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Prédica: Marcos 1.29-39
Leituras: Jó 7.1-7 e I Coríntios 9.16-23
Autor: Roberto Ervino Zwetsch
Data Litúrgica: 5º Domingo após Epifania
Data da Pregação: 09/02/2003
Proclamar Libertação – Volume: XXVIII
Tema:

Jesus cura e liberta dos demônios!

1.Achegando-nos ao texto

Vivemos num momento crucial da história do mundo. O Brasil está integrado nesta história e sofre devido à maneira como se dá essa integração. A globalização é uma realidade, mas ela não é um processo livre de contradições, como escreveu José Luís Fiori. O país padece de uma economia altamente vulnerável aos humores de um jogo financeiro sobre o qual tem pouco (ou nenhum?) controle. Há poderes que impõem de cima e de fora regras que passam a valer internamente (penso no poder da dívida externa, na política de juros altos, na dependência econômica, tecnológica, cultural, no desemprego crescente, na queda do salário mínimo e dos salários em geral, na política de preços dos produtos agrícolas, na manipulação dos índices de inflação, nos impostos que gravam especialmente a classe média e as pequenas e médias empresas, etc.), de tal forma que o país se torna submisso a interesses que pouco têm a ver com a maioria do povo. Mais de 54 milhões de brasileiros hoje vivem abaixo da linha da pobreza. Isto assusta. A massa de gente que sobra nos programas do governo simplesmente está condenada a vegetar ou então sobreviver a duras penas, do jeito que for possível. O crime, a doença, a desesperança encontram aí terreno fértil para se desenvolver. Triste é constatar que isto não precisaria ser assim. O país tem enorme potencial, mas parece sem rumo e sem projeto. Como pregar num momento como este?

Ao acercar-nos da palavra bíblica, é importante considerar este pano de fundo da realidade no momento em que vamos interpretá-la. Não podemos iludir-nos a respeito das duas referências que nos predispõem a compreender o evangelho contido neste texto: a realidade de hoje no Brasil e o que isto significa para a nossa maneira de pensar, de agir e de crer; e a realidade da palavra de Deus que fala hoje, mas está condicionada pelo contexto em que foi escrita e pela tradição atra-vés da qual chegou até nós.

Pergunto, então: o que chama a atenção na sua leitura de Marcos 1.29-39? Seria um bom exercício colocar no papel as palavras-chave, as questões que o texto propõe e um primeiro vislumbre do escopo que resume este trecho do Evangelho de Marcos. Na preparação da prédica, sugiro que se inclua o trecho dos versículos 21 a 28 do capítulo l, pois, a meu ver, forma uma unidade com o que segue até o versículo 39. Na prédica se poderá então optar por acentuar o conteúdo dos versículos previstos (v. 29-39).

Vejamos, pois, o que temos numa primeira leitura:

a) Cafarnaum e a cena na sinagoga (1.21-28)

– Jesus entra em Cafarnaum com seus discípulos. Ora, Cafarnaum fica na Galiléia, região ao norte de Israel muito estigmatizada e malvista. Aí começa o ministério de Jesus. Cafarnaum fica perto do lago da Galiléia, e Nazaré, de onde procede Jesus, tampouco fica muito longe dali. Estamos, pois, diante de um contexto geográfico.

– É sábado e Jesus se dirige à sinagoga onde vai ensinar. O segundo contexto é o religioso. Jesus vai ao lugar onde se ensina a palavra de Deus. Marcos o apresenta logo no cap. l como pregador da palavra de Deus. Ele vem para anunciar: O tempo está cumprido e o reino de Deus está próximo: arrependei-vos e crede no evangelho (1.15).

– Seu ensino, entretanto, causa forte admiração porque ensina com autoridade. Marcos não diz aqui qual é o conteúdo deste ensino. Isto fica pressuposto. À medida que o seu relato avança, vai ficando cada vez mais claro o que vem a ser o evangelho. Neste ponto, chama a atenção, logo de saída, que o ensino de Jesus se diferencia de outro ensino, o dos escribas.

– Na próxima cena, temos o primeiro diálogo forte do evangelho. Jesus confronta-se com um homem possesso de espírito impuro (esta tradução é melhor que imundo, pois remete ao sistema religioso que dominava em Israel na época, o sistema de pureza e impureza, altamente discriminatório, sobretudo para pessoas doentes e empobrecidas).

– O homem grita e Jesus o repreende. Ele se identifica como sendo um grupo (nós). É com este grupo que Jesus entra em conflito. O conluio tem a ver tanto com a realidade pessoal daquele homem quanto com a realidade religiosa que ele representa, bem como com a realidade social e política que impera na Palestina ocupada pelo poderio romano. Estamos apenas no início do Evangelho de Marcos, e o autor já vai nos adiantando de maneira cifrada e simbólica quem é Jesus, o que ele representa, qual é sua missão, a quem ele se dirige, qual a verdade que anuncia e realiza, de quem se diferencia e a quem combate como arauto de Deus. Neste primeiro diálogo, fica a pergunta: o que vem a ser mesmo estar possuído por espírito impuro?

– O povo presente admira-se e se pergunta: uma nova doutrina? A questão não é levantada tanto em relação ao ensinamento de Jesus, mas muito mais com referência ao fato de que ele tem autoridade sobre espíritos impuros. Além disso, ele pratica abertamente uma ação que vai contra a lei religiosa dominante. Ele pratica exorcismo em dia
desabado.

– Esta sua ação logo o torna conhecido em toda a região circunvizinha. Sua fama corre célere por toda a Galiléia. Voltamos, no final deste primeiro trecho, ao contexto geográfico. Assim trabalha Marcos, ao narrar o início da atividade pública de Jesus, após o chamamento dos primeiros discípulos junto ao mar da Galiléia.

b) Cafarnaum e a cena na casa de Pedro (1.29-31)

– Após o primeiro caso de exorcismo público, Jesus e os discípulos Tiago e João, André e Simão dirigem-se à casa deste último. De um espaço público e conflituoso, Jesus se dirige a um espaço doméstico, acolhedor. Também ali se confronta com a doença.

– A sogra de Pedro está doente, com febre. Jesus ouve a seu respeito e se compadece dela. Aproxima-se da mulher, toma-a pela mão. Ele não permanece impassível e distante. Sua ação mostra um pregador atento, afetuoso e compadecido. Com seu gesto ousado (tocar numa mulher enferma em dia de sábado), ele faz a febre ceder, permitindo que ela se levante. A mulher volta a servir como é costume na casa. Ela volta a trabalhar.

c) Cafarnaum e a cena à porta da casa (1.32-34)
– A continuação da narração põe-nos diante de uma multidão que, ao inteirar-se da fama de Jesus como exorcista e curador, vai a ele buscando a solução dos males que a afligem. É uma cena pública. Marcos adverte que, neste momento, a ação de Jesus já não acontece mais no sábado, mas ao pôr do sol, portanto, segundo a lei judaica, já no início do novo dia, em tempo permitido para a prática da cura.

– O evangelista exagera e diz que toda a cidade coloca-se junto à porta. De qualquer forma, trata-se de muita gente. E a maioria está doente, endemoninhada. Observo que Marcos registra mais uma vez o fato de que os demônios conhecem Jesus, mas ele não permite que eles falem a seu respeito. Estranho aqui esta narrativa: os demônios que causam mal às pessoas sabem quem é Jesus. Os sãos ainda não sabem? É uma cena que nos alerta para o que pode acontecer na prática de Jesus. O povo o procura crescentemente, os conflitos vão se acirrando, mas ele não volta atrás. Ao contrário, segue em frente. Para onde?

d) Cafarnaum, o deserto e a cena do confronto com os discípulos (1.35-39)

– Um dia agitado exige descanso. Mas Jesus dorme pouco. Alta madrugada sai para um lugar deserto para orar. Distancia-se dos fatos, do grupo que o acompanha, da casa que o acolhe, da fama (tentação?) que começa a persegui-lo, e sai em busca de um lugar deserto, para o silêncio da oração. Vai falar com o Pai, que ele chama de Aba (Mc 14.36). A tentação narrada brevemente em 1.12s. reaparece aqui, mas agora diante de fatos concretos de exorcismo e cura.

Ao praticar o bem e distribuir bênção, Jesus é tentado pelo sucesso de suas curas. Precisa afastar-se. Eis aí algo a ser aprofundado. Em todo Evangelho de Marcos, o confronto de Jesus com o mal reaparece insistentemente sob diversos símbolos (espíritos impuros, Satanás, escribas, fariseus e até mesmo os discípulos do seu círculo mais próximo). A oração é a forma por meio da qual Jesus se mantém firme e não se deixa enganar.

– Os discípulos acordam, não encontram o mestre. Saem a procurá-lo. Encontrando-o só, expressam seu desapontamento de maneira muito franca. Até parece que o repreendem: Todos te procuram! Por que te afastas assim? Talvez queiram chamar o mestre à razão. Vais deixar o povo entregue a si mesmo, desamparado como é? A narrativa de Marcos não deixa dúvida. É concisa e direta, sem subterfúgios. Essa é uma característica desse evangelista. Ele escreve de maneira breve, quase telegráfica. Neste trecho, Jesus nem discute com os seus amigos. Sua autoridade revela-se mais uma vez na maneira como olha para frente. Vamos a outros lugares, a fim de que eu pregue também lá, pois foi para isto que vim, diz ele. E saiu percorrendo toda a Galiléia, pregando nas sinagogas e expulsando demônios. Ensino, exorcismo e cura. Estas são as ações que identificam a prática de Jesus no Evangelho de Marcos.

2. Aprofundando um pouco a leitura

O Evangelho de Marcos surgiu por volta de 70 a. C., antes da destruição de Jerusalém. Alguns autores consideram que seu texto provavelmente surgiu em Antioquia ou Roma, seguramente no âmbito de uma comunidade helenista. O grego usado no texto apresenta um estilo simples e popular, mas pode-se perceber em algumas passagens a base lingüística do aramaico da tradição mais antiga sobre Jesus (5.41; 7.34; 14.36; 15.34).

Marcos apresenta uma narrativa bem peculiar. A ótica de sua interpretação deve ser procurada no próprio evangelho, em sua estrutura, linguagem, enfoques. Marcos centra a sua narrativa na questão do discipulado, do seguimento de Jesus. Sua intenção é responder à pergunta: quem é Jesus? No cap. 8.27ss., ele responde: Jesus é o Messias que anuncia a proximidade do reino de Deus. À pergunta de Jesus: Quem dizem vocês que eu sou?, Pedro responde: Tu és o Cristo. Depois, porém, irá repreender Jesus quando este admitir a perseguição e possibilidade da morte. Nesse momento, Pedro assume o papel de Satanás, aquele que engana e desvia do caminho da verdade e da justiça. Cogitas as coisas humanas e não as cousas de Deus, adverte Jesus.

Marcos vai procurando mostrar que o evangelho convoca ao seguimento. Trata-se de seguir Jesus e anunciá-lo adiante. Esta notícia é o evangelho. Marcos fala em evangelho, evangelho de Deus, evangelho de Jesus Cristo. Mas este evangelho ficou oculto até que Jesus fosse crucificado e tivesse vencido a morte pela ressurreição. Jesus só é compreendido plenamente como o Cristo que foi crucificado e que ressurgiu, ainda que seu grupo custasse a entender e tivesse medo dessa boa nova (16.8). Assim, o segredo messiânico pode ser compreendido. Por isso, a atuação de Jesus só pode ser elucidada sob o signo da cruz (3.6) e por aqueles a quem foi dado conhecer o segredo do reino de Deus (4.10-12).

Este evangelho só ocorre na e a partir da comunidade cristã. A comunidade para a qual Marcos escreve é a continuação da atuação histórica de Jesus. É o arquétipo da igreja nascente. É a comunidade dos seguidores e seguidoras de Jesus, o Filho de Deus. É interessante notar que o primeiro a dar testemunho deste reconhecimento da fé é um soldado romano (15.39), sinal de que o evangelho é uma mensagem de alcance universal, pois transcende a comunidade originária de Jerusalém.

Uma observação importante, na visão de Marcos, é o fato de que Jesus está sempre em ação, chamando pessoas. Ir e seguir são verbos complementares em Marcos. Quem segue Jesus constitui um grupo novo, uma nova comunidade que nasceu já no interior do antigo Israel. Este se afastara de Deus e caíra nas malhas de uma religião legalista, cruel e opressora, sobretudo para a maioria do povo submetido à elite religiosa e política.

A sogra de Pedro, a diaconia da casa e o ministério da cura

No trecho imediatamente anterior, vamos encontrar Jesus na sinagoga de Cafarnaum, em dia de sábado, ensinando de uma forma que impressionava seus ouvintes. Estes viam nele alguém que ensinava com autoridade. Isto se revela na maneira como ele enfrenta a religião estabelecida e expõe de uma nova maneira a mensagem do reino de Deus. A cura do homem possesso de um espírito impuro na sinagoga e em dia de sábado leva-o a questionar os que permanecem sob o jugo das leis que discriminam pessoas, principalmente as doentes e empobrecidas. Ao praticar o exorcismo (Cala-te, e sai desse homem!), Jesus entra em conflito com a religião dominante. Quando sua fama chega a Jerusalém, escribas descem de lá para a Galiléia para acusá-lo de estar possuído e fora de si (3.22). Invertem os fatos. Pressentem naquele pregador alguém que atinge em cheio o sistema religioso dominante e o subverte com sua mensagem do cuidado de Deus que liberta e cura. O sistema religioso dominante não deseja pessoas livres e que respondam por seus atos diante de Deus e das pessoas. A religião dominante trabalha com o medo, a discriminação e a subserviência ao poder político.

Ao hospedar-se na casa de Pedro, Jesus é informado da doença de sua sogra, escuta os que intercedem por ela, vai ao seu encontro, toma-a pela mão e a levanta. Esta sequência de gestos terapêuticos livra a mulher de sua febre e ela volta à diaconia da casa, como de costume. Ela se sente novamente livre para trabalhar. Não é preciso entender aqui qualquer atitude de servilismo ou de opressão contra a mulher. Pelo contrário, a ação de Jesus é plena de conteúdo libertador. Ele vai ao encontro daquela mulher, não se recusando a tocá-la. O gesto de levantá-la da cama restitui-a ao convívio da casa. Ela é novamente incluída no cotidiano da vida da família e parece alegrar-se com isso, pois passa a servir os hóspedes.

Na cena seguinte, em que Jesus vai atender a multidão que se encontra à porta da casa, o verbo grego que designa a ação de curar doentes é precisamente terapeuein, que se traduz por cuidar, curar, servir.

As ações de Jesus demonstram alguém que se desdobra em cuidar, curar e servir ao povo. Nisso consiste a terapia nova trazida por Jesus. E ela é a responsável, paradoxalmente, pela tentação que o assola e que o acompanhará até o caminho da cruz.

O bem que faz pode tornar-se o seu pecado. Bem sabemos que Jesus venceu o pecado e o mal, pois ele não se deixou prender pela fama que lhe traziam as curas e os milagres, sinais do reino de Deus. Ele não veio para magicamente livrar o mundo dos seus problemas. Ele veio para anunciar o evangelho do reino, a presença de Deus de uma forma nova e inusitada no meio de nós.

Ele não curou todos os doentes da Galiléia, mas muitos, diz o texto. Percebe-se, assim, o caráter simbólico-libertador dessas narrativas. Segundo Ched Myers, as curas do ministério público de Jesus precisam ser vistas no contexto da ordem simbólica do judaísmo, para a qual a enfermidade estava associada à impureza ou ao pecado, estado que significava exclusão do pleno status no corpo político. A ação simbólica” significa um modo de expressar poder (não é apenas algo metafórico). Ao agir como alguém que cura, Jesus procura sempre restabelecer o bem-estar social negado à pessoa doente/impura segundo a ótica da ordem simbólica vigente. Quando estende a mão a um leproso e o declara limpo (1.41ss.) ou quando simplesmente presta solidariedade, participando da refeição à mesa com outro impuro (14.3), ele desafia aquela ordem simbólica segregacionista. Ele derruba barreiras e ameaça a ordem da sociedade.

A retirada para orar

Jesus fica diante de um dilema. Por um lado, percebe e se compadece de um povo doente, desgarrado, oprimido e cansado de sofrer. Ele não se recusa a cuidar deste povo, a curá-lo de seus males, a chamá-lo para uma nova vida. Ao mesmo tempo, dá-se conta de que a sua missão não se resume a este tipo de ação. Ele foi enviado para falar do reino de Deus e anunciar que este reino vem chegando e que é preciso arrepender-se e mudar de vida. O grupo dos discípulos também deseja mudanças, mas entende que o caminho é mais curto. Todos te procuram, mestre! Por que foges? Vais querer decepcionar esta multidão que começa a apreciar a tua mensagem e as tuas curas?

Sorrateiramente, parece que o pequeno grupo de amigos censura Jesus por retirar-se tão rápido da arena de luta. Eis a tentação!

Jesus, no entanto, resiste ao sucesso das curas e dos exorcismos. Em si, são boa coisa, mas ele não concorda com o que as pessoas querem fazer com esta boa coisa. Há que distinguir e discernir.

Por isso, Jesus se retira para orar! Na oração, no silêncio do encontro com o Pai, num lugar deserto e afastado da multidão, de suas dores e desejos, Jesus busca discernimento. Ele não poderia simplesmente corresponder aos desejos das pessoas, por mais legítimos e sinceros que fossem. Ele tinha um alvo a cumprir. Ele deveria ir adiante e pregar o evangelho do reino, pois foi para isto que veio. Para isto é que foi enviado às ovelhas perdidas da casa de Israel (Mc 6.34; Mt 15.24). Ele veio para chamar à fé e ao seguimento. Por isso, o Evangelho de Marcos é tão enigmático às vezes. Pois ele vai mostrar que há uma diferença enorme entre admirar-se da bondade de Jesus e até beneficiar-se dela, e segui-lo de fato como discípulo e como igreja.

É a oração e a total disponibilidade diante de Deus que o fortalecem para responder aos preocupados e até exaltados discípulos: Vamos a outros lugares! Parece resoluto e firme quanto ao que deve fazer. Vai continuar pregando e expelindo demônios por toda a Galiléia. O movimento expande-se e cresce até chegar a Jerusalém, não sem antes causar enorme preocupação aos doutos conhecedores da lei que vão conferir a sua prática e acabam acusando-o de estar possesso (3.2()ss.). Invertem-se os papéis. Querem confundir a multidão, dizendo que Jesus serve ao maioral dos demônios. É nesse contexto que Jesus profere uma de suas parábolas mais enigmáticas, a parábola do valente, do forte que amarra o dono da casa para roubar-lhe os bens. Ora, ele é o valente que deseja livrar o povo das mãos daqueles que o oprimem com leis, regulamentos e um sistema de pureza e impureza que afasta as pessoas do amor de Deus, impedindo-as de ser plenamente povo de Deus.

3. Rumo à prédica

Este texto é muito atual. Não só porque entre nós pululam igrejas e religiões que fazem das práticas de cura e exorcismo o seu foco de atenção, mas porque nele – na prática de Jesus – encontramos os critérios que nos permitem abraçar um tipo de ação pastoral verdadeiramente evangélico e terapêutico.

Não se trata de negar a compreensão do mal como se manifesta em demónios e forças espirituais incompreensíveis e até intangíveis. Embora já tenham decorrido mais de 2000 anos desde os eventos narrados, existe, no Brasil, uma mentalidade muito próxima daquela dos tempos de Jesus. A crença em demónios e em forças espirituais que provocam doença e infortúnio é muito comum entre nós. Até nas comunidades evangélicas existe muito medo quando se toca nesses as-suntos. E muita desinformação também, é verdade.

Por isso, vale a pena pregar sobre este tema, baseando-nos estritamente na mensagem que o texto de Marcos anuncia. Entrevejo alguns pontos que podem ser destacados, entre outros. Antes, porém, recomendo que a pregadora ou o pregador procure saber o que poderia significar na realidade da comunidade local a crença em demónios ou a compreensão de cura segundo o senso comum das pessoas.

Lembro aqui um diálogo que tive certa vez com uma amiga, de tradição católico-romana, que morava num bairro de classe média na cidade de São Paulo. Conversávamos sobre algum tema religioso e ela então perguntou-me diretamente: Você crê no demônio? Eu levei um suslo. Nunca alguém me fizera uma pergunta dessas. Busquei no que do mais simples temos na fé cristã e devolvi a pergunta apontando para o Credo apostólico, comum às tradições das igrejas históricas. Perguntei a ela: O que diz o nosso credo? Ela respondeu com as três partes (onde não há qualquer afirmação sobre crer no demônio) e eu então conclui: “Pois é, eu não creio no demônio, eu o combato! Expliquei que, a meu ver, quando levantamos a pergunta pelo demônio, trata-se da questão do mal que existe no mundo e até mesmo em nós, como disse Jesus (vide a repreensão a Pedro!). O mal precisa ser exorcizado e vencido todos os dias. O mal estrutura-se no mundo. Está nas pessoas, mas as transcende. É como se fosse um poder onipresente.

Jesus liberta-nos justamente do poder do mal. A partir da fé em Cristo, o mal não tem mais poder absoluto sobre nós. É verdade que não somos inocentes, que caímos em tentação e que desprezamos o amor de Deus. Não simplesmente por atitudes morais indecorosas, mas muito mais por causa da nossa falta de fé ou da pequenez da nossa fé, como Jesus certa vez repreendeu o seu grupo de amigos (Mt 14.31).

Como é que Jesus liberta? Por meio do seu evangelho, de sua palavra libertadora que diz: Cala-te!, mas ao mesmo tempo chama: Vem u segue-me! Esta é a palavra que nos toma pela mão, que nos levanta do desânimo e da incredulidade e nos chama para acompanhá-lo a
outros lugares: Vamos!

Às vezes, precisamos ouvir um grito de alerta para responder ao seu chamado. São os momentos de cura e de libertação.

Hoje existem muitos demônios que tentam escravizar-nos e desviar-nos do caminho da liberdade em Cristo. Seria importante identificar seus nomes. Demônios têm nome e precisam ser identificados para serem exorcizados. Não da forma que o cinema norte-americano faz no filme O exorcista. Menos ainda como o fazem certas igrejas pentecostais que, por vezes, abusam da credulidade das pessoas (reconheço, porém, que nessas igrejas existe acolhimento e dignificação especialmente de pessoas marginalizadas e empobrecidas).

Um demônio que muito sofrimento causa ao nosso povo é justamente o medo. Medo de falar, de dizer o que pensa, de lutar por dignidade e respeito, medo até de crer em Jesus. Outro é o demônio da indiferença. O sofrimento do outro não me interessa, não me constrange. Ele é indiferente para mim. Eu basto a mim mesmo. Sou livre de ludo e de todos. Sou o demônio de mim mesmo. Existem ainda outros demônios: o demônio da fome, do desemprego, da corrupção política, da ideologia do mercado, do progresso infinito, da perda de auto-estima, do egoísmo, da solidão, do prazer a qualquer custo, da dívida externa (ou eterna?), da crença no poder do dinheiro, da ideologia da competição, da ciência todo-poderosa e assim por diante. Todos estes demônios estão bem acompanhados e veiculados pelo poder da mídia
eletrônica.

O certo é que os demónios que nos cercam tornam a vida uma carga pesada demais. O pior é quando nem nos damos conta disso e achamos que a vida nos traiu, que Deus se esqueceu de nós, que a sorte passou longe da nossa casa (ou do nosso bolso) e assim por diante. Além disso, facilmente deixamos de perceber quando nós mesmos nos tornamos demônios para os outros.

Frente ao inesperado da vida cotidiana e diante das misérias e sofrimentos que teimam em nos entristecer, a palavra de Cristo é profundamente consoladora. E mais: Cristo não só prega, ele chega, fala conosco, toma pela mão, levanta-nos da desgraça, cura com sua terapia do amor e da compaixão, para nos colocar outra vez no caminho como seguidores e seguidoras do evangelho do reino. Levantar-se e colocar-se a caminho é parte do processo de cura. Nessa caminhada, o Espírito Santo é nosso mestre.

Este texto é uma oferta e um convite. Jesus cura e chama ao mesmo tempo: Vamos adiante, pois é preciso pregar em outros lugares! Creio que a cura é esta mesma. É romper com as rotinas e os lugares-comuns, é levantar da cama, é sair de casa e ir ao encontro do evangelho do amor e da presença de Deus no mundo. É ouvir e deixar-se conduzir pela voz do pastor e consumador de nossa fé.

Onde encontrar a força para não se deixar iludir por falsas promessas de cura e milagres que não levam a mudar de vida, mas apenas reafirmam desejos e preconceitos?

O texto é muito claro. Por um lado, é preciso ouvir a palavra de Jesus, por outro, é entregar-se à oração, pois ela fortalece para vencer a tentação que a fama de uma religião bem-sucedida significa. A vida cristã não está isenta de tentação e ilusão com o sucesso da fé. É preciso vigilância permanente nos assuntos da fé e da cura. O discernimento e a oração na fé e a partir da fé são meios através dos quais encontramos o equilíbrio e a liberdade para não ser vencidos pelo mal. A fé ajuda-nos a vencer o mal com a força do amor. A fé ajuda-nos a vencer o medo e a compartilhar a graça de servir e de cuidar das pessoas.

Uma das experiências mais fortes da comunidade cristã é o fato de ela ser comunidade terapêutica, isto é, comunidade que cura e liberta. Onde esta experiência acontece, os demônios nomeados deixam de existir ou perdem seu poder. As pessoas recobram a dignidade, a alegria de viver e crescem na fé e na solidariedade para com as demais.

Na comunidade em que participo, existe um grupo de pessoas portadoras de deficiência. Temos a oportunidade de nos encontrar a cada 15 dias, falar sobre nossas vidas, tristezas, lutas, esperanças, desejos, sonhos. É um grupo de ajuda mútua e de apoio. Não segue nenhum método prescrito. Apenas abre espaço para que cada pessoa se exponha, seja ela mesma e assim trabalhe os seus temores e angústias com mais liberdade. A descoberta que temos feito, depois de seis anos, e que estes encontros proporcionam um enorme efeito terapêutico. No grupo, experimentamos aceitação e uma nova forma de libertação na comunhão das nossas fraquezas e possibilidades.

Há experiências semelhantes em muitos lugares. Estas experiências deveriam ser mais difundidas, estudadas, aprofundadas, pois muita gente precisa conhecer essa forma de evangelho, de boa notícia, para conhecer o poder libertador de Deus. Nesse sentido, é preciso abrir-nos para a fé que cura e liberta de todos os tipos de demônios que nos querem escravizar.

A pregação sobre este texto pode ser o ponto de partida para uma nova proposta de pastoral da saúde na comunidade ou algo semelhante.

4. Os textos de leitura

Jó 7.1-7

O texto do Antigo Testamento vem da tradição sapiencial. Ele reflete a vida penosa da humanidade sobre a terra. Compara a vida das pessoas com a dos diaristas que trabalham para sobreviver no dia-a-clia. Não têm segurança alguma e nem podem aspirar a um futuro seguro e tranquilo. Imaginemos o que é viver esperando o pagamento irrisório por um dia extenuante de trabalho e sem garantias de que haverá serviço no dia seguinte. A noite é cheia de aflições, e o corpo sofre as feridas de uma vida à beira da sobrevivência. Nessa angústia, o sábio recorre ao único que pode dar-lhe algum alento. Lembra-te de que a minha vida é um sopro, grita ele a Deus, Senhor da vida e da morte. Reside aí um fio de esperança, ainda que o desânimo pareça sem fim, pois os meus olhos não tornarão a ver o bem. De onde me virá o socorro? É preciso ouvir o anúncio do Novo Testamento.

J Coríntios 9.16-23

O anúncio do evangelho é o único objetivo do apóstolo Paulo. Ele foi constrangido a isso a partir do encontro com o Cristo ressuscitado. Entendeu que sobre ele pesava esta verdadeira obrigação (Ai de mim se não pregar o evangelho!). Mas ele supera este sentimento, ao fazê-lo de livre vontade, como bom despenseiro da responsabilidade a ele confiada. Esta é a sua glória, dar de graça o que de graça recebeu, fazendo-o de maneira espontânea, alegre e confiada, tentando por todos os modos ganhar o maior número possível de pessoas para a causa do evangelho, mesmo que para tanto seja necessário fazer-se escravo de todos.

Grande é o ideal fixado pelo apóstolo. Quem se aproxima dele? Quem em sã consciência pode dizer que fez tudo o que lhe era possível para, por todos os modos, salvar alguns? Fazer tudo por causa do evangelho para tornar-se um cooperador com ele, eis o ideal do discípulo de Cristo. Essa meta seria apenas atributo de alguns entre nós, aqueles mais comprometidos com a caminhada da fé cristã? Fazer-se fracos com os fracos, a fim de ganhar os fracos. Fazer-se sem lei para ganhar os que vivem segundo outras regras. Fazer-se rigoroso no cumprimento da lei, para ganhar os mais ortodoxos, ainda que em Cristo sejamos livres da lei.

A vocação cristã é altamente exigente. Não deve haver dúvidas a respeito. Mas quem entra nessa caminhada (Paulo usa a metáfora da corrida de obstáculos!) há de colher os frutos que o evangelho, de antemão, oferece: a liberdade e a alegria de experimentar o que significa salvação! Não como uma glória futura, mas como prenúncio de uma nova vida que se vive pela fé já agora.

5. Subsídios litúrgicos

Confissão de pecados

Senhor Deus, confessamos que não somos pacientes com as pessoas nem conosco mesmos. Queremos resultados e não aprendemos o que é viver da fé e do amor. Perdoa-nos e ajuda-nos a crer em ti. Ajuda-nos a buscar um novo caminho. Cura-nos de todos os demônios que oprimem nosso coração e nossa mente e ajuda-nos a viver segundo a liberdade que encontramos em Cristo Jesus, teu Filho. Amém.

Oração de coleta

Deus da vida e de toda misericórdia, tu conheces o teu povo e a nós que aqui viemos. Tem piedade de nós. Viemos desconsolados, preocupados. Vamos ouvir algo novo que vem da palavra de Jesus, teu Filho. Que esta mensagem nos sirva de alento e de ânimo, para cada pessoa individualmente e para a tua comunidade. Dá-nos discernimento e coragem para praticarmos o que ouvimos e assim servirmos com nossos carismas ao teu povo e aos pobres em nosso lugar. Por Jesus Cristo, na unidade do Espírito Santo. Amém.

Oração de intercessão

– pelas famílias da comunidade;
– pelas crianças de rua e suas famílias;
– pelas pessoas doentes e enlutadas (lembrar especialmente aquelas pessoas que recentemente tiveram perdas)
– pelos jovens e sua luta por estudo e trabalho;
– pela igreja e suas lideranças, para que seja mais fiel ao evangelho que cura e liberta;
– pelo pais e suas autoridades, para que realizem a justiça que as leis proclamam, mas não são praticadas;
– pelo fim das guerras e da opressão que pesa sobre os povos e países empobrecidos (por justiça e paz nas relações internacionais).

Bibliografia

GOPEGUI, Juan Ruiz de. As figuras bíblicas do diabo e dos demônios em face da cultura moderna. Perspectivas Teológicas, n. 29, p. 327-352, 1997.
LOHSE, Eduard. introdução ao Novo Testamento. São Leopoldo: Sinodal, 1974.
MATEOS, Juan; CAMACHO, Fernando. Marcos: texto e comentário. São Paulo: Paulus, 1998.
MYERS, Ched. O Evangelho de Marcos. São Paulo: Paulinas, 1992.
RABUSKE, Irineu J. Jesus exorcista: estudo exegético e hermenêutico de Mc 3,20-30. São Paulo: Paulinas, 2001.

Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia