeito direto sobre as consciências dos cristãos: a consciência pesada de cristãos é assim descarregada, passando estes para o serviço ao Deus vivo (9.14; cf. 10.2,22).
II. A ação de Deus no Filho
a) Jesus é o Filho unigênito e, como tal, o herdeiro das coisas do seu Pai. Como Deus é o Criador de tudo, o Filho foi destinado para ser o herdeiro de tudo. É possível deserdar filhos. Quando damos herança a nossos filhos/as, fazemo-lo por estarmos certos de que a herança estará em boas mãos e será bem administrada. Este terá sido também o propósito de Deus.
b) Pelo Filho, Deus criou o seu universo. Este é um pensamento de difícil assimilação pela comunidade. Como pode Jesus ter co-criado o universo, se nasceu muito tempo depois da criação, em Belém? É claro que, como pessoa, nascido no início da era cristã, ele não foi co-criador do mundo! A Trindade, aqui pressuposta, não deveria ser explorada, muito menos problematizada numa pregação de natal. Uma sóbria aproximação à questão poderia ser a seguinte: Jesus, ao longo do seu ministério, revelou o poder criador de Deus: gerou vida em meio à doença e morte, criou o perdão em meio ao pecado, acalmou tempestades em meio a tormentas. Ele é co-criador, porque participa do e revela o mesmo poder criador divino testemunhado pela Bíblia desde os primórdios da humanidade.
III. Características do Filho em relação a Deus e ao mundo
A primeira afirmação no v. 3 é que o Filho é o resplendor da glória divina. Um comentarista explica: A ideia é a da radiância que irrompe de uma luz brilhante. É (…) como o surgimento repentino de uma aurora gloriosa no levantar do sol (D. Guthrie, p. 62). O termo grego tanto pode significar (ativamente) o resplendor, quanto (passivamente) o reflexo da luz original. O que se quer acentuar é, de qualquer forma, a mesma identidade de ambos.
A segunda afirmação defende ser Cristo a expressão exata da essência divina. No original grego, o termo para expressão exata é charaktér, que designa o carimbo ou o selo numa gravação. Ora, um carimbo ou uma gravação procuram sempre retratar com fidelidade as características do real. A ideia é de que Cristo, em suas características, é totalmente transparente para aquilo queDeus é em sua essência. O que aqui se procura afirmar de Jesus é o que o Evangelho de João diz de outra forma com as seguintes palavras: Quem me vê a mim, vê ao Pai (Jo 14.9; 12.45).
Em relação ao mundo, a afirmação é a de que Cristo sustenta todas as coisas com a palavra do seu poder. Aqui está pressuposto que Jesus já se encontra entronizado à direita de Deus e que, como tal, dá sustentação ao mundo. Em que sentido Cristo sustenta o mundo? A maioria entende assim: Cristo preserva o mundo da fatalidade, destruição e ruína. A maneira de fazê-lo é através da palavra de seu poder, uma ideia encontrada em Hb 4.12, mas também em Ap 19.15. Para ilustrar, eis as palavras que me disse um amigo em certa ocasião: Tem que haver religiões no mundo, tem que haver cultos e pregações. As religiões procuram pregar a justiça, o amor, a paz. Sem isto, as pessoas virariam lobos de si próprias e o mundo submergiria num caos. A palavra de Cristo que sustenta o mundo é, em suma, o amor que pregou, viveu e pelo qual morreu.
IV. Cristo, superior aos anjos e herdeiro de um nome especial
Na pesquisa, é muito discutida a contraposição de Cristo aos anjos, que inicia no v. 4 e vai terminar só em 2.16. Trata-se de uma polêmica diretamente dirigida aos leitores da carta, em razão de uma eventual adoração a anjos no seio das comunidades, como em Cl 2.18? A hipótese é frágil, pois não há referência contra uma tal adoração nas passagens parenéticas subsequentes a 1.1-4, e as duas únicas referências a anjos depois do capítulo 2 são positivas (12.22 e 13.2). Uma outra hipótese é mais provável. A comparação com anjos se impunha ou pela ideia de coexistirem junto ao trono celeste (cf. 1.3 com 12.22: Cristo, segundo 1.3, está à direita da majestade!) ou então pela ideia difundida no judaísmo de serem mediadores entre Deus e os seres humanos. De fato, Hb 2.2 faz menção à palavra falada por meio de anjos, referindo-se à lei do AT (cf. Gl 3.19), mediada por eles. Aqui, em 1.2, temos a palavra do Filho. Se o Filho é superior aos anjos, logo também a sua palavra deve ocupar um grau de excelência maior.
A última afirmação do texto diz ter Jesus herdado um nome mais excelente que o dos anjos. Qual seria este nome? Alguns autores pensam ser este nome Deus, ou então Senhor, e se baseiam em Hb 1.8-9(Deus) e 1.10 (Senhor). A maioria dos pesquisadores, contudo, parte do v. 2 e 5 e entende que o nome é o de Filho/Filho de Deus. Jesus é o Filho unigênito, amado de Deus. Esta confissão ecoa em todos os momentos da vida de Jesus: em seu nascimento (Mt l .23; 2.15), no batismo (Mc 1.11), na transfiguração (Mc 9.7), na morte (Mc 15.39) e na ressurreição (Rm 1.3s.). O próprio Jesus entendeu-se assim, chamando a Deus de Abba, pai querido (Mc 14.36; cf. Rm 8.15/ Gl 4.6), do que dão testemunho também textos como Mt 11.27 e Mc 13.32. No texto de Hb l.lss., o Filho não é meramente contraposto a profetas e anjos, já que tanto uns como outros são enviados de Deus (Hb 1.1,14). Mas não há dúvida de que, para o autor de Hebreus, o Filho é mais excelente que ambos: a sua palavra é escatológica e, portanto, última no tempo e na qualificação (1.2); e seu nome é superior ao nome dos anjos. Aqui convém lembrar que, para a época, o nome traduzia a essência de uma pessoa. E, se Jesus herdou o nome de Filho de Deus, então isto significa que a essência de sua pessoa tem uma relação de proximidade e intimidade com Deus que supera todas as outras. No português temos o ditado: Tal pai, tal filho! É exatamente isto que quer expressar este atributo de Filho: Em Jesus, temos a essência do Pai conosco; aquilo que ele diz, é o que Deus diria; o que ele faz, é o que Deus faria. Não é por nada que a maior característica do Filho em relação a Deus no NT é a observância e o cumprimento da sua vontade: Não seja o que eu quero, mas o que tu queres (Mc 14.36); eu faço sempre o que lhe agrada (Jo 8.29); não procuro a minha própria vontade, e sim, a daquele que me enviou (Jo 5.30); embora sendo Filho, aprendeu a obediência pelas coisas que sofreu/ obediente até a morte, e morte de cruz (Hb 5.8s.; Fp 2.8). Assim também se explica que a pertença à nova família de Deus se dê segundo uma condição: Quem fizer a vontade de Deus, este é meu irmão, irmã e mãe (Mc 3.35).
3. Meditação
Devemos perguntar, inicialmente: por que o autor de Hebreus escreveu um prólogo tão lisonjeador a Cristo no início de sua carta/ sermão? Por que todo esse somatório de atributos divinos em tão poucos versículos? O que se pretendia com uma introdução tão contundente de glória, poder e soberania de Cristo, superior a profetas e anjos, ou seja, aos usuais mediadores das palavras de Deus?
O caráter desta introdução explica-se suficientemente a partir da situação da(s) comunidade(s) endereçada (s). As comunidades estão sob ameaça de perseguição e morte, de derramamento de sangue (12.4; l3.3). As perseguições, corajosamente enfrentadas no passado (10.32-35), provocam no presente a letargia e covardia: as mãos encontram-se decaídas, os joelhos frouxos, as cabeças para baixo (12.13). A tentação de passar para o anonimato (10.25) e tornar-se tardios em ouvir (5.l l). A consequência é que uma espiritualidade, antes adulta e sólida, tende a transformar-se em infância espiritual (5.12-14).
Dentro desta situação, a função do prólogo em Hebreus é a de encorajar estes cristãos vacilantes. O Cristo assentado à direita da majestade não é outro senão aquele que também padeceu perseguição e r cruz (12.2). Olhando para o estado atual do Cristo ressurreto, as comunidades devem ser estimuladas a entender que o sofrimento não é o fim amargo de um caminho, mas, como ocorreu com Cristo, a pedagogia divina (12.4-13) para um posterior estado de ser junto a Deus : (…) olhando para o Autor e Consumador da fé, Jesus, o qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da infâmia, e está assentado à destra do trono de Deus (12.2).
4. Considerações para a pregação
É muito diversificada a situação das comunidades de hoje. A maioria delas não se encontra sob o impacto de perseguições e sofrimento em virtude de sua confissão. Logo, não há necessariamente uma correspondência entre a situação das comunidades destinatárias da carta e as de hoje.
Mas há uma data especial para a pregação deste texto: o natal de nosso Senhor, dia 25 de dezembro. É, pois, necessário que se considerem os enunciados do texto frente à comemoração do nascimento de Jesus.
Nossa sugestão para a pregação não é a de contrapor Cristo aos profetas e anjos, mostrando o que os une e o que os separa, em que Cristo é igual e em que excede os mesmos. Também não achamos necessário enfatizar a cristologia de exaltação que permeia os v. 2b-4, mesmo porque o evento de natal destaca mais a humanidade de Jesus. A proposta vai mais no sentido de destacar a condição de Filho em Jesus e sua tarefa de trazer a palavra de Deus à humanidade,
a) No natal nasceu Jesus: ele é considerado Filho de Deus
Aqui caberia explicar o que representa para os cristãos que Jesus foi aclamado por Deus como seu Filho. A principal característica de um Filho é a semelhança e a identidade com os pais. Isto se mostra pelo aspecto exterior. Alguns dizem: Ele é a cara do pai. Outros: Ele é a cara da mãe. Filhos têm também a voz parecida com a dos pais, o jeito de andar, de reagir. Por influência dos pais, os filhos possuem igualmente determinados comportamentos, valores, opções que traem o seu grau de proximidade e parentesco. Um pai torcedor do Flamengo geralmente tem filhos/as flamenguistas, o do Grêmio geralmente filhos/as gremistas. Por isso, o ditado popular reza: tal pai, tal filho. O texto de Hb 1.1-4 aplica estas verdades para a relação entre Deus e Jesus quando afirma possuir Jesus o charaktér, ou seja, as características de Deus, e ser um reflexo/resplendor da sua glória (v. 3a). Em suma: pelo Filho, Deus se torna transparente para nós, acessível e compreensível.
b) O Filho é a palavra de Deus a nós: Deus fala pelo seu Filho
As religiões e a religiosidade estão em alta na atualidade. As pessoas desejam e buscam o contato com o divino, a aproximação a Deus. Esta aproximação se faz de diversas maneiras: oferta de sacrifícios, meditação mística e transcendental, êxtase. O natal é a comemoração de um caminho diferente para o encontro com Deus: não é a nossa busca e o nosso esforço para encontrar Deus que se destacam, mas o caminho da vinda de Deus a nós, no menino e na pessoa de Jesus. O natal inverte a busca: é Deus quem se comunica, é ele quem se aproxima, é ele quem vai em busca. O mais importante não é encontrá-lo, mas deixar que ele nos encontre. Como diz o Evangelho de João: ele abre uma tenda em nosso meio, vem visitar-nos e espera ser acolhido (Jo 1.11,14). Tudo então vai decidir-se nisto: se nós estamos ou não dispostos a dar acolhida a esta visita de Deus em nosso meio, na nossa vida, na vida de nossas localidades e sociedade.
Sempre que alguém nos visita abre-se um processo de comunicação. Algumas visitas são gostosas: a gente ri, conversa, canta, discute coisas e nos sentimos bem na companhia das pessoas visitantes, pois há uma comunhão de ideias e um respeito mútuo; quando elas vão embora, deixam saudades. Outras visitas são indesejadas: não há sintonia entre as pessoas, a gente tende a sentir-se desrespeitado ou explorado e damos graças a Deus quando este tipo de visita vai embora. O natal pode ser comparado exatamente a uma visita que abre um processo de comunicação entre Deus e as pessoas. E, assim como nos profetas, também em Jesus a linguagem era plural: consistia de partes diversas e de formas variadas. Algumas pessoas sentiam-se bem em acolher Jesus, gostavam do que ele falava, daquilo que era como pessoa, daquilo que ele dizia e fazia em nome de Deus, enfim, da linguagem com que se comunicava em sua maneira de falar, agir e ser. Mas havia também muitas pessoas que não tinham nenhum interesse em receber a visita de Jesus: elas não comungavam com aquilo que ele dizia e muito menos com aquilo que fazia. Por que não?
c) O que Deus tem para nos comunicar: a linguagem própria de Deus
Aqui entramos no mistério do natal, no modo de comunicação de Deus, na maneira mais exata de ele falar a nós, ou seja, no mistério da sua linguagem. Cada pessoa tem uma determinada maneira de se coomunicar – é a sua linguagem. A gente pode se comunicar com um olhar sorridente ou ríspido, com mãos acolhedoras ou com mãos que se fecham para outros, com um sorriso ou um olhar sisudo, com palavras tenras ou ríspidas, com a maneira de ser, com aquilo que a gente faz ou deixa de fazer. E assim também é com Deus. Em Jesus, no seu nascimento, vida e morte, Deus fala uma linguagem toda especial para nós – é a sua palavra. Que linguagem é esta que Deus nos comunica em Jesus?
Neste espaço, cada pregador/a poderia destacar aspectos do ministério de Jesus que lhe parecem particularmente relevantes para a situação dos ouvintes. Por exemplo:
– Jesus nasceu humilde (estrebaria, manjedoura): Deus identifica-se com a humildade e é contrário ao orgulho que descrimina e separa;
– Jesus buscou os perdidos, os pecadores, as prostitutas, os pobres: Deus não quer a exclusão social ou religiosa – procura integrar a todos no povo de Deus;
– Jesus foi contrário à violência, em favor do amor aos inimigos – o que quer Deus dizer com isto em meio a um país de violência?
– Jesus veio dar testemunho da justiça e verdade, em meio a um mundo de corrupção e exploração – a palavra de Deus denuncia e não se omite diante das injustiças;
– Jesus não construiu a sua felicidade sobre o sacrifício alheio: ele sacrificou-se para a felicidade de todos. Que linguagem é esta dentro de um mundo que procura socializar as perdas, mas particularizar lucros e benefícios?
Estas são algumas das palavras que Deus faz chegar a nós pelo Filho nascido em Belém. Elas representam uma linguagem muito diferente daquelas que estamos acostumados a ouvir na nossa vida do dia-a-dia. Ela não confirma o mundo, mas quer transformá-lo.
d) A palavra de Deus sustenta o mundo
O texto diz que Jesus sustenta todas as coisas pela palavra do seu poder (v. 3). A palavra que Jesus veio comunicar da parte de Deus foi uma palavra de perdão, reconciliação, verdade, solidariedade, de não-violência ativa. A fé do autor do prólogo de Hebreus é que esta linguagem, tão diferente da linguagem com que no mundo as pessoas costumam comunicar-se, é a única que dá conservação e sustentação à vida. De fato, o que vemos e percebemos ao nosso redor é que violência gera violência, ódio gera morte, orgulho gera discriminação, egoísmo gera exploração, mentira gera corrupção, injustiça gera pobreza. Assim sendo, o natal é um convite para desfazer-se de uma linguagem que fere e desune as pessoas, para aquela outra de Deus, que Jesus tão ricamente testemunhou com palavras, ações e a doação de todo o seu ser na cruz.
5. Recursos para a pregação
– Ref. ao item Jesus é o Filho: projeção ou colocação de duas imagens semelhantes lado a lado. O grau de parentesco é determinado pelo grau de semelhança.
– Ref. ao item Deus fala pelo seu Filho: cartaz com fotos, mostrando as diversas formas que podem ser usadas para a gente se comunicar com outras pessoas (alguém sorrindo, alguém sisudo, alguém ajudando a outros, etc.).
– Ref. ao item A linguagem própria de Deus: apresentação de símbolos, como a cruz, uma manjedoura, um gesto de acolhimento ou de perdão.
– Ref. ao item A palavra de Deus sustenta o mundo : alternar fotos com imagens de destruição e construção, de guerra e promoção da paz, de violência e reconciliação, de ódio e perdão.
Bibliografia
GRÄSSER, Erich. An die Hebräer: 1. Teilband: Hebr 1-6. Zürich: Benzinger, 1990.
GUTHRIE, Donald. Hebreus: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova e Mundo Cristão, 1984.
HOEFELMANN, Verner. Alento para os cansados e atemorizados. Estudos Bíblicos, Petrópolis: Vozes, n. 34, p. 9-14, 1992.
KUNERT, Augusto Ernesto. Meditação sobre Hebreus 1.1-9. In: KILPP, Nelson, WESTHELLE, Vítor (Coords.). Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1990. vol. XVI, p. 70-76.
VOIGT, Gottfried. Das heilige Volk: Neue Folge: Reihe II. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1979. p. 52-58.
Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia