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Prédica: Romanos 8.31-39
Leituras: Gênesis 22.1-14 e Marcos 1.12-15
Autor: Nilton Giese
Data Litúrgica: 1º Domingo da Quaresma
Data da Pregação: 09/03/2003
Proclamar Libertação – Volume: XXVIII
Tema: Quaresma

l. Se Deus é por nós…

A frase Se Deus é por nós, quem será contra nós é um resumo de tudo aquilo que Paulo havia escrito até aquele momento à comunidade de Roma. Foi um texto consolador naqueles tempos de medo e Insegurança. Se as adversidades forem grandes, não se esqueça: Se Deus é por nós…. Diante da solidão e da crueldade da vida, não se esqueça: Se Deus é por nós…. Será que isso é assim tão fácil? Será que podemos passar tão facilmente pelos problemas da vida? Podemos resolver todos os nossos problemas e conflitos com as palavras Se Deus é por nós, quem será contra nós?

Vamos ver em que situação o apóstolo Paulo se encontrava, quando escreveu essas palavras para a comunidade de Roma.

2. Como era a comunidade de Roma?

Muitos exegetas afirmam que a carta de Paulo aos Romanos é uma carta doutrinal. Outros lêem Romanos também como uma carta pastoral, por encontrarem nela muitos conflitos e aconselhamentos para as situações de conflito. Como pastor em comunidade, olho por esse lado pastoral e, por isso, menciono aqui um pouco do contexto.

A comunidade de Roma não foi fundada pelo apóstolo Paulo. Não lemos informações exegéticas e históricas seguras quanto a quem fundou a comunidade. Provavelmente tenha sido um movimento de leigos. O que podemos ver é que a carta aos Romanos é a mais longa de todas as cartas do apóstolo Paulo. Se entrarmos na carta pela porta dos fundos (cap. 16.1-15), veremos ali uma lista muito interessante de nomes. São 11 mulheres e 18 homens. É evidente que a igreja de Roma não se compunha somente dessas pessoas, mas surpreende o fato de Paulo conhecer tantas pessoas sem nunca ter estado em Roma. Vemos aqui uma comunidade bastante heterogênea. Sua riqueza está na sua diversidade (judeus/não-judeus, homens e mulheres, ex-escravos e gente de dinheiro). Daí podemos supor o seguinte: se tantas pessoas conhecidas de Paulo estão no momento em Roma, é sinal de que, naquele tempo, a evangelização era algo muito dinâmico. Os deslocamentos de uma cidade para outra não impediram o avanço da evangelização. Pelo contrário, favoreceram-no.

Roma era o centro do Império Romano. Ali se constituíram muitas igrejas domésticas. A partir de Romanos 15, podemos detectar pelo menos 5 agrupamentos diferentes (na casa de Prisca e Áquila, na casa de Aristóbulo, na casa de Narciso, na casa de Asíncrito e na casa de Filólogo). Interessante é a expressão os da casa de. Esta expressão quer dizer-nos algo em termos de conceito de família? As primeiras comunidades entenderam-se como famílias formadas por Deus, onde se encontram e vivem os irmãos e irmãs na fé? Famílias onde já não contam os laços de parentesco, mas os laços de fé e de amor que passaram a gerar novas relações?

As igrejas domésticas tinham também seus conflitos internos e externos. Havia conflitos em relação a raça (judeus/não-judeus, cf. 10.12). Outro conflito era entre os fortes e os fracos, conforme o capítulo 14. Outro conflito ocorreu em relação a pessoas que provocam divisões e obstáculos (Rm 16.17-18,20). Frente aos conflitos, Paulo quer chamar a atenção para a questão dos dons (Rm 12). Portanto, trata-se não apenas de uma carta dogmática, mas profundamente pastoral e catequética.

3. Rm 8.31-39

Mas de onde Paulo tinha tanta certeza de que Se Deus é por nós, quem será contra nós? Paulo tem em mente algumas experiências do Antigo Testamento. Quando Paulo diz que Deus não poupou seu próprio Filho (v. 32), mas o entregou por nós, refere-se ao sacrifício de Isaque (Gn 22). Também em Rm 8.5-10, Paulo fala do sacrifício de Jesus por nós, sendo nós ainda pecadores. Ele argumenta dizendo que, se Jesus já fez tal sacrifício por nós quando ainda éramos pecadores, tanto mais agora, sendo já justificados pela sua morte redentora, Deus haverá de olhar por nós. Portanto, Paulo argumenta dizendo que somos eleitos de Deus. Ele usa essa expressão do profeta Isaías (50.7-9), em que o eleito de Deus sente segurança, coragem, força diante dos perigos e das ameaças. Essa força, essa coragem diante do perigo não vem de dentro da pessoa, mas vem do alto, daquele que está sentado à direita de Deus (Salmo 110.1) e que intercede por nós (Rm 8.34). Jesus já fez essa intercessão pelas pessoas que o procuravam em busca de auxílio e de orientação. Assim foi com os doentes e os desesperados. Assim também foi em relação aos seus discípulos em João 17. Portanto, nada de glória humana. Tudo aqui é obra de Deus em Jesus. A nós cabe apenas viver em gratidão a Deus. E essa gratidão expressa-se em mostrar que a obra do reino de Deus continua hoje através de nós. Somos justificados para praticar a justiça, a paz, a solidariedade, o amor.

Mas Paulo não quer iludir ninguém. Existem consequências que a pessoa cristã enfrenta para poder viver o projeto de Deus (8.35). Esses obstáculos são apresentados num crescendo que vai da tribulação até u morte pela espada. Talvez consigamos detectar essas etapas: as três primeiras (tribulação, angústia e perseguição) marcaram, em grande parte, as viagens de Paulo (At 13.10,50; 14.4-5,14,19; 15,2,; 17.13; 24.5). O anúncio do evangelho trouxe-lhe perseguições por causa da palavra. As duas seguintes (fome e nudez) revelam a situação de Paulo nas constantes prisões que enfrentou (At 16.22-23; 21.33; 23.10; 24.27; 27.33). As duas últimas (perigo e espada) apontam para a consciência do fim trágico.

Com este hino, Paulo revela que possuir o Espírito e ser Filho de Deus acarreta uma luta contra as forças que tentam sufocar o projeto de Deus. Ser cristão é estar num campo de batalha, mas com a consciência e atitude de vitorioso: Em tudo isso somos mais que vencedores por meio daquele que nos amou (8.37). Não se trata de aguardar uma vitória futura e distante, mas de ser vencedor já em meio aos conflitos presentes. A razão disso é o amor de Deus que, em Cristo, venceu definitivamente todos os poderes hostis e injustos. Se eles ainda atuam, é por pouco tempo.

O amor de Deus pode renovar a vida diante da morte. As categorias superiores (anjos e principados) não serão capazes de vencer essa força do amor de Deus. Nem o tempo conseguirá anular esse amor. Forças, altura, profundidade são energias cósmicas misteriosas e hostis, mas nem mesmo elas poderão resistir ao amor. Por isso, Paulo conclui: nada e ninguém poderá nos separar do amor de Deus que está presente em Cristo Jesus, nosso Senhor (8.39).

4. A providência divina

Romanos 8 fala-nos claramente sobre muitos de nossos temores. Para muitos cristãos, ainda hoje a posição diante das contrariedades é confusa. Conflitos e calamidades da vida não encontram lugar e nem sentido em sua fé. Como se Deus tivesse a obrigação de recompensar com proteção e vida tranquila aqueles que procuram ser disciplinados em sua fidelidade a Deus.

Paulo mostra aqui que sofrimento e contrariedades têm seu lugar na vida dos que servem a Deus. Mas existem dois tipos de sofrimento: o injustificável e o consequente. O injustificável é aquele que pede resignação diante do mal. Que é que a gente pode fazer, isso é assim mesmo, dizem muitos. Esse sofrimento não tem sentido para Jesus, que resistiu e não se curvou diante do mal. Mas existe também o sofrimento que é fruto do ser cristão, de ser discípulo de Jesus. Aquele sofrimento que advém quando não concordamos com o mal, quando protestamos em favor da justiça e da vida. Se sofremos por querer o bem, então devemos carregar esse sofrimento com alegria, como vitoriosos; pois é diante desse sofrimento que Paulo pergunta: Se Deus é por nós, quem será contra nós?.

Paul Tillich fala-nos de como a fé cristã incorpora uma experiência dolorosa, sem, com isso, cair no fatalismo ou na apatia diante do sofrimento:

A providência divina não é, certamente, uma vaga promessa de que com a ajuda de Deus tudo sempre acabará bem. Não é bem assim. São muitas as coisas que acabam mal. A providência divina também não diz que devemos sempre conservar a esperança em todas as circunstâncias. Há circunstâncias na vida em que não há mais esperança alguma. (…) Muito pelo contrário. O conteúdo da fé na providência divina é esta: QUANDO A MORTE FOR ABUNDANTE, COMO AGORA; QUANDO A CRUELDADE IMPERAR ENTRE AS NAÇÕES E OS INDI-VÍDUOS, COMO AGORA; QUANDO OS PRESÍDIOS E OS GUETOS DE TODAS AS PARTES DO MUNDO ESTIVEREM REPLETOS DE CORRUPÇÃO MORAL E FINANCEIRA, COMO AGORA; QUANDO A FOME, A PERSEGUIÇÃO E A DISCRIMINAÇÃO EMPURRAREM MILHÕES DE UM LUGAR PARA O OUTRO, COMO AGORA – PODEMOS PROCLAMAR QUE, NESTE MOMENTO, PRECISAMENTE NESTE MOMENTO, NENHUM DESSES HORRORES PODE SEPARAR-NOS DO AMOR DE DEUS. [Deus não foge diante do mal; ele não se separa de nós nos momentos em que lutamos contra o mal] É SOMENTE NESTE SENTIDO QUE PODEMOS DIZER QUE AS COISAS CORREM PARA O BEM. A FÉ NA DIVINA PROVIDÊNCIA DIZ-NOS QUE NADA E NEM NINGUÉM PODERÁ IMPEDIR-NOS DE REALIZAR AQUILO QUE DETERMINOU NOSSA EXISTÊNCIA. [E somos justificados para viver/praticar a justiça] O texto em itálico é inserção minha. O restante encontra-se em Paul Tillich. El sentido de la providencia. In: Se mueven los cimientos de la tierra. Barcelona, 1968.

5. Atualização

A atualização desse texto vai depender do contexto em que estivermos vivendo. Por isso, sugiro a seguinte estrutura:

a) Em primeiro lugar, a vida (calamidade, fato político, doença,…)

b) Todo sofrimento se justifica?

c) O sofrimento de Jesus- sua morte vicária. Para que Jesus nos salvou? (justificados para viver justiça)

d) Se Deus é por nós, quem será contra nós? A que tipo de sofrimento se refere o apóstolo Paulo? Como foi isso na vida de Paulo?

e) Confiança na providência divina – Jesus não foge diante do mal.
6. Subsídios litúrgicos

a) Hinos do HPD 1 (Hinos do Povo de Deus): 160; 222; e do HPD 2: 453.

b) Enquanto durmo, ele cuida e vela e as minhas faculdades anima, para que eu todas as manhãs experimente novo amor e nova bondade. Não fosse Deus, não tivesse seu semblante me guiado, de inúmeros medos eu não teria me libertado. Terra e céu hão de passar -Deus sempre nos há de amar. (Paul Gerhardt)

Senhor, guarda-nos daquela fé ingênua que crê que na vida tudo deve transcorrer sem dificuldades. Concede-nos que, de forma sensata e equilibrada, reconheçamos que dificuldades, derrotas, malogros e ansiedades são acréscimos naturais na vida, que nos fazem crescer e nos tornam mais maduros. Anima-nos, quando somos tentados a nos tornar amargurados. Sê conosco e nos apoia quando não sabemos mais como prosseguir. Por Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador. Amém.

c) Bom ou mau? (Uma história para a vida, iniciada por Rubem Alves)

Um agricultor, em seu leito de morte, chamou seus três filhos para repartir entre eles os bens. Aos dois mais velhos foram destinadas as mais belas terras, enquanto que o Ernesto recebeu como herança um banhado, imprestável para a agricultura. Quando os amigos souberam dessa estranha divisão de bens, solidarizaram-se com ele, em vista da injustiça cometida pelo velho.
– Que azar, hein homem?
O Ernesto, no entanto, respondia: Se isso é bom ou se é mau, só o futuro dirá.
Passou um ano e uma seca terrível atingiu aquela região. Todas as plantações morreram por falta de umidade. A terra de banhado do Ernesto ficou boa para a agricultura. Ele plantou e colheu em abundância. O preço estava em alta e ele ganhou muito dinheiro. Os seus amigos foram visitá-lo, para cumprimentá-lo.
– Que sorte, hein homem.
Ele, no entanto, respondia: Se isso é bom ou se é mau, só o futuro dirá.
Um tempo depois, ele foi comprar um lindo cavalo de raça. Era caro, mas era um puro-sangue. Comprou o cavalo e, naquela mesma noite, o animal fugiu. Ninguém conseguia encontrá-lo. Os amigos vieram visitá-lo com ar de decepção. Tanto dinheiro investido naquele animal e nenhum prazer. Não ficou nem uma noite no curral.
– Que azar, hein homem.
Ele, no entanto, respondia: Se isso é bom ou se é mau, só o futuro dirá.
Três dias se passaram e, no amanhecer do quarto dia, uma grande surpresa. O cavalo estava de volta e trazia com ele outros dois puros-sangues selvagens. Foi uma alegria só. Os amigos vieram ver a novidade e com alegria diziam:
– Que sorte, hein homem.
Ele, no entanto, respondia: Se isso é bom ou se é mau, só o futuro dirá.
Passou mais uma semana e um dos filhos do Ernesto, com 18 anos, havia apostado que conseguiria montar um dos cavalos selvagens. A rapaziada ficou de se encontrar às escondidas, no domingo à tarde, no meio do pasto, onde estavam os cavalos. O filho mais novo do Ernesto aproximou-se com muito cuidado. O cavalo parecia assustado, mas não se movia. E, num só pulo, o rapaz montou o animal. O cavalo selvagem, assustado, começou a corcovear com o rapaz em cima dele. Pulou duas ou três vezes até que o rapaz caiu. Na queda este fraturou a perna. Os amigos foram chamar o pai, que levou o filho para o hospital. A perna precisaria ficar engessada por 45 dias. Os amigos vieram visitar o Ernesto.
– Que azar, hein homem?
Ele, no entanto, respondia: Se isso é bom ou se é mau, só o futuro dirá.
Passou-se mais uma semana quando vieram os soldados com ordens claras: todos os jovens maiores de 18 anos deveriam apresentar-se imediatamente para partir para a guerra. Ninguém ficaria de fora, exceto por problemas de saúde. Todos os jovens tiveram que partir, apenas o filho do Ernesto, com a perna quebrada, não precisou ir. Os amigos, entristecidos, vieram falar com o Ernesto. Os filhos deles agora estavam longe, correndo sério risco de vida, enquanto que o Ernesto tinha o filho dele ali, sob os seus cuidados.
– Que sorte, hein homem?
Ele, no entanto, respondia: Se isso é bom ou se é mau, só o futuro dirá.
Lembre-se: a vida nunca está pronta. Cada dia se abrem e se fecham possibilidades. Se isso é bom ou se é mau, só o futuro dirá. Mas é bom saber que o futuro não pertence ao acaso, e sim a Deus. Por isso, por ti, ó alma abatida, o Senhor lutará. O teu caminho ele preparará através da escuridão. A coisa mais importante, o fato maior ele já fez acontecer: através de Jesus, ele redimiu a tua vida e, por isso, não te deixará perecer.
Paz e bem!

Proclamar Libertação 28
Editora Sinodal e Escola Superior de Teologia