Prédica: Jeremias 31.1-13
Leituras: Lucas 2.41-52 e Hebreus 2.10-18
Autor: Martin Norberto Dreher
Data Litúrgica: 1º Domingo após Natal
Data da Pregação: 28/12/2003
Proclamar Libertação – Volume: XXIX
Tema: Natal
1. Introdução
Os capítulos 30-33 do livro do profeta Jeremias formam uma pequena coletânea, que contém palavras proferidas em épocas distintas, que vão dos dias de Jeremias até o tempo pós-exílico. O que as une são palavras de salvação. Foram escritas “num livro” (30.2). As palavras contidas nos capítulos 30 e 31 provêm dos primórdios da atividade de Jeremias e foram proferidas em relação ao Norte de Israel, como está a indicar 31.5-6: “Ainda plantarás vinhas nos montes de Samaria….”. Posteriormente, as palavras foram aplicadas a todo o Israel. Em todos os casos, nos capítulos 30 e 31 são anunciados o retorno e a vida feliz na pátria. Em 31.31-34 aparece uma promessa distinta, dirigida originalmente a todo o Israel. Trata-se da promessa de nova aliança. O “novo” reside no fato de que a relação de Deus com o seu povo será radicalmente modificada. Está terminado o período da aliança do Sinai. A nova aliança está determinada pelo fato de que a vontade de Deus será, definitivamente, escrita no coração do povo. As palavras da instituição da Santa Ceia referem-se a essa passagem.
2. O texto
v. 1 – A fórmula com a qual foi estabelecida a aliança entre Deus e seu povo no Sinai aparece no primeiro versículo: “Serei o Deus de todas as tribos de Israel, e elas serão o meu povo”. Aqui está o ponto de partida para falar de salvação. 31.1 apresenta a base para a leitura dos demais versículos da perícope.
v. 2-3 – “Com amor eterno eu te amei.” Assim como a aliança é a temática da perícope, assim as concepções e tradições presentes nos diversos versículos estão relacionadas ao culto prestado a essa aliança. A idéia da salvação está determinada em Jeremias pela tradição sacral, na qual era celebrada a história da salvação do povo de Deus. Por isso, ao anunciar novo período de salvação, ele se vale da tradição conhecida por seus ouvintes. Logo, a primeira palavra de salvação parte da teofania e da auto-revelação de Deus, que se encontra no centro da memória da salvação: Deus se revelou no tempo em que peregrinávamos no deserto.
Ao rememorar a aliança estabelecida por Deus com seu povo no deserto e ao caracterizar essa rememoração como Palavra de Deus, Jeremias situa seus ouvintes no âmbito da primeira revelação de Deus. Quando Deus fala, repete-se o que prometeu aos pais. “No deserto” não designa o local em que se encontram os deportados do Norte de Israel; “o povo que se livrou da espada” não são os israelitas aos quais Deus falou no Sinai. “O povo que se livrou da espada” são os israelitas que sobreviveram à derrocada e ao desaparecimento de seu reino. A eles se destina a promessa de Deus e a palavra outrora dita no Sinai. E isto significa que esse povo encontrou misericórdia junto a Deus. Na linguagem cúltica: Deus vai lhe “dar descanso” (cf. Sl 95.11). A nova salvação deve ser entendida a partir da antiga. A certeza dessa nova salvação se confirma na presença de Deus, que aparece ao povo na teofania “de longe”, revelando o seu ser. O amor de Deus por seu povo jamais se apagou. A nova salvação brota do fundamento da fidelidade de Deus, presente desde o início (eterno). Na formulação de Jeremias não só aparecem todo o amor e a dedicação de Deus, mas também toda a sensibilidade de sua fé em Deus.
v. 4-6 – A reedificação. Com o v. 4 nossas atenções são dirigidas para a pátria. Javé não só encaminhará o retorno dos exilados (v. 2), mas também a reconstrução do povo e de sua terra. Na expressão “virgem de Israel” manifesta-se o antigo amor de Deus por seu povo, que encontra sua expressão na manifestação humana do cortejo festivo. O povo se beneficiará da colheita dos novos vinhedos plantados nos montes da Samaria. O resumo de todas essas alegrias está expresso no v. 6: o povo restaurado sai em peregrinação para a festa de Javé em Jerusalém. Os vigias sobre o monte de Efraim anunciam o início da festa, na qual os peregrinos irão celebrar, gratos, os feitos salvíficos de seu Deus. Na confissão “Javé, nosso Deus” expressa-se o eco que responde à promessa da salvação. A revelação de Deus e a resposta de parte da comunidade são expressões maiores do culto em Israel e da comunidade cristã; nelas se baseia a visão que Jeremias tem do futuro.
v. 7-9 – O retorno. O convite ao júbilo por causa do que aconteceu a Jacó e o louvor cantado da ação salvadora de Javé são palavras dirigidas à comunidade festiva que celebra a nova salvação (v. 6) no contexto da imagem do futuro, desenhada por Jeremias a partir da Palavra de Deus. Jacó deve ser celebrado como o povo escolhido por Deus dentre todos os povos. Celebrando a dávida, contudo, não se pode esquecer o doador. A ele se dirige o hino, no qual a comunidade deve confessar a maravilhosa ação salvadora de Deus, que eleva o “restante de Israel” a essa condição. Partindo do hino da comunidade, o próprio Deus toma a palavra no v. 8. Promete que ele próprio reunirá e trará de volta o restante de Israel dos países longínquos, onde se encontra cativo. O maravilhoso nessa ação salvadora e ao mesmo tempo o cuidado paternal de Deus são ilustrados pela referência especial que é feita a cegos, aleijados, mulheres grávidas, parturientes. Ninguém é deixado de lado. A restauração total de Israel é empreendida e descobre-se que o “restante de Israel” constitui “grande congregação”. A grande mudança que ocorre é exemplificada no cortejo dos que retornam chorando: o consolo de Deus acompanha-os cuidadosamente. Eles estão tão protegidos como um rebanho bem conduzido. O resumo contido no final da promessa e que, semelhantemente ao ocorrido no v. 3, reúne passado e presente anuncia: o amor paterno de Deus, no qual está ancorada a filiação do povo, e o fato de que, apesar dos pesares, Israel é o “primogênito” de Javé. Assim como o v. 2s, esta palavra encerra uma visão do coração paterno de Deus: nele toda a salvação do passado e do presente tem seu ponto de partida.
v. 10-13 – A mensagem aos povos. A notícia da ação salvadora de Deus e seu louvor no cântico não ficam restritos ao povo eleito por Deus. Como Javé é o Senhor do mundo, o que ele faz a Israel tem significado para os povos. Os povos são admoestados a ouvir a mensagem da salvação e a levá-la às “terras longínquas do mar” (ilhas). Quando se trata de anunciar a glória de Deus no mundo, o mundo dos povos, dos gentios, não pode ficar na posição de mero espectador. Convocados a cantar um hino de louvor a Javé, que se evidencia como Senhor da História, tanto no juízo sobre Israel quanto em sua salvação, os gentios são incluídos na grande comissão de anunciar a mensagem da salvação ao mundo. Jeremias não está inovando. Ele só repete o que já é cantado nos salmos de Israel (cf. Sl 47.2, 9s; 96.1s; 98.2s; 99.1s; 100.1s). Quando os povos vêem o que Deus fez a Israel, tanto no tocante ao castigo quanto no tocante à salvação, eles só podem participar do louvor de Javé. Temos aqui o mais profundo da teologia de Jeremias.
No v. 11 segue um hino que canta e expõe a salvação. Em sua introdução temos uma sentença fundamental: o próprio Deus é quem redime e liberta seu povo do poderio dos assírios, do “mais forte”. Essa mudança inacreditável é milagre que procede do Deus que governa a história. Isto também será reconhecido pelo povo liberto. Jeremias imagina esse reconhecimento na forma da romaria para a festa de Javé no monte Sião. Todo o Israel concorre para ela, para celebrar a “salvação de Javé”. Há júbilo e gratidão por causa da bênção visível de Deus, que se manifesta na produção dos campos e dos rebanhos. Os celebrantes estão cheios de alegria por causa da rica bondade e da bênção divina. Tranqüilidade brota, também para o leitor do texto, da imagem do jardim irrigado. Sentimento de proteção flui da promessa de que não mais hão de desfalecer. Repete-se o que observamos no v. 4: a alegria que vem de Deus reunirá jovens e velhos naqueles dias de salvação.
No final, explode a certeza. A descrição do profeta é complementada por palavra do próprio Deus: É Ele mesmo quem com sua salvação transforma a tristeza dos corações em alegria. A luz de seu consolo emerge, brilhante, das profundezas do sofrimento.
3. Meditando
Passados os festejos do Natal, o pregador terá novamente diante de si a comunidade com a qual esteve a dialogar durante o ano e com a qual dialogará no novo ano que se aproxima. Ele e ela estão reunidos em culto. Aqui cabe lembrar a esperança da comunidade reunida. Para falar dessa esperança, é bom caminhar ao longo do texto de Jeremias. Caso a comunidade tiver Bíblias em suas mãos, o pregador poderá caminhar com ela ao longo do texto, lembrando o que o profeta anunciou e o que nos cabe anunciar hoje:
1 – Deus será Deus de todos. Todos serão sua comunidade;
2 – No culto, celebramos essa esperança;
3 – Nele, Deus se nos revela, assim como se revelou no Sinai, assim como se revelou a nós através de Jesus, no Natal, nos seus atos, na Sexta-feira Santa, na Páscoa;
4 – Deus se revela à comunidade que está no deserto, como agora (é bom lembrar as dificuldades pelas quais a comunidade e o meio no qual está inserida estão passando);
5 – No entanto, Natal nos diz que novamente encontramos misericórdia junto a Deus. Deus nos quer dar “descanso”;
6 – O amor de Deus por nós jamais se apaga. Nós nos podemos desviar de Deus; Ele não se desvia de nós;
7 – Haverá novas colheitas. Vamos poder festejar, celebrar culto e louvor, confessando “Javé, nosso Deus”;
8 – Deus mesmo nos promete, com sua vinda em Jesus, reunir-nos em sua comunidade, sem deixar ninguém de lado, nem os cegos, nem os coxos, nem as parturientes;
9 – Mesmo que sejamos poucos, no louvor vamos descobrir que somos muitos;
10 – O Deus que veio em Jesus é um Deus que acompanha, cuidadosamente, seu rebanho: somos comunidade amada por Deus;
11 – Por outro lado, o Natal não vale só para nós. Os pastores puderam participar dele; os astrólogos do Oriente também puderam vir; a criação dele participa. O Deus que veio a nós em Jesus é o Senhor da História, de todos os povos e nações, de toda a criação. Todo o mundo está chamado a falar a todos desse amor de Deus que se revela em juízo e graça; mesmo os castigados por causa de sua desobediência continuam a ser amados por Deus;
12 – A alegria que vem do Natal quer levar-nos todos para a festa de Javé. Nós, os que viemos da Festa, estamos convidados a caminhar para a Festa. Isto não é esperança humana, é Palavra de Deus, feita Palavra em Jesus;
13 – Podemos viver essa alegria, antecipadamente, no culto, no sacramento.
Bibliografia
KIRST, Nelson. Jeremias. Textos selecionados. São Leopoldo: Faculdade de Teologia, 1984. Vls. I-III.
WEISER, Artur. Das Buch Jeremia, Kap. 25.15-52.34 (ATD 21). Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1969.
Proclamar Libertação 29
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia