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Prédica: Isaías 61.10-62.3
Leituras: João 1.1-18 e Efésios 1.3-6,15-18
Autor: Haroldo Reimer
Data Litúrgica: 2º Domingo após Natal
Data da Pregação: 05/01/2003
Proclamar Libertação – Volume: XXVIII
Tema: Natal

1. O clima da celebração

As celebrações e as festividades de natal e ano novo já passaram. Os muitos votos de feliz natal e próspero ano novo já deram lugar às primeiras experiências no ano iniciado, para muitos, com mais contas a pagar, para outros, na mesma luta por sobrevivência e dignidade. Em meio a esses sentimentos, a celebração poderia e deveria resgatar, desde o ponto de vista da fé, as bases firmes da esperança e do sentido da existência na fé, como pessoas e como comunidade.

As leituras previstas amparam bastante bem o texto de pregação. Tanto o evangelho quanto a epístola destacam a dimensão da visita de Deus e da dispensação da gratuidade do amor de Deus por toda a sua criação, que o aceita como Deus vivo e verdadeiro. Alguns versículos destacam isso muito bem: a todos quantos o receberam deu-lhes o poder de serem feitos filhos (e filhas!) de Deus (Jo 1.12); (…) assim como nos escolheu, nele, antes da fundação do mundo (…) (Ef 1.4). Isso é motivo de alegria e deve ser relembrado explicitamente para a comunidade reunida em culto. Pois, tanto num texto quanto no outro é destacado o fundamento da alegria verdadeira: (…) o Verbo se fez carne e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e vimos a sua glória (Jo 1.14); (…) tem nos abençoado com toda sorte de bênção espiritual (Ef 1.3).

Com base nas bênçãos recebidas na visita de Deus, a comunidade chamada e escolhida deveria ser uma amostra do propósito redentor da visita de Deus: ser um jardim de justiça (Is 61.11) em meio a um inundo que ainda não aceitou plenamente a graça da visita divina.

Os hinos deveriam procurar reforçar este clima da celebração, destacando o motivo da visita divina em Jesus Cristo, o seu propósito redentor e a necessária resposta em fé da pessoa e/ou da comunidade visitada pela graça de Deus: tenho ouvido a fé que há entre vós no Senhor Jesus e o amor para com todos os santos (Ef 1.15).

Assim, a pregação pode destacar os elementos centrais do texto de Isaías, ou mais precisamente do Terceiro Isaías. Quem tiver à mão o volume 25 de Proclamar Libertação pode-se deixar inspirar por algu¬mas das criativas sugestões de Louraini Christmann (1999, p. 68-73) para uma celebração com recursos teatrais.

2. O contexto de Is 61.10-62.3

Na preparação exegética do texto, convém lembrar que, segundo a opinião da pesquisa, o livro de Isaías está dividido em três grandes blocos, associados a épocas diferentes de atuação de profetas da tradição isaiana. O primeiro bloco, capítulos l a 39, é entendido, em boa parte, como legado do profeta Isaías do século VIII a. C. O segundo, que abrange Is 40-55, é indicado como sendo o registro das palavras de ânimo e de disputa de um profeta da tradição isaiana durante o exílio de uma parte do povo na Babilônia. O terceiro bloco, enfim, que abrange os capítulos 56 a 66, forma uma unidade literária própria. Os textos aí reunidos e organizados numa estrutura concêntrica artisticamente muito bem elaborada (Croatto, 2000) tematizam a exigência da prática do direito e da justiça (Is 56.1; 58.8; 61.3,10-11; 62.1) frente a uma situação marcada por vários tipos de violência. Apesar de haver três momentos históricos distintos com situações concretas diferentes, todo o material foi colecionado na tradição de Isaías, procurando, assim dar uma visão geral, obra da redação final, que provavelmente ocorreu no fim do período persa (Croatto, 2000, p. 43).

Não se têm informações seguras sobre a identidade do autor-profeta ou do grupo de suporte que colecionou e transmitiu as palavras em Is 56-66. Pelas várias informações espalhadas no texto, presume-se que este profeta anônimo da tradição de Isaías tenha atuado no período do pós-exílio, provavelmente no período anterior ou concomitante à reconstrução do templo, portanto em torno de 520 a 515 a. C. (Sicre, 1996, p. 31 Is.). O texto de Is 64.10 parece pressupor o templo ainda destruído e, em Is 66.1-2, parece haver um questionamento categórico em relação ao programa de reconstrução do templo: Que casa me edificareis vós?.

É bem possível e provável que estes anos agitados tenham sido a época de expressão de muitas das palavras do Terceiro Isaías. Sem dúvida, a administração estrangeira persa impôs tributações e dificuldades ao povo na mesma medida em que possibilitou a reorganização cultural e religiosa de Judá. O problema maior, porém, parece ter sido a administração interna. Is 56.10-12, com palavras fortes, dá uma ideia da avidez das lideranças judaítas. A busca do lucro pessoal parece estar em primeiro plano. Também a violência dos líderes contra os mais simples do povo marcou este período. É o que se pode ler em Is 59.3-8.

É um conjunto de acusações genéricas que deixam (sic!), porém, uma impressão clara de violência generalizada. É a lei do mais forte que governa (Grenzer, 2001, p. 115). O texto de Is 59.14 parece ser um resumo disso: o direito se retirou, e a justiça se pôs de longe; porque a verdade anda tropeçando pelas praças, e a retidão não pode entrar. A consequência disso é a existência de contritos e abatidos (Is 57.15), de famintos e desabrigados (Is 58.7,10), de oprimidos (Is 58.10), de quebrantados de coração, cativos, presos (Is 61.1-2) e de aflitos e abatidos de espírito (Is 66.2). Estas palavras diversas provavelmente expressam e atestam a existência de várias categorias de pessoas empobrecidas dentro do tecido da sociedade judaíta neste período.

Esse quadro é o pano de fundo das palavras do profeta que estão imbuídas da relevância e centralidade da prática do direito e da justiça como condição para uma vida na proximidade de Deus. O Terceiro Isaías tem a ética da justiça como o fio vermelho de suas palavras. Justamente o reinar da injustiça é que provoca uma separação em relação a Deus. As vossas iniqüidades fazem separação entre vós e o vosso Deus (Is 59.2). Segundo o profeta, a práxis de vida marcada pela ética da justiça é que dará as bases para a verdadeira reconstrução das relações internas no país. Não haverá vida digna para o povo se não houver ética baseada em justiça, da mesma forma que não haverá paz se ela não brotar da justiça (Is 59.8). Também a salvação depende da prática da justiça (Is 59.11). Ética e justiça são tarefas do cotidiano! Uma religiosidade de práticas rituais (jejuns, etc.) nem sempre expressa a busca por justiça. A palavra de Deus quer ser o fundamento para esta práxis de justiça, e a própria práxis pode ser um freio contra o subjetivismo e a individualização extremada dentro do paradigma da pós-modernidade e, simultaneamente, uma colocação de sinais da verdadeira fé que sempre se expressa no amor cotidiano.

Este é o pano de fundo do texto que servirá de base para a reflexão. Vamos destacar mais alguns elementos a partir do próprio texto.

3. Meditando sobre o texto de Is 61.10-62.3

Os versículos finais de Is 61 são expressão de louvor e alegria. O verbo hebraico shush é recorrente para expressar alegria e júbilo (Is 35.1; 65.18; SI 68.4). Esse motivo de alegria é argumentado duas vezes através de frases iniciadas por ki / pois, pelo fato de. Assim, os feitos de Deus são apresentados como motivos da alegria (do povo) expressos na palavra do profeta.

O motivo da alegria já perpassa todo o capítulo de Is 61, chegando neste ponto ao seu ápice. A salvação ou ajuda trazida por Javé-Deus para o povo constituem razão da alegria. O profeta (e o povo) sente-se ou se sabe envolto por Deus, devidamente ornamentado como noivo ou noiva. Essa roupa da alegria é a veste da salvação e o manto da justiça (v. 10). Convém aqui observar, como já fez Christmann (1999, p. 70), que é preferível manter uma tradução literal do versículo, mantendo o termo justiça (sedaqah) do que a expressão capa da vitória, como fazem as versões da Tradução na Linguagem de Hoje. Justiça expressa mais do que vitória. Há muita vitória que não tem nada a ver com justiça.

O v. 11 muda o cenário do imaginário profético. Se antes era a indumentária, agora se trata do mundo agrícola da roça ou do jardim. Parte-se de uma lógica causal: a terra da roça fértil (observe o paralelismo entre erets/ terra e gan / jardim) faz brotar o que nele se semeia, Javé fará brotar a justiça e o louvor. Para o trabalho com o texto, pode-se estabelecer uma relação entre a terra e o jardim, como relacionados com o povo de Israel e, por extensão, com a comunidade ouvinte desta palavra. Toda a criação, mas particularmente a comuni¬dade de fé, é o jardim em que deve haver frutífera plantação de justiça. Convém incluir aqui a dimensão da comunidade como canteiro da plantação de Deus. As pessoas batizadas e a comunidade de fé são esse canteiro trabalhado por Deus, por sua graça e por sua palavra, com o propósito de que a obra do amor de Deus frutifique em ações de justiça dentro da comunidade.

A dimensão da graça de Deus como momento anterior à resposta em ações de justiça no vasto canteiro da criação e do mundo está devi¬damente resguardada nos tempos dos verbos de Is 61.10-11, que indicam para ações passadas.

A passagem para o capítulo de Is 62 indica para a dimensão da perseverança ativa ou de uma fé ativa perseverante. Há como que uma luta interior para que o propósito já vislumbrado na graça de Deus torne-se realidade no presente do cotidiano do povo de Deus. Para que a nova realidade se concretize (cf. as duas ocorrências da expressão hebraica lema'an = para que), há muito espaço e necessidade para a práxis cotidiana. Isso está muito bem expresso pelos dois verbos iniciais no v. 1. O verbo hebraico hashah indica para o sentido de manter-se quieto ou em silêncio (Sl 28.1; 107.29) como fazem os mortos no sheol. Tal postura, porém, é negada enfaticamente pela partícula lo' = não! Transformar o mundo em um jardim de justiça exige fé perseverante no cotidiano. A mesma ideia é expressa pelo verbo shaqat. Em alguns textos dos livros de Josué e Juizes, o verbo é utilizado para expressar o final de um intenso período de disputas (Js 11.23; 14.15; Jz 3.11,30; 5.31;8.28). A negação categórica deste silêncio é justamente a ação do movimento social em prol do objetivo almejado.

No imaginário do texto isaiânico, a meta é que o povo, subsumido nas expressões Judá e Jerusalém, seja coroa de glória e diadema real na mão de Deus (v. 3). Por extensão, isso também vale para a comunidade de fé hoje. A palavra de Deus não descansa enquanto não acontecer a mudança de nome (v. 2, cf. v. 4: em lugar de desamparada, a comunidade será chamada de minha delícia e desposada). Isso se dará em processo de sinergia entre a iniciativa da graça divina c a resposta ativa da práxis humana.

Penso que com estes elementos se consegue construir uma boa reflexão para e com a comunidade reunida no sentido de motivá-la a ser um canteiro da prática da justiça.

Bibliografia

(CHRISTMANN Louraini. 2° Domingo após o Natal. Isaías 61.10-62.3. In: WITT, O. L.; SILVA, J. A. M. da. Proclamar Libertação. São Leopoldo: Sinodal, 1999. v. 25, p. 68-73.
CROATTO, J. Severino. Composição e querigma do livro de Isaías. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, Petrópolis/São Leopoldo, n. 35/36, p. 42-76, 2000.
GRENZER, Matthias. A proximidade de Deus na eliminação da opressão e na caridade ao pobre. Revista de Cultura Teológica, São Paulo, v. IX, n. 34, p. 109-124, jan./mar. 2001.
SICRE, José Luís. Profetismo em Israel. Petrópolis: Vozes, 1996.

Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia