Prédica: Marcos 9.2-9
Leituras: Êxodo 34.29-35 e II Coríntios 3.12-4.2
Autor: Oneide Bobsin
Data Litúrgica: Último Domingo após Epifania
Data da Pregação: 02/03/2003
Proclamar Libertação – Volume: XXVIII
Tema:
1. Palavra e imagens
Luz, câmera, ação! De fato, o relato da transfiguração revela imagens para uma cena de filme. Montanha, vestes resplandecentes, aparições de mortos, um Pedro empolgado, medo, nuvem, sombra e, por fim, uma voz celeste pedindo que escutem o seu filho. Como vemos, oportuniza uma série de imagens e poucos diálogos. É possível, no culto, trabalhar com essas imagens, mesmo que a ênfase esteja no falar e no escutar.
Todo o cenário montado por Mateus, Lucas e Marcos constitui-se numa performance para convencer três discípulos que continuam cegos, mesmo depois de Jesus ter recuperado a vista de uma pessoa de Betsaida, conforme Mc. 8.22-25. Ou as imagens, gestos e aparições em si já dizem algo a respeito do caminho para a morte e ressurreição de Jesus? Estou quase convencido de que as imagens, os gestos e as aparições são mais do que meros recursos de comunicação; eles fazem parte da mensagem. Na modernidade tardia em que vivemos, o meio, de certa forma, já é a mensagem, conforme teóricos das comunicações de massas. Em outras palavras, na sociedade em que a embalagem assume uma grande importância, ela precisa trazer as marcas do conteúdo. A coerência entre palavra/conteúdo e o meio de divulgá-la parece fundamental para a comunicação.
A partir destas considerações introdutórias, sugerimos que a pregação e a liturgia integrem palavra/palavras, gestos e imagens. É possível ambientar o espaço de culto com as imagens do texto sem prejuízos para a pregação: gestos, imagens, símbolos, cores, vozes já são palavra em dimensões diversas. Não são meros meios ou recursos de comunicação.
2. Aparições e cruz
Estou convencido de que os relatos bíblicos estão presentes no imaginário do povo e de que liturgia e pregação não só invocam, mas lambem evocam aspectos importantes da fé cristã. Por outro lado, também podem permitir a associação com imagens do contexto religioso no qual se vive. Mesmo que evangélico-luteranos geralmente têm uma visão de mundo e de vida com economia de religião, o contexto no qual vivem e a linguagem que utilizam estão cheios de estórias de fantasmas, aparições de mortos, medos, vozes, etc. Imagino que o texto poderá evocar muitos relatos e experiências de um mundo pouco influenciado pelo iluminismo. Acontecimentos espetaculares das religiões estão em alta.
Entre tantas evocações, chamo a atenção para o interesse do Espiritismo pelo texto e contexto de Mc 9.2-9. No Evangelho segundo o Espiritismo, Allan Kardec utiliza a referência bíblica a Elias e a João para fundamentar a doutrina da reencarnação. No referido livro, o capítulo IV, que traz por título Ninguém poderá ver o reino de Deus se não nascer de novo, Kardec faz uma breve referência ao que sucede logo após a descida do monte. Os profetas poderiam reviver na terra. Neste sentido, continua Kardec, João Batista era Elias.
A perícope em estudo dá margem a uma interpretação carismática. Reporto-me a uma prédica ouvida na Segunda Conferência do Espírito Santo, promovida pelo Movimento de Renovação Espiritual – Movimento Carismático, em setembro de 2001, em Joinville. Num dos cultos da noite, o pregador estabeleceu critérios para avaliar a experiência carismática. Na sua opinião, Pedro, Tiago e João tiveram uma experiência carismática no alto do monte. A transfiguração e o que ela implicou é considerada pelo pregador como justificativa da experiência carismática. No entanto, Jesus corrige a Pedro. Pedro queria fazer da experiência algo permanente, quando sugeriu armar três tendas. Quer dizer, Pedro e os outros discípulos tiveram uma experiência carismática, sim, mas se equivocaram em sua interpretação. Ora, se há a necessidade do pregador estabelecer critérios para a avaliação da experiência carismática, é sinal de que os/as experimentadores/as comportam-se como Pedro. Querem prolongar a experiência e sair falando dela por aí. Portanto, é necessário ser avaliado por um irmão na fé, um grupo ou um pastor. O pregador concluiu reforçando a necessidade de estabelecer critérios de avaliação da experiência.
Quando tais critérios não são estabelecidos, a experiência cai no circuito do marketing e da própria autoglorificação. A experiência é transformada em mensagem. Cultos pentecostais, carismáticos e, enfaticamente, os neopentecostais não só priorizam a experiência espe-tacular, como fazem dela a própria mensagem, suprimindo, muitas vezes, a mensagem da cruz. Hoje, estou quase convencido de que a mensagem espetacular que busca o sucesso, seja ele numérico e/ou financeiro, é uma revanche da glória contra a cruz como consolo na opressão. Se por séculos o catolicismo trouxe a cruz na forma de opressão, hoje se percebe uma revanche que constitui o pólo oposto, o da glória ilimitada. A meu ver, o Evangelho de Marcos, assim como os demais e também Paulo, apresentam a dialética de cruz/morte e ressurreição. Nem justificativa para miséria nem para sucesso.
Portanto, a tentação de ignorar tal dialética, bem representada pelo discurso neopentecostal da Teologia da Prosperidade, é, na prática, a tentação de Pedro, Tiago, João e, por que não dizer, de todos nós. Não é para menos que Jesus recrimina Pedro, quando este propunha o caminho para a glória sem passar pela cruz. Jesus lhe diz: Afasta-te de mim, Satanás, porque não pensas as coisas de Deus, mas as dos homens (Mc 8.33). Mas Pedro diabolicamente volta a não querer ver o caminho proposto por Jesus, quando se dispõe a fazer tendas para assegurar o momento de glória, evitando, assim, a descida do monte. A grande tentação dos discípulos e nossa consiste em negar o caminho da cruz ao tentar assegurar os momentos de glória nas alturas, esque¬cendo-se que é preciso descer à planície. E não só descer, mas silenciar. Nada de publicidade do momento glorioso. Após o evento da cruz/ morte e ressurreição tudo se tornará público. Por enquanto, silêncio. Nada de publicidade com prelúdios ou trailers.
3. Comentários e reflexões
Nossa perícope integra um texto mais amplo que inicia com a confissão de Pedro (Mc 8.27-30) e se fecha em Mc 10.46-52, onde Jesus novamente aborda o tema da cegueira. O fio vermelho deste bloco está nos três anúncios de cruz/morte e ressurreição: 8,31-33; 9,30-32; 10,32-34. Nos três anúncios da morte e ressurreição, os discípulos demonstram dificuldades em entender que a subida para Jerusalém é extremamente diferente da situação do monte da transfiguração. Três anúncios não foram suficientes para abrir os olhos dos discípulos: antes de ser transfigurado, Jesus será desfigurado. Depois da terceira vez do insistente anúncio, os filhos de Zebedeu (10.35-40) ainda pedem um lugar de destaque, à esquerda e à direita de Jesus, quando vier em glória.
De fato, não é possível entender um messias crucificado, quando a cruz é lugar de execução de dissidentes ou símbolo de vergonha do condenado (Myers, p. 299).
Metamorfose
O termo transfigurado é uma tradução da palavra metamorfose. A melhor tradução do grego seria metamorfoseado. Naquele momento de glória antecipada, Jesus é passivo. Isto é indicado pelo tempo. O autor da transfiguração (metamorfose) é Deus (Gundry, p. 458).
Jesus vai com três discípulos para o monte. Um lugar retirado, onde acontece a metamorfose. Nesta metamorfose, é tirado o véu para que se veja no humano um rosto de glória, ainda efêmero. Também a roupa fica resplandecente, extremamente branca (leukós). Novamente, a ação que torna as vestes extremamente brancas vem de fora. Tal alvura não é uma qualidade intrínseca da roupa.
O relato de Marcos destaca a presença de Elias e Moisés, que falam com Jesus. A conversa, pois, não envolve os três discípulos. Comentadores da perícope divergem na interpretação da referência a Elias e Moisés. Marcos estaria se utilizando de lendas de aparição de Elias no judaísmo? Elias e Moisés seriam considerados, pela comunidade dos ouvintes, o profetismo e a lei, respectivamente? Para Myers, cada um dos dois grandes profetas representa os que, como os discípulos nesse momento, testemunharam a epifania de Javé em uma montanha em períodos cruciais de desânimo em sua missão (Myers, p. 304). Ainda segundo o mesmo comentarista, Elias representa o profeta que sofreu perseguição por parte das autoridades e que, fugindo delas, pede a morte no alto de um monte, onde Deus revela-se por meio de uma brisa suave. Depois, Javé o envia novamente para a batalha (l Rs 19.1 Is.). Da mesma forma, Moisés é rejeitado pelo povo, con¬forme Myers. Pela segunda vez, Moisés deve subir a montanha (Êxodo 33.18ss.), donde desce com o rosto transfigurado. Como sua face não pode ser vista, coloca-se um véu.
No texto de 2 Coríntios, Paulo faz menção ao fato de que Moisés usava o véu para esconder o que é transitório. A partir da conversão e da presença da liberdade por causa do Espírito de Cristo, podemos andar com a face descoberta. Pessoas cristãs não precisam esconder o rosto. De qualquer forma, a aparição de Elias e Moisés ratifica o que Jesus já tinha ensinado. A cruz situa-se agora ao lado da 'lei e dos profetas'. (Myers, p. 304) Além disso, a presença de Elias é um sinal escatológico. Portanto, a sua presença sinaliza que o cumprimento da esperança de Israel pelo glorioso fim dos tempos começa com a vinda de Jesus (Mulholland, p. 141)
Depois do diálogo de Jesus com Elias e Moisés, durante o qual os três silenciam, Pedro toma a palavra em vista do espetáculo. Apressa-se em dizer que construiria tendas para Elias, Moisés e Jesus. A sugestão de Pedro é uma tentativa de driblar o medo causado por uma teofania. Diante do tremendo, do fascinante, é impossível não ter medo.
Lembramos, entre outras coisas, que, após o sonho em que anjos subi¬am e desciam por uma escada, Jacó conclui que aquele lugar é a porta do céu; um lugar terrível (Gênesis 28.10-22). Voltando ao texto de Marcos, vemos um Pedro que, de forma impulsiva, quer celebrar a presença do reino ao mesmo tempo em que é tomado pelo medo. Na sua visão obscurecida, chama Jesus de Rabbi, quando já o havia confessado como Messias, esquecendo que não é hora de comemoração. Como vemos, os discípulos mais próximos de Jesus são os que têm maiores dificuldades de olhar para o caminho da cruz. Eles precisam ser insistentemente lembrados do caminho da cruz. Utilizando-me de uma expressão do escritor José Saramago, em seu romance A cegueira, eles estavam tomados de uma cegueira branca.
Ainda sem nada a dizer e atemorizados, ouvem uma voz celeste: Este é o meu Filho amado; ouvi-o. Como a cegueira branca continua, a voz celeste aciona os ouvidos. Desta vez, não é Jesus quem fala a Pedro. É a própria voz celeste. Elias e Moisés já não estão mais aí. Jesus está sozinho com os três discípulos. A voz celeste não condena, apenas exorta: OUVI-O. Segundo alguns comentadores, a voz celeste reitera o que fora dito por ocasião do batismo de Jesus (Mc 1.9). Agora, é o próprio Deus que exorta. As palavras de Jesus são palavras de Deus. Quem ouve as palavras de Jesus, ouve a Deus. Assim, aquele Jesus é o próprio Filho de Deus. Como se diz, o incompreendido, o tachado como blasfemo, endemoniado, louco, é confirmado como 'o Filho' que se fez pela sorte do povo (Gallardo, p. 183).
Coerente com o que viram e ouviram, Jesus e os três desceram do monte. De fato, depois desta aula sobre o fundamento do discipulado, é hora de descer do monte. Uma descida pouco gloriosa ou, num neologismo de Leonardo Boff, transdescendente. Com a perspectiva do caminho da cruz, os discípulos transcendem para dentro da vida e ficam em silêncio, ao menos até o ressuscitar dos mortos. Assim, Marcos mantém-se pela coerência de Jesus. A publicidade de um momento de glória antecipada ofuscaria a cruz e ressurreição. A propaganda de milagres desvia a atenção do que é fundamental. Olha-se para o dedo que aponta em direção à lua, desviando o olhar do satélite que reflete a luz do sol.
4. Pregação e liturgia – subsídios
Como colocamos acima, os textos oferecem meios de comunicação para o culto. Para a pregação, sugiro trazer uma cruz numa embalagem de papel muito vistoso, chamando, assim, a atenção de todas as pessoas. Antes da leitura do texto, o/a pregador/a poderá fazer o pacote; passar de mão em mão, ou pelas mãos de algumas pessoas. Enquanto isto, pergunta-se pelo seu conteúdo e pela própria embalagem. Após algumas manifestações, ler o texto sobre a transfiguração. Então, pedir que alguém venha até o altar e lentamente desembrulhe a cruz. O/a pregador/a poderá fazer comparações entre a embalagem e o conteúdo. Se quiser fazer da embalagem algo que indique para a cruz, precisa trabalhar melhor com o material de embrulho.
O espaço litúrgico pode ser preparado com cores, vozes e outras imagens dos textos, talvez já lidos por uma equipe ou um grupo que se reuniu para preparar o culto. Lençóis brancos, montanha, personagens como Elias e Moisés, aparências transfiguradas e cheias de medo, nuvem, voz, etc.
O processo de comunicação parece complexo no próprio texto de Marcos. O cenário é montado para três discípulos apenas. De fato, na formação do discipulado, trabalha-se com grupos pequenos. No texto nobre a transfiguração, Jesus dedicou-se a três discípulos. É a lógica da minoria que vive em função da minoria. Exagerando, o texto deverá ser adaptado para um grande grupo, ou para a lógica das maiorias – ou massas. O vínculo, pois, entre a minoria e a maioria dá-se pela descida. Com as maiorias, Jesus age diferente, fazendo curas ou orientando no campo da ética.
A ambientação do espaço litúrgico com as referências simbólicas do próprio texto bíblico facilita a comunicação com a maioria. De fato, o culto impulsiona para o discipulado; mas é a subida para o monte que favorece a oração e o discipulado para poucos. Por que para poucos? Porque não queremos aceitar o caminho proposto por Jesus.
Por fim, como vivemos em tempos de predomínio de imagens, devem vir associadas a elas as palavras/a palavra. Cito apenas uma avaliação feita por alguém que analisa o carnaval que desfila na Marquês de Sapucaí: uma escola de samba prepara-se e ensaia um ano para fazer uma apresentação de uma hora. Sem querer imitar os carnavalescos ou concorrer com as poderosas imagens da televisão, sugiro que o culto utilize os vários sentidos para comunicar a mensagem. A palavra alcança todas as dimensões dos seres humanos e da realidade onde vivem. A ênfase na palavra não se prende a um discurso meramente racional ou conceitual. Afinal, um Deus compreendido não é um Deus, conforme Tersteegen, citado por Rudolf Otto (Otto, p. 29).
Teologicamente, somos simultaneamente justos e pecadores. Antropologicamente, somos simultaneamente míticos e racionais.
Bibliografia
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SCHNACKENBURG, R. El Evangelio según San Marcos. Barcelona: Herder, 1976.
Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia